É Segredo: Meu Encontro com Charles Sobhraj, o Assassino do Biquíni

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Edição Crime Verdadeiro

É Segredo: Meu Encontro com Charles Sobhraj, o Assassino do Biquíni

Conheça o “Assassino do Biquíni”, um ladrão de joias bonito e carismático chamado Charles Sobhraj, que operava na Tailândia no começo dos anos 70.

Colagem por Matthew Leifheit. 

Numa noite do inverno de 1983, um pouco antes de sair de Banquecoque para trabalhar num filme, um amigo me contou a história de um serial killer chamado "Assassino do Biquíni", um ladrão de joias bonito e carismático chamado Charles Sobhraj, que operava na Tailândia no começo dos anos 70. Meu amigo conhecia um casal de Formentera, Espanha - eles contrabandeavam heroína do Sul da Ásia -, que tinha sido atraído até a morte por ele. Eles foram dois dos muitos turistas ocidentais que Sobhraj ceifou na chamada Trilha Hippie. Esse caminho se estendia da Europa até o Sul da Ásia e era percorrido por ocidentais que queriam fumar maconha e se conectar com os locais. Sobhraj tosquiava esses andarilhos sedentos espiritualmente de qualquer dinheiro que tivessem; ele desprezava essas pessoas, que considerava de moral fraca.

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Atrasos na produção em Banquecoque me deixaram por minha conta por várias semanas. Era uma cidade desorientadora, fedida e com um trânsito louco, cheia de monges pedintes, gangues de adolescentes, motos, templos, cafetões assassinos, prostitutas assustadoras, bares toscos, boates de striptease, camelôs, colônias de sem-teto e muita pobreza. Depois de descobrir que Captagon, uma poderosa metanfetamina, era vendida na farmácia, sentei na minha máquina de escrever alugada por 12 horas, escrevendo poemas, entradas de diários, histórias e cartas para amigos. A droga ajudava na minha escrita. Depois de abusar do speed, eu apagava com Mekhong, um uísque virulento com 10% de metanol que dizem causar danos ao cérebro.

Em jantares com expatriados britânicos e franceses que viviam na Tailândia desde a Ofensiva Tet, ouvi mais rumores sobre Sobhraj. Ele falava sete línguas; tinha escapado de prisões em cinco países; e já tinha se passado por um estudioso israelense, um comerciante de tecidos libanês e mais um milhão de coisas enquanto percorria o Sul da Ásia, drogando e roubando turistas. Pessoas com quem ele fazia amizade entre um drinque e outro acordavam horas depois em hotéis ou trens, sem o passaporte, dinheiro, câmeras ou qualquer outro objeto de valor.

Em Banquecoque, as coisas tinham tomado uma direção sombria. Sobhraj seduziu uma secretária canadense que conheceu em Rodes, Grécia: uma mulher chamada Marie-Andrée Leclerc, que estava de férias com o noivo. Leclerc largou o emprego, dispensou o noivo e fugiu para Banquecoque para se juntar a Sobhraj. Lá, ele a fazia se passar por sua secretária ou esposa conforme a ocasião exigia. Ele raramente transava com a moça, só quando o bom senso dela ameaçava subjugar suas fantasias românticas.

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Eles viajaram pelo interior do país drogando turistas e levando-os num estado quase de coma para um apartamento alugado por Sobhraj. Ele os convencia de que os médicos locais eram vigaristas perigosos e que sua esposa, uma enfermeira registrada, logo os deixaria novos em folha. Às vezes, ele os mantinha doentes por semanas, com Leclerc administrando uma "bebida medicinal" composta de laxantes, xarope de ipeca e quaaludes, o que os deixava incontinentes, nauseados, letárgicos e confusos; enquanto isso, ele adulterava seus passaportes e os usava para cruzar fronteiras, gastar seu dinheiro e tomar suas posses.

Em 1975, ele encontrou um garoto indiano chamado Ajay Chowdhury num parque. Chowdhury foi morar com Leclerc e Sobhraj, e os dois homens começara a assassinar certos "convidados". Os "Assassinatos do Biquíni" foram especialmente cruéis, diferentes de seus crimes anteriores. As vítimas eram drogadas e levadas para áreas remotas; depois, eram espancadas com pranchas, molhadas com gasolina e queimadas vivas, além de serem esfaqueadas várias vezes antes de ter a garganta cortada ou semiestrangulada para, em seguida, serem arrastadas a fim de se afogar no mar.

Sobhraj tinha matado antes com overdoses acidentais. Mas os Assassinatos do Biquíni foram diferentes. Eles foram cuidadosamente planejados e atipicamente deselegantes. Os crimes ocorreram num curto período entre 1975 e 1976, como um acesso de raiva que durou vários meses e parou misteriosamente. Sobhraj e Chowdhury mataram pessoas na Tailândia, Índia, Nepal e Malásia. Não se sabe exatamente quantas: pelo menos oito, incluindo duas pessoas queimadas em Catmandu e um afogamento numa banheira em Calcutá.

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Sobhraj foi finalmente preso em 1976, em Nova Deli, depois de drogar um grupo de estudantes de engenharia franceses num banquete no Hotel Vikram. Ele ofereceu aos estudantes "cápsulas contra disenteria" que muitos engoliram na hora, passando mal minutos depois. O funcionário da recepção do hotel, alarmado com 20 pessoas vomitando na sala de jantar, chamou a polícia. Por coincidência, o policial que apareceu no Vikram era o único oficial da Índia que podia identificar Sobhraj por causa de uma cicatriz de cirurgia de retirada de apêndice realizada anos antes no hospital de uma prisão.

Julgado em Nova Deli por uma longa lista de crimes, incluindo assassinato, Sobhraj foi condenado apenas por acusações menores - supostamente o suficiente para garantir que ele fosse afastado da sociedade por muitos anos. Em Banquecoque, sem conseguir dormir por causa do speed, comecei a suspeitar que ele não estava numa prisão indiana como os jornais diziam. Eu estava paranoico o suficiente para achar que, como eu estava pensando nele, ele provavelmente também estava pensando em mim. Eu sonhava com ele nas raras horas de sono, imaginando sua figura ágil e letal, vestida toda de preto, se arrastando pelos dutos de ventilação do meu prédio, como Irma Vep.

Charles Sobhraj e Marie-Andrée Leclerc, em 1986. Foto por REX USA. 

Em 1986, depois de dez anos preso, Sobhraj escapou da Prisão Tihar, em Nova Deli, ajudado por colegas detentos e uma gangue que ele tinha reunido do lado de fora. Ele fugiu drogando os guardas com um presente festivo de frutas, doces e um bolo de aniversário. Sem acordo de extradição com a Tailândia quando Sobhraj foi preso, em 1976, a Índia tinha concordado com um pedido especial de extradição depois que ele tivesse cumprido sua pena no país - um acordo não renovável de 20 anos.

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A Tailândia tinha evidências de seis assassinatos em primeiro grau. Os Assassinatos do Biquíni tinham acabado com a indústria turística local por várias temporadas, e Sobhraj tinha feito a polícia de Banquecoque de idiota. Acreditava-se que ele seria baleado assim que saísse do avião quando fosse extraditado.

Ele fugiu de Deli para Goa. Lá, ele andava numa moto cor-de-rosa, com uma série de disfarces absurdos. Acabou pego no restaurante O'Coqueiro enquanto usava o telefone. O propósito da fuga era apenas ser preso de novo e pegar uma sentença maior por ter escapado - apenas o suficiente para exceder a data de validade do acordo de extradição tailandês.

Depois de anos de interesse esporádico em Sobhraj, eu queria encontrá-lo. Então, em 1996, propus um artigo sobre ele para a Spin. Eu não queria particularmente escrever um artigo, especialmente para uma versão glorificada de revista de fofocas, mas eles estavam dispostos a pagar. Então, eu fui.

Primeiro, contatei Richard Neville, que tinha passado muito tempo com Sobhraj quando ele estava sendo julgado em Nova Deli. Autor do livro The Life and Crimes of Charles Sobhraj, ele agora vivia numa parte remota da Austrália. Neville ainda tinha pesadelos com Sobhraj. "Vá lá e satisfaça sua curiosidade mórbida", ele me disse, "depois, vá embora o mais rápido possível -  e nunca mais tenha nada a ver com ele de novo".

Quando cheguei a Nova Deli, a sentença de dez anos de Sobhraj pela fuga estava prestes a expirar, junto com a ordem de extradição. Fiquei num hotel barato do amigo de um amigo. Eu ia sempre ao Press Club of India,em Connaught Place, o ponto de encontro favorito dos jornalistas de todo o país. O clube lembrava o lobby de um albergue pulguento dos anos 60. Amendoim frito com pimentão, o único item comestível do cardápio, vinha grátis com os drinques. Nas paredes, os retratos de homenagem a jornalistas, que, ao saírem bêbados do clube, tinham sido atropelados.

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Meus colegas tinham várias anedotas lúgubres sobre Sobhraj: contos de amizade com políticos e industriais presos, as somas fabulosas oferecidas a ele pelos direitos de sua história para o cinema. Um correspondente do Hindustan Times me garantiu que eu nunca conseguiria vê-lo. Sobhraj estava em quarentena para a imprensa, e os privilégios que ele tinha na Prisão Tihar tinham sido cortados quando a nova administração assumiu.

A nova diretora da prisão era Kiran Bedi, uma lenda da lei indiana. Ex-campeã de tênis, ela tinha se tornado a primeira policial mulher da Índia. Ela era uma feminista declarada e, paradoxalmente, uma simpatizante do partido de direita Bharatiya Janata. Fanaticamente incorruptível numa força policial famosa pela corrupção, ela tinha recebido inúmeros "postos de punição" para tentar desencorajá-la, mas ela aplicava tal zelo aos seus trabalhos - ordenando que carros de ministros de Estado estacionados em local proibido fossem rebocados, por exemplo - que se tornou uma heroína nacional de que seus chefes não podiam se livrar. Antes da chegada de Bedi, Tihar era conhecida como a pior prisão da Índia, o que quer dizer alguma coisa. Ela novamente fez de sua atribuição de castigo em triunfo de relações públicas, transformando a Tihar num ashram de reabilitação, introduzindo um regime inflexível de meditação matinal, treinamento vocacional e aulas de ioga.

Numa certa manhã, fiquei horas sentado no salão de administração da prisão, perto de uma vitrine de armas confiscadas. Soldados apáticos passavam, bocejando e coçando o saco. Um grupo de garotas animadas chegou, algumas de terno, outras de sari, cercando um figura baixinha de calça impecavelmente branca, cabelo curto e cara fechada como um punho. Era Bedi. Seguindo o conselho de amigos do Press Club, eu disse que queria escrever um perfil dela para uma revista de Nova York. Assim que ela entrou no recinto, senti de cara a imensidão de seu ego e de sua astúcia.

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Eu era bem-vindo para visitar a prisão, ela avisou. Mas se eu planejava falar com Sobhraj, era melhor esquecer. Ela estaria arriscando seu emprego se deixasse a imprensa falar com ele. Fosse isso verdade ou não, pude ver que ela pretendia ser a única celebridade do local. Perguntei como ele estava.

"Charles mudou!", ela declarou em seu inglês com pesado sotaque indiano. "Através da meditação! Ele vai trabalhar com a Madre Teresa quando sair! Ninguém pode vê-lo agora - ele está reabilitado!" Depois, ela sugeriu que eu ficasse na Índia por vários meses. Eu podia viver muito bem ali, ela pontuou, se concordasse em ser o ghostwriter da biografia dela. O que me pareceu um tanto bizarro.

Antes que eu pudesse respirar, fui enfiado num carro que acelerou ao longo do muro do perímetro que cerca as quatro prisões separadas de Tihar, um complexo enorme com muitos espaços abertos, lembrando uma pequena cidade. Chegamos a um palanque, onde fui conduzido até o final de uma fila de dignatários usando roupas formais. Abaixo de nós, 2 mil prisioneiros estavam sentados na posição de lótus, muitos enfeitados com pó colorido. Eu não fazia a menor ideia do que estava fazendo lá, de jeans rasgado e camiseta do Marc Bolan. O discurso de Bedi foi uma celebração do Holi, um festival religioso hindu que encoraja o amor, o perdão e o riso. E pó colorido.

Depois da cerimônia, retornamos ao escritório. Ela anunciou que estava partindo no dia seguinte para uma conferência de várias semanas na Europa. Ansiosa para que eu, seu novo biógrafo, sentisse todo o efeito do ashram Tihar, ela me escreveu um passe livre para as quatro prisões em um papel qualquer. Eu estava dentro. Mais ou menos.

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Toda manhã, por três semanas, eu ia à Prisão Tihar num táxi que cortava pela multidão e pelo trânsito confuso, desviando de elefantes e corvos. Tudo brilhava no calor terrível. Passávamos pelo Forte Vermelho, sentindo o ar gorduroso com o smog amarelo e a fumaça preta dos carros. Mendigos agachados na beira da estrada defecavam candidamente enquanto observavam o trânsito.

Meu passe livre era inspecionado toda manhã - com o mesmo escrutínio duvidoso - pela segurança entre os imensos portões de ferro. Todo dia, o oficial no comando designava um acompanhante para mim, e eu tentava favorecer os guardas mais jovens, que eram mais relaxados e permissivos, sempre me deixando sozinho quando saíam para fumar ou conversar com os amigos.

Eles não me mostraram nada que eu quisesse ver: a horta; aulas de ioga; aulas de computação; santuários para Shiva e Vishnu cobertos de narcisos e hibiscos; as celas com tapetes de oração; círculos de mulheres inclinadas sobre teares; e uma padaria cheia de homens descalços de todas as idades, usando shorts parecidos com fraldas, enfiando massa de pão em fornos industriais. Conheci nigerianos acusados de tráfico de drogas; homens da Caxemira, de atentados a bomba; australianos, de homicídio; e gente que definhava na prisão por anos, ainda esperando a data do julgamento - indianos frequentemente cumprem a sentença pelos crimes de que são acusados antes mesmo de serem julgados e, se são inocentados, não recebem nenhuma compensação pelo tempo em que ficaram presos.

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Vi tudo menos Sobhraj. Ninguém podia me dizer onde ele estava. Mas, uma tarde, depois de três semanas de visitas de um dia inteiro, tive sorte: eu estava com dor de dente. Meu acompanhante me levou até o dentista da prisão, que trabalhava numa pequena casa de madeira, com uns 30 homens fazendo fila na porta, esperando pela vacina contra febre tifoide.

Meu acompanhante se distraiu falando com a enfermeira enquanto ela injetava, com a mesma agulha, um braço após o outro. Perguntei aos homens na fila se alguém poderia levar uma mensagem para Sobhraj, e um nigeriano usando um colar de contas pegou meu caderno e saiu correndo, voltando depois da minha consulta com o dentista. Meu rosto estava amortecido com novocaína quando ele discretamente colocou um papel dobrado no bolso do meu kurti laranja.

Abri o bilhete depois que um jovem guarda da Prisão três me trouxe para o hotel em sua moto. Sobhraj tinha escrito o nome e o número de telefone de seu advogado, com instruções para ligar para ele naquela noite. Pelo telefone, o advogado me disse para encontrá-lo exatamente às nove da manhã em seu escritório, no tribunal Tis Hazari.

O tribunal Tis Hazari parecia uma coisa surgida da cabeça de William S. Burroughs. Um leviatã de estuque marrom, com um oceano de litigantes, mendigos, vendedores de água e várias formas estranhas de humanidade reunidas do lado de fora. Numa das extremidades do edifício, um ônibus virado e queimado abrigava uma família de macacos ferozes, que rasgavam excitadamente os assentos, gritando e jogando fezes em quem passava. Uma ravina rasa separava o tribunal dos labirínticos bunkers de cimento que serviam como escritórios para os advogados.

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O advogado era um homem de aparência desossada e idade impossível de adivinhar, que tinha a pele escura e características arianas. Ele me disse para deixar a câmera para trás. Andamos até o tribunal, através da multidão, e subimos as escadas até uma sala mal iluminada e apertada.

Reconheci Sobhraj numa fila de requerentes, um por um se aproximando do banco de um juiz sikh bilioso de turbante amarelo, que bebia calmamente uma Coca-Cola. O advogado nos apresentou.

Sobhraj sendo levado para a Prisão Tihar em Nova Deli, em abril de 1977. Foto por REX USA. 

Sobhraj era mais baixo do que eu esperava. Ele estava usando uma boina esportiva cobrindo o cabelo cheio de fios brancos. Uma camisa branca de riscas azuis, calça azul-marinho e tênis Nike. Magro, qualquer peso que ele tivesse ganhado tinha ido direto para a bunda. Ele usava óculos sem aro que deixavam seus olhos parecendo enormes e úmidos, os olhos de algum mamífero marinho. Seu rosto lembrava a fachada desmoronada de um ex-ator antes conhecido por sua beleza. Ele passou por uma morfologia de expressões "amigáveis".

Evitei seus olhos e me concentrei em sua boca. Atrás de seus lábios carnudos, ele tinha os dentes de baixo irregulares, sugerindo vagamente a bocarra de um anfíbio predatório. Decidi que estava lendo coisas demais em sua boca e me foquei no nariz, que tinha um formato agradável.

Ele estava esperando para pleitear seu lado em algum litígio trivial do tipo que ele sempre começava, principalmente para sair da cadeia por um dia e aparecer nos jornais locais. "Você precisa esperar lá fora", foram as primeiras palavras que ele me disse. "O advogado te mostra." Ele me levou até um ponto embaixo de uma alta janela retangular na fachada do tribunal.

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Meia hora depois, o rosto de Sobhraj apareceu na janela. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele me metralhou com perguntas: quem eu era, de onde tinha vindo, qual faculdade frequentei, que tipo de livros eu escrevia, onde eu morava, há quanto tempo eu estava na Índia, um Niágara de perguntas de investigação sobre minhas atitudes políticas, minha religião, minha música favorita, minhas práticas sexuais. Menti sobre tudo.

"Onde você está ficando em Nova Deli?", ele me perguntou. Resmunguei alguma coisa sobre o Oberoi Hotel. "Arrá", exclamou Sobhraj. "O advogado me disse que você ligou pra ele de um hotel em Channa Market."

"É verdade, mas estou me mudando para o Oberoi. Talvez até esta noite!", eu disse enfaticamente. Comecei a pensar em um dos capangas de Sobhraj, que sempre existiram do lado de fora, me fazendo uma visita surpresa e me envolvendo em algum esquema aparentemente inocente que me colocaria na prisão sem um passe livre.

Do nada, ele afirmou: "Talvez você possa trabalhar comigo, escrevendo a história da minha vida para os filmes". Algo que parecia ter o tamanho de uma semente de pêssego bloqueou minha garganta enquanto eu dizia que ficaria na Índia só algumas semanas. "Digo depois. Depois que eu sair. Você pode voltar."

Fiquei aliviado quando um jornalista desajeitado e irritante apareceu na janela e interrompeu, mesmo tendo subornado os guardas de Sobhraj a cada 15 minutos pelo privilégio de falar com ele.

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Um pouco depois, Sobhraj emergiu da sala, algemado pelos pulsos e tornozelos e acorrentado a um soldado que seguia atrás dele. Ele tinha algum outro negócio no outro extremo do tribunal. Permitiram que eu andasse ao lado dele, ou pelo menos foi isso que ele me disse sem encontrar nenhuma objeção dos guardas. Entramos num círculo de pessoal armado, com submetralhadoras apontadas para nós dois. Outros detentos no tribunal simplesmente andavam lado a lado com suas escoltas não armadas, mas Sobhraj era especial. Ele era um assassino em série e uma grande celebridade. As pessoas correram até o cordão de isolamento para pedir autógrafos.

"Agora", eu falei enquanto andávamos, "antes de Kiran Bedi assumir a prisão, diziam que era você quem comandava o lugar".

"Ela te disse que estou escrevendo um livro", ele disse. "Sobre ela?"

"Ela mencionou alguma coisa. Não lembro exatamente."

"Sou um escritor, como você. Não há muito para se fazer na cadeia. Ler, escrever. Gosto muito de Friedrich Nietzsche."

"Ah, sim. O Super-Homem. Zarathustra."

"Sim, exatamente. Eu tenho a filosofia do super-homem. Ele é como eu, não tenho uso para a moralidade burguesa." Sobhraj se inclinou, tilintando suas correntes, para puxar a perna da calça. "Era assim que eu comandava a prisão. Sabe aqueles minigravadores? Eu os gravava falando, sabe? Por debaixo da manga. Eu tinha os guardas falando sobre aceitar subornos, trazer prostitutas à prisão."

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Ele me mostrou alguns papéis amassados numa carteira de plástico que ele levava no bolso da camisa.

"Esses são os documentos de uma Mercedes que preciso levar ali", ele explicou, apontando para a porta aberta de um escritório. "Isso se aplica a minha fiança. Quando eu sair de Tihar, tenho que dar a eles algum dinheiro."

"Por sair, você quer dizer…"

"Quando eu sair para trabalhar com a Madre Tereza." Credo.

"Preciso te perguntar uma coisa, Charles", repeti, o mais firme que pude. No curso da nossa conversa (de que isso é apenas a essência), notei que Sobhraj tinha feito como que uma colagem de tudo que eu tinha dito a ele antes sobre mim e que, agora, ele estava me devolvendo partes disso, com várias modificações plausíveis, como uma revelação sobre si mesmo. Uma técnica padrão dos sociopatas.

"Você também gostaria do meu autógrafo?"

"Não, eu gostaria de saber por que você matou todas aquelas pessoas na Tailândia."

Longe de ter o efeito devastador que eu esperava, Sobhraj sorriu de alguma coisa que passou pela sua cabeça e começou a limpar seus óculos na camisa.

"Nunca matei ninguém."

"Mas e Stephanie Parry? Vitali Hakim? Aqueles garotos no Nepal?" Nas férias de Natal, Sobhraj, Chowdhury e Leclerc tinham achado tempo para incinerar dois mochileiros em Catmandu.

"Agora você está falando de viciados em drogas."

"Você não os matou?"

"Eles foram…" Ele procurou a palavra certa. "Hum, liquidados por um sindicato por traficar heroína."

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"Você é o sindicato?"

"Eu sou uma pessoa. Um sindicato tem muitas pessoas."

"Mas você disse a Richard Neville que matou essas pessoas. Não quero ofender, mas quero saber por que você os matou."

"Eu já te disse." Senti meu tempo se perdendo. Eu não considerava prudente ver essa pessoa de novo, e, assim que ele concluísse seu assunto com a Mercedes, eles o levariam de volta para Tihar.

"Bom, posso te contar sobre uma", ele disse, depois de um silêncio pensativo. Ele se voltou para mim confidencialmente. Um dos guardas tossiu, nos lembrando de sua presença. "A garota da Califórnia. Ela estava bêbada, e Ajay a trouxe para a Kanit House. Sabíamos sobre ela, sabe? Sabíamos que ela estava envolvida com heroína." Ele começou a recontar como matou Teresa Knowlton, uma jovem que definitivamente não estava envolvida com heroína e planejava se tornar monja budista, mais ou menos como ele contou a Richard Neville 25 anos atrás. O corpo dela foi o primeiro a ser encontrado, de biquíni, flutuando na praia de Pattaya. Por isso, Assassino do Biquíni.

Quando ele chegou ao fim da história, eu devolvi: "Não estou realmente interessado em como você a matou. O que eu queria saber é o porquê. Mesmo que você estivesse trabalhando para algum sindicato de Hong Kong, deve haver uma razão para você, e não outra pessoa qualquer, fazer isso".

Um guarda indicou que Sobhraj podia entrar no escritório. Ele se levantou, fazendo um barulho alto com as correntes, deu alguns passou e espiou por cima das ombros.

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"É segredo", ele frisou, com o rosto tremendamente sério. Aí ele desapareceu, acenando com os documentos da Mercedes logo no final.

Sobhraj lendo uma matéria sobre si mesmo, num jornal francês, quando chegou em Paris, em abril de 1997. Foto por REX USA. 

Eu achava que Sobhraj e Chowdhury deviam tomar muito speed. Eu especulava se os Assassinatos do Biquíni não eram um ritual perverso homoerótico, desencadeado pela psicose causada pela anfetamina. Eu queria sugerir isso para a polícia de Bombaim, mas, como eu mesmo estava tomando speed, tive a ideia paranoica de que, se falasse sobre isso, eles me mandariam fazer um teste de drogas bem ali no escritório.

Eu tinha ido até lá me encontrar com Madhukar Zende, um comissário de polícia surpreendentemente sólido e estranhamente felino, que me apresentou um fardo de depoimentos escritos à mão pelos capangas de Sobhraj; em rabiscos com caneta esferográfica ou lápis, confessavam vários latrocínios em Peshawar, Karashi e Caxemira, cometidos num frenesi de trânsito desconcertantemente rápido. Zende tinha prendido Sobhraj duas vezes: uma vez em 1971, no aniversário de 42 anos de Zende, depois de um roubo de joias no Ashoka Hotel, em Nova Deli; e outra em 1986, depois da fuga de Tihar.

Ele falou sobre Sobhraj com uma afeição irônica, torcendo seu bigode de D'Artagnan enquanto se lembrava do começo dos anos 70, quando o bandido tinha um flat em Malabar Hill e se tornou popular em Bollywood, oferecendo Pontiacs e Alfa Romeos roubados com descontos imperdíveis. Para golpes mais arriscados, ele recrutava capangas em bares de suco ou hostels na Ormiston Road, fazendo seu esquema de drogas e roubos com turistas ricos no Taj ou Oberoi, próximos da Porta da Índia, para manter a prática.

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"Ele estava interessado em mulheres e dinheiro", explicou Zende. "Ele deixava um rastro de corações partidos por onde passava." Em 1971, enquanto Sobhraj esperava por uma chamada internacional no restaurante O'Coqueiro, em Goa, Zende, disfarçado de turista, o prendeu.

Sentei-me perto da mesa onde Sobhraj tinha sido preso enquanto pequenos lagartos iridescentes subiam e desciam pelo muro verde do O'Coqueiro. Era fora de temporada em Goa. Os garçons estavam sem rumo na sala de jantar, como gigolôs numa pista de dança vazia.

Na sombra da varanda, Gines Viegas, o proprietário, me servia Coca-Cola com rum enquanto contava seus anos como agente de viagens na África e América do Sul. Ele era uma tartaruga irritante, mas vez por outra inseria detalhes novos sobre as semanas em que Sobhraj aparecia toda noite para usar o telefone do restaurante.

"Ele estava ligando para a mãe na França", Viegas me contou. "Ele vinha diferente toda vez, usando perucas, o rosto todo maquiado. Ele fez o nariz maior com massa. Quando Zende esteve aqui para prendê-lo, ele estava usando bermuda e uma camiseta de turista. Eu vi que ele era policial logo de cara."

Madhukar Zende está morto agora. Assim como Gines Viegas. Charles Sobhraj continua vivo.

Os novos donos do O'Coqueiro instalaram uma estátua de Sobhraj na mesa onde ele jantou na noite da prisão. Quanto a Kiran Bedi, ela perdeu o emprego - vítima da arrogância e, previsivelmente, de Sobhraj. Ela foi amolecida pelo tsunami de elogios da Serpente. Ela acreditava tão fervorosamente na reabilitação dele que permitiu que uma equipe de filmagem francesa entrasse em Tihar para documentar isso, dando aos seus superiores uma desculpa para demiti-la.

Ao contrário do que Zende disse, nunca acreditei que Sobhraj alguma vez esteve interessado em mulheres ou dinheiro. Apesar de todas as joias que ele exibia para impressionar seus alvos, seu prazer na vida era tirar proveito deles. Ele nunca levou mais do que algumas centenas de dólares dos mochileiros que iam à Kanit House e depois apareciam mortos. Quando ele conseguia uma grande soma, ele instantaneamente voava para Corfu ou Hong Kong e gastava tudo num cassino. As mulheres de sua vida eram sempre acessórios para suas empreitadas criminosas ou publicidade. Se Charles era um garanhão fabuloso, ninguém nunca disse. E teriam dito.

Sobhraj sendo escoltado pela polícia nepalesa depois de uma audiência em Bhaktapur, 12 de junho de 2014. Foto AFP/Prakash Mathema/Getty Images. 

Não sei por que os Assassinatos do Biquíni aconteceram. Mas, nessa parte do mundo, esses eventos costumavam ser chamados de "amok" - "fúria desencadeada", primeiro observada por antropólogos na Malásia, no final de 1800. Hoje, isso acontece mais frequentemente nos EUA. Eric Harris e Dylan Klebold tiveram um surto amok em Columbine. Adam Lanza teve um surto amok em Newtown, Connecticut. O evento-gatilho em Banquecoque-  tenho certeza - foi Ajay Chowdhury. Os assassinatos foram um capítulo muito breve da variada vida de crimes de Sobhraj: uma prolongada explosão de exagero de um vigarista gracioso que se orgulhava de seu autocontrole. As mortes começaram quando Chowdhury entrou na história e pararam quando ele saiu.

Para o desespero de muita gente, Sobhraj foi libertado um ano depois do nosso encontro. Como um cidadão francês com uma ficha criminal, ele foi apressadamente expulso da Índia. Ele se estabeleceu em Paris, onde teria recebido US$ 5 milhões pela história de sua vida, e começou a dar entrevistas por US$ 6 mil cada em seu café favorito, na Champs-Élysées.

Mas esse não foi o fim. Em 2003, ele apareceu no Nepal - o único país do mundo onde ele ainda era procurado. (A Tailândia tem um estatuto de prescrição para todos os crimes, incluindo assassinato.) Ele acreditava - ou pelo menos é o que dizem - que as provas contra ele tinham virado há muito tempo. Não tenho tanta certeza de que ele acreditava nisso. Ele passeava pelas ruas de Catmandu numa moto, como fez em Goa, se fazendo visível. Os nepaleses tinham preservado cuidadosamente recibos datados de um carro alugado e evidências com sangue encontradas num caminhão. A polícia local o prendeu, muito apropriadamente, num cassino.

Acabei de assistir a um vídeo no YouTube de Sobhraj perdendo sua última apelação contra o caso de assassinato em Catmandu. Tanto tempo separa os Assassinatos do Biquíni do presente que esse final acaba não ilustrando mais a tendência de certos indivíduos de açoitar sua patologia ao ponto da autoimolação. O que isso ilustra é a futilidade final de tudo diante do processo de envelhecimento. Sobhraj ficou velho. Se ele não se cansou de si mesmo agora, ele certamente ficou idiota também. Se você olhar para essa história tanto quanto eu - a trilha interminável de mal e caos que só leva de volta onde tudo começou: uma cela de prisão; o dinheiro roubado e instantaneamente apostado; o movimento perpétuo e inútil através de países e continentes -, você percebe que Sobhraj sempre foi ridículo. A primeira impressão que tive de seu rosto foi de um ridículo agressivo e implacável.

Na época dos crimes, as vítimas tinham minha idade e provavelmente vagavam pela terra na mesma névoa mental que eu carregava nos meus 20 e poucos anos. A história me chamou a atenção tempos atrás, sem dúvida, porque eu queria saber se, no lugar deles, eu também teria sido enganado até a morte por Sobhraj. Nas fotos da época, ele parecia uma pessoa com quem eu teria dormido nos anos 70 - como várias pessoas com quem realmente dormi na época. Não há como responder a essa questão me encontrando com ele. Ele não se parece mais alguém com quem eu ficaria, e eu já sabia de antemão o que ele tinha feito.

Um criminoso como Sobhraj seria impossível hoje: a Interpol tem computadores; uma pessoa não pode entrar e sair de aviões e cruzar fronteiras com nada além de fala mansa, um sorriso sensual e passaportes toscamente forjados; mesmo as joalherias do mundo têm câmeras de segurança, e logo todas as ruas do mundo vão ter câmeras também.

Mas eu posso ter entendido tudo errado desde o começo. Por anos, imaginei Sobhraj atraindo maconheiros crédulos para sua teia da morte com seu charme sexual e astúcia superior. Mas… e se as pessoas que ele matou não compraram sua história tanto quanto eu, apesar de quão atraente ele era na época, e mesmo não sabendo nada sobre ele? E se, em vez dessa imagem de perfeição, eles viram um fracassado desprezível obviamente asiático, um cara se fingindo de rico com seus ternos baratos, tentando absurdamente parecer francês, holandês ou vagamente europeu, "como eles"? E se eles o consideraram divertidamente patético, mas possivelmente útil? Muitos foram "atraídos" não por seu sex appeal ou por sua conversa oleosa, mas pela perspectiva de conseguir joias preciosas a preços baixos. É possível que as vítimas dele tenham imaginando que eram elas que o estavam enganando; é possível que elas o tenham achado tão ridículo quanto eu achei. E talvez elas acreditassem - com uma indulgência condescendentemente liberal - que uma pessoa ridícula também é uma pessoa inofensiva.

Tradução: Marina Schnoor