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Escapei da Morte numa Van da Polícia Egípcia, Mas Testemunhei uma Tentativa de Estupro

Na delegacia, passamos a noite toda acordados, fumando um cigarro atrás do outro, tramando planos de fuga e ouvindo os gritos que vinham do porão.

Randel (à esquerda) e eu entre os interrogatórios na delegacia de polícia. Nesse ponto, a gente ainda achava que tudo acabaria rápido e encarávamos a situação mais como uma aventura do que como um inferno na terra. (Todas as fotos por Sebastian Backhaus.)

É um alívio perceber que você não vai morrer queimado na traseira de uma van de prisioneiros da polícia egípcia. No entanto, testemunhar uma tentativa de estupro alguns momentos depois o traz imediatamente de volta à realidade, o quê — no meu caso — era ser um prisioneiro no Cairo durante a luta mais sangrenta da história recente do Egito.

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Quando chegamos aqui, o cara que mostrou nosso apartamento nos cumprimentou: “Bem-vindos ao Cairo”. Dando, logo em seguida, o tipo de sorriso sarcástico que se espera de alguém recebendo dois estrangeiros na cidade, bem no dia em que o exército decidiu massacrar 600 de seus cidadãos.

Nem todos os egípcios odeiam a polícia, mas eles são constantemente criticados por seus métodos brutais. Aqui, um policial é carregado triunfante na Praça Tahrir um dia antes do golpe militar.

Apesar dos eventos do dia, meu amigo Randel — que estava viajando comigo — queria desesperadamente dar um passeio pela Praça Tahrir antes de dormir. Conseguimos chegar ao enorme protesto no centro do Cairo sem problemas, mas não tivemos a mesma sorte na volta. Um pouco antes de chegarmos à porta de nosso apartamento, fomos parados pela polícia por violar o toque de recolher, imposto naquele dia; por posse de uma jaqueta contra estilhaços, máscaras de gás e um capacete, e pela falta de uma credencial de imprensa, que, aparentemente, é indispensável para se andar pelas ruas do Egito sem ser preso.

No caminho para a delegacia de polícia, recebi uma chamada de alguém da embaixada alemã que me garantiu que iria nos ver na manhã seguinte. Foi quando percebi que muito provavelmente não iríamos voltar para nosso apartamento antes daquela noite acabar. Na delegacia, nossos celulares foram confiscados e consegui negociar uma garrafinha d'água no lugar de água da torneira. Em seguida, recebemos nossa ração das próximas 20 horas: um pedaço minúsculo de queijo com um pouco de marmelada. Passamos a noite toda acordados, fumando um cigarro atrás do outro, tramando planos de fuga mirabolantes e ouvindo os gritos que vinham do porão.

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Lamentavelmente, na manhã seguinte, nenhum representante da embaixada alemã apareceu. Depois de perceber que não iríamos conseguir a ajuda que nos foi prometida, Randel pediu para ir ao banheiro e alguém me mandou acompanhá-lo. No entanto, rapidamente transpareceu que não estávamos sendo levados para banheiro nenhum, mas empurrados por uma escada até o porão de onde vinham os gritos que ouvimos a noite toda.

Tivemos que ficar numa antessala cercados por quatro portas que faziam muito pouco para barrar o cheiro atroz de suor, lixo e excrementos que se misturava no ar. De repente, três das portas se abriram e pudemos ver além delas as celas de 15 metros quadrados, cada uma delas cheia de incontáveis prisioneiros na mais completa escuridão — nenhuma das celas tinha janela.

Os prisioneiros eram chamados um a um e empurrados para a antessala, vários deles com muita dificuldade para abrir os olhos quando expostos à luz. Alguns tinham grandes hematomas nos dois olhos, outros tentavam proteger feridas abertas e infeccionadas nos pés e pernas. A polícia nos algemou agressivamente e nos jogou de joelhos no chão, antes de fazer a mesma coisa com as outras 30 pessoas que tinham sido conduzidas até ali. Depois, fomos extensivamente xingados e espancados antes que os guardas nos levassem de volta para o andar superior. No caminho, consegui ver de relance o que estava atrás da quarta porta: uma mulher ninando um bebê nos braços.

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Depois de sermos levados para fora, fomos amontoados dentro de um veículo de transporte de prisioneiros, onde consegui falar rapidamente com um detido sírio. Ele estava preso há mais de 20 dias, não tinha recebido nenhuma comida nos primeiros três e não pode entrar em contato com a família para informar seu paradeiro. Ele me disse que, antes de ser preso pela polícia egípcia, tinha viajado até o Cairo com a mulher e o filho para fugir da guerra devastadora em seu próprio país.

De repente, ouvimos tiros e todos se jogaram no chão do veículo, o homem mais velho ao meu lado começou a chorar e a recitar a shahada — a profissão de fé em Alá. Mas, para mim, religião não se encaixava na situação; a única coisa passando pela minha cabeça era que, se alguém acertasse a van com um coquetel molotov, provavelmente seríamos todos queimados vivos.

Numa tentativa de escapar da multidão, nosso motorista batia a van contra os carros estacionados e subia na calçada. O veículo começou a chacoalhar violentamente e fomos jogados de um lado pro outro enquanto as algemas começavam a penetrar na nossa pele. Não tive certeza do que estava acontecendo exatamente do lado de fora naquele momento, mas de algum jeito conseguimos desviar do caos e voltar para uma superfície regular, rumando depois para outra delegacia.

Na embaixada alemã, nos disseram que foi um grupo da Irmandade Muçulmana que atacou o transporte. Eles estavam vindo de um necrotério próximo, onde os corpos de alguns de seus colegas manifestantes — que perderam a vida na desocupação da Rabaa — estavam enfileirados.

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Não ficamos na segunda delegacia por muito tempo. Randel e eu, juntamente com nove outros, fomos rapidamente colocados em outro veículo. Antes de ser enfiado na traseira, consegui dar uma olhada no veículo atacado. O para-brisa estava completamente destruído e vi um policial cuidado de um ferimento bem no meio da cara.

Um simpatizante da Irmandade Muçulmana ferido pela multidão.

Depois de sermos jogados uns sobre os outros no novo veículo, notei que uma mulher jovem tinha sido colocada junto com a gente. Assim que começamos a nos mover, um homem sentado na frente dela começou a tentar agarrá-la. Randel e eu, ainda algemados, protestamos alto, mas sem sucesso. Com o tempo, ele foi ficando mais agressivo. Ele apalpava as pernas e os seios dela, segurava o rosto dela com força, a empurrava contra a parede e tentava puxar sua burca. Depois, frustrado, ele passou a só bater nela.

Eu tinha notado aquele cara antes durante o primeiro trajeto; ele estava usando bandagens nos braços e pernas, mas não estava algemado e era a única pessoa que podia falar com os policiais sem ser punido depois. Outro homem, sentado próximo da mulher, tentou impedir os ataques, mas o cara enfaixado tirou uma faca pequena de seu curativo da perna e esfaqueou o outro homem bem na mão. O sangue começou a escorrer pelo chão e, compreensivamente, a vítima começou a gritar. Isso continuou até que um prisioneiro mais velho implorou que ele tentasse relaxar.

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Finalmente, o veículo parou em frente a um tribunal e Randel e eu fomos arrastados para fora. Notei dois amigos nossos esperando do lado de fora do prédio, eles gritaram que os diplomatas alemães já estavam esperando pela gente lá dentro. Depois de várias horas ouvindo nossas acusações, fomos liberados. A intervenção da embaixada alemã foi crucial para nossa soltura. Nenhum dos outros prisioneiros era alemão. Não tenho ideia do que aconteceu com eles.

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