O primeiro estúdio de tatuadores transgêneros não-binários no Brasil

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O primeiro estúdio de tatuadores transgêneros não-binários no Brasil

Nem homem, nem mulher.

Um sobrado antigo na Vila Mariana, zona sul de São Paulo, acaba de abrir seu portão preto com ares coloniais para uma singularidade: o Inkat Tattoo, inaugurado no final de abril, é encabeçado por três tatuadores transgêneros não-binários. Para quem não manja dos bangs linguísticos da atualidade, decodificamos: transgênero é quem não se identifica com o gênero ao qual foi designado. "Não-binário é você não ser homem nem mulher, não estar dentro da binariedade que são esses dois lados, esses dois opostos", explica o tatuador Lune Carvalho, 18, que pede para ser tratado no masculino. A empreitada é inédita no Brasil. Não há nenhum estúdio do tipo – e, provavelmente, narizes transfóbicos hão de torcer.

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Sutiã, saia plissada, tênis surrado: o visual dos tatuadores pode até aturdir alguns clientes que desconhecem o assunto. "A maioria vê a gente como sapatão", resume Lune, sentado em cima da maca enquanto mexe em sua trancinha roxa. "Mas ninguém pergunta: 'você é trans?'."

O tatuador Lune Carvalho, 18. Foto: Felipe Larozza/ VICE

A proposta do lugar é acolher pessoas de todos os gêneros e sexualidades, principalmente LGBT. "Elas já sofrem o tempo todo lá fora. Por que sofrer aqui dentro também?", indaga o jovem tatuador. "É complicado. Pessoas trans são destratadas em qualquer lugar."

Através do Facebook e sem muitas pretensões, Lune começou a procurar outros tatuadores trans com a ideia de unir forças, mãos, máquinas e tintas para montar um estúdio. Ficou maravilhado quando descobriu que os outros dois* profissionais com quem passou a trocar mensagens também eram não-binários. "Eu não tinha nem amigo, nem conhecido não-binário", relembra. Um deles era Jesse Rother, 24, que, com o apoio financeiro e emocional do pai, conseguiu avançar com o projeto do Inkat Tattoo.

O tatuador Jesse Rothen, 24. Foto: Felipe Larozza/ VICE

"Ele que investiu no estúdio e me apoiou muito", relata, orgulhoso, Jesse. Inclusive, foi pela insistência do progenitor e do namorado que o tatuador começou na profissão. Fã de Egon Schiele e Leonardo da Vinci, cogitou trabalhar fazendo concept art de jogos, mas se deparou com um mercado complexo. Comprou uma máquina e aprendeu o ofício com uma tatuadora profissional. Fez a primeira tattoo em si mesmo. Hoje, a figura humana é sua principal paixão a ser demarcada na pele alheia. "Gosto de coisas mais soltas, mais orgânicas."

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Jesse explica que seu gênero é fluido (da expressão genderfluid). "Tem dias em que me sinto mais masculino, em outros mais feminino. Mas eu sou eu. Uma pessoa", enfatiza, tímido.

O tatuador Be Mosken, 18, fazendo auto-tatuagem. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Com 18 anos e tatuando há quatro, Be Mosken completa o time do Inkat. Quando trabalhava em uma loja da Galeria do Rock, no centro de São Paulo, passou a desenhar para uma tatuadora do estúdio vizinho. Daí o estalo: por que não aprender? "Eu achava que tatuar era um negócio fora da realidade. Pessoal que vem da periferia sempre acha que tudo é fora de realidade e que vai trabalhar em telemarketing pro resto da vida", conta, aos risos.

Morador do Capão Redondo, ele relata os tempos difíceis vivendo no extremo-sul da cidade cinza, trabalhando durante a infância, morando em um sítio e depois em ocupações. Foi ainda criança que o fascínio por animais irrompeu. "Eu capturava os bichos do sítio, como aranha e cobra, pra colocar no vidro e desenhar. Sempre gostei de biologia. Ainda estou estudando pra passar na faculdade pública."

O estúdio Inkat Tattoo. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Terror e horror dos anos 60 também entram na lista. "É um estilo que tem muito a ver com o que desenho. Gosto muito do Creepshow, do Stephen King", justifica, referindo-se aos quadrinhos que viraram filmes na década de 80.

Sobre o "malabarismo" da vida trans, como o uso de pronomes, nome social, definições e, principalmente, o fato de ser não-binário, ele é enfático: "As pessoas nem sabem que existe". Entretanto, nada que aparentemente turbe ou tire o sono dos três tatuadores, que se zoam e se elogiam o tempo todo ("temos química", dizem entre um abraço e outro). Ali, o gênero é livre. Eles falam da infância, da dificuldade que é ser LGBT no mercado da tatuagem, cogitam comprar algo pra comer depois que a entrevista com a VICE acabar, se olham no espelho, arrumam o cabelo. Parecem felizes, flamejantes. "Era um sonho nosso ter um espaço sem gênero", sintetiza Be.

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Os tatuadores Lune Carvalho, Be Mosken e Jesse Rother. Foto: Felipe Larozza/ VICE

No início da profissão, ele tatuava em sua própria casa e também se dirigia até os clientes. As experiências nem sempre foram boas, observa. "Várias vezes deu merda, do cara dar em cima de mim, passar mão. É uma insegurança. Quantas vezes eu já quis fazer tatuagem e não fiz porque não achei o clima legal, não achei as pessoas do estúdio muito confiáveis…", pontua. Por isso, acredita que além de o Inkat Tattoo servir como um lugar de confiança para LGBTs, pode também inspirar. "As pessoas transexuais são as que ocupam os piores empregos, os piores salários. Acho até legal a iniciativa do estúdio pra mostrar que elas podem correr atrás das coisas que querem fazer. E não só se ater a prostituição, telemarketing."

"Pra quem é da periferia, pra quem é transexual, LGBT em geral… é isso que é a apresentado pra gente", conclui. Antes de terminar a entrevista, Be resume os diversos objetivos do Inkat Tattoo e suspira: "Conseguimos. Então, vocês também conseguem".

*Perguntados sobre o uso do pronome, os tatuadores Jesse Rothen e Be Mosken disseram que poderia haver variações durante a entrevista. Porém, a VICE havia combinado previamente com ambos sobre o pronome que seria utilizado no texto, que, de acordo com suas vontades, poderia ser o masculino. Por isso o uso de "ele", "dele", etc.

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