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Música

Eu Achava que Lou Reed Sobreviveria à Própria Morte

Como uma pessoa dessas pode morrer?

Por mais idiota que pareça, eu achava que Lou Reed poderia sobreviver à própria morte.

Não era só por causa do semblante implacável e do olhar perspicaz; seu rosto já era uma espécie de máscara mortuária viva e prematura. Não era só a maneira como o corpo dele parecia ter sido laminado eternamente em seu lugar, zombando do próprio conceito de juventude (muitas pessoas que superam o vício em heroína têm esse vigor mumificado na velhice). Não era sequer o fato de que ele só pareceu envelhecer visivelmente cerca de sete anos depois de 1974. Talvez fosse sua facilidade sempre progressiva de lidar com a ideia da morte, algo que parecia sugerir que ele sabia de alguma coisa que nós não sabíamos. Como vocalista do Velvet Underground, ele atingiu uma afinidade indiferente e niilista com a grande niveladora (em faixas como “The Black Angel's Death Song”), mas foi só depois, como artista solo, que ele descartou essa visão simplista e atingiu uma real percepção disso. Em discos como Berlin, Street Hassle, Songs For Drella e The Raven ele se tornou, se não a companhia constante da morte, pelo menos seu poeta laureado, o fumante inveterado de Ray Ban e jaqueta de couro tocando sua guitarra com afinação ostrich.

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Então, quando a esposa, amiga e musa de Lou, a artista performática Laurie Anderson, foi um pouco descuidada demais sobre a saúde dele no começo do ano (depois de seu transplante de fígado em maio, ela disse: “Isso é muito sério. Ele estava morrendo… Não acho que ele vá se recuperar totalmente…” — uma declaração que ela revisou um dia ou dois depois), nunca me ocorreu (e provavelmente para muitas outras pessoas) encarar as palavras dela com muita seriedade. Como uma pessoa dessas pode morrer? Como alguém que parece ser feito de pedra pode envelhecer e morrer?

Geralmente, eu suspeito de jornalistas de música que se mostram publicamente enlutados com a morte de um músico, só porque entrevistaram o cara uma ou duas vezes no passado. Mas quando soube da morte de Lou, coloquei “Street Hassle” para tocar e tive que desligar, não uma, mas duas vezes, porque isso se mostrou muito difícil. Mas acho que há uma boa razão. Em 1982, Brian Eno fez a declaração (geralmente mal interpretada) que apenas 30 mil pessoas tinham comprado o The Velvet Underground & Nico, mas que “todo mundo que comprou o disco começou uma banda”. Quando eu estava saindo do colegial em 1987, esse número parecia ter crescido exponencialmente. Na verdade, é difícil pensar em bandas que não devam muito ao VU — Jesus and Mary Chain, Loop, Spacemen 3, Pixies, Mercury Rev, Flaming Lips, Skunflower, My Bloody Valentine, Sonic Youth, The Wedding Present, The Blue Aeroplanes… Então, quando digo que fiquei perturbado ouvindo “Street Hassle” — que, aliás, é uma das maiores músicas já escritas — acho que posso afirmar que qualquer pessoa mais ou menos da minha idade vai dizer que sentiu o mesmo quando soube que o Lou morreu.

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Não foi a primeira vez que Lou Reed me perturbou. Falei com ele por telefone uns cinco anos atrás e essa continua sendo a entrevista mais tensa que já conduzi em 16 anos de jornalismo. Também foi — para minha vergonha — a única vez que bati o telefone na cara de um entrevistado sem avisar e com muito tempo de entrevista ainda pela frente (para dar um contexto, isso foi muito pior do que as duas entrevistas durante as quais fui esfaqueado). Depois da entrevista, senti que tinha alguma ideia de como é se envolver num acidente sério numa nave espacial em órbita geoestacionária ou ser sequestrado por um grupo paramilitar. Fiquei surpreso por não ter desenvolvido transtorno de estresse pós-traumático. No entanto, quando coloquei a fita para tocar, eu me senti imediatamente envergonhado; ficou claro que, apesar de ter me levado até o limite da paciência, ele realmente me deu toda a informação que eu precisava para escrever meu artigo. Pensando agora, talvez fosse possível identificar alguns sinais de um senso de humor muito seco em funcionamento, talvez até de um jogo — apesar de eu ter falhado vergonhosamente em entender quais eram as regras.

E ser mal interpretado não era somente a prerrogativa de Lou Reed, era seu trabalho. Não deveríamos nos perguntar por que ele agia assim, mas sim: onde está o porco beligerante? Onde estão os verdadeiros inovadores do rock 'n' roll em 2013? Onde estão os músicos capazes de levar jornalistas de música à beira de uma crise nervosa, e assegurar sua necessidade e direito absolutos de serem ARTISTAS acima de todas as outras considerações?

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Lou Reed nasceu em março de 1942 e, durante a maior parte de sua vida adulta, sintetizou o tipo de pessoa movida por um dínamo de impulsos conflitantes, ao ponto de parecer um cara desconfortável consigo mesmo. A narrativa popular de Reed como músico é a seguinte: ele era parte do Velvet Underground, que era barulhento e de vanguarda; depois, ele partiu para a carreira solo, lançando discos de glam rock no começo dos anos 1970; depois ele se estabeleceu em sua senilidade levemente chata de cantor e compositor aprovado pela South Bank Show. A verdade, no entanto, é muito mais complexa. Em nenhum momento de sua carreira ficou claro se ele era um artista de ruptura, um enrolador do hip rock ou um compositor sério — ele sempre transitava por esses modos de ser; em geral, quando era pior para aqueles à sua volta, seus críticos e até seus fãs.

Quando era adolescente, Reed gravou seu primeiro single como vocalista do The Shades em 1959. Era uma música doo-wop chamada “Leave Her”, mas isso não era só um modismo. Ele voltou ao rock dos anos 1950 no LP Coney Island Baby em 1975 e deixou seu amor por essa formula clara em 1989, quando introduziu Dion ao Rock & Roll Hall Of Fame.

Mais tarde, quando estava na Universidade de Syracuse, ele foi exposto à cena então florescente do free jazz e, na formatura, conheceu John Cale, que o apresentou à música e teoria de vanguarda de La Monte Young e John Cage. No entanto, paralelo a esse Reed, também existia um compositor do selo Pickwick, que escreveu um hit satirizando as danças da moda chamado “The Ostrich”.

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Verdade, no Velvet Underground ele foi parcialmente responsável por White Light/White Heat, um dos discos mais pesados e barulhentos feitos por uma banda de rock até aquele momento. A faixa título e a jam demorada e penetrante “Sister Ray” foram duas das músicas de rock underground mais influentes do final dos anos 1960. Mas a banda só se tornou o Velvet Underground de Lou Reed — sua visão –  durante 1969/1970, depois que Cale foi superado, e Sterling Morrison e Mo Tucker (e o novato facilmente manipulável Doug Yule) foram colocados de lado. Os discos resultantes — The Velvet Underground e Loaded — mal podem ser reconhecidos como sendo da mesma banda. A psicodelia selvagem e o barulho foram quase totalmente substituídos por uma face melodiosa e limpa pronta para as rádios. Mas mesmo isso não cabe numa narrativa prática, já que essa escalação do grupo foi responsável (em minha opinião, pelo menos) por um dos melhores momentos de Lou e um dos maiores discos de rock de todos os tempos: Live In 1969.

Anos depois, em 1975, a resposta e a severidade sonora do segundo disco do VU ainda estavam à espreita na esquina, como um bandido com um cassetete. Depois do sucesso de “Walk On the Wild Side” (1972); dos picos que asseguraram sua carreira, na forma de glam em Transformer (1972) e de sombras em Berlin (1973), quando parecia que ele estava finalmente livre para começar a se escorar na sua posição de grande estrela da década, ele lançou Metal Machine Music, um disco duplo de puro feedback de guitarra, tão perverso que ainda desafia uma interpretação lógica mesmo do ponto de vista de 2013.

E Lou continuou confundindo a maioria de seu público. Ele era a estrela do country rock do Growing Up In Public dos anos 1980? Ele era o poeta de vanguarda de boina do The Raven de 2002? Ele era o velho estadista do rock pesado que usou o Metallica como banda de apoio em Lulu de 2011, dois anos antes de sua morte? Ele era o autor supremo do pop adulto que, em 1990, apareceu em Songs For Drella?

Espero que tenha ficado claro no final de sua carreira é que ele não estava sendo hesitante, fútil ou indeciso. Ele estava simplesmente seguindo o caminho de sua mente, de seu próprio jeito; recusando-se a terminar seus dias como curador de sua reputação como membro lendário da banda de rock Velvet Underground. Ele percebeu o que muita gente não consegue: que quando você é a porra do Lou Reed, você pode — e deve – e precisa, mesmo — fazer o que quiser.

Descanse em paz, Lou. E obrigado.

Imagem por Marta Parszeniew: @MartaParszeniew