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Exame do Toque de Recolher: Itapecerica da Serra, Embu das Artes, Taboão da Serra

Resolvemos pedir pra que moradores das áreas além do Centro Expandido de SP nos dessem as suas versões dos acontecimentos.

Você, ó leitor, provavelmente está inteirado que a situação anda bem tensa nas periferias de São Paulo. O número de assassinatos é acachapante, os boatos são inúmeros — toques de recolher, novo ataque do PCC, o tal “Motoqueiro Fantasma”, uma guerra interna de facções de policiais pelo controle do tráfico de drogas, acertos de contas etc. As respostas do poder público estadual, até agora, são pífias (pique “não tá acontecendo nada de extraordinário”). Se você não leu nada a respeito ainda, sugerimos começar por estes quatro links

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Resolvemos pedir pra moradores das áreas além do Centro Expandido da cidade que nos dessem as suas versões dos acontecimentos. Hoje publicamos o quarto texto desta série, esperamos que seja de seu interesse. A matéria é da Mônica Canejo.

No caminho pra escola, minha filha de seis anos me diz: “Mãe, a Belinha disse que nem os adultos podem ficar na rua à noite por causa do toque de recolher”. Em dois dias, ela foi a quinta pessoa a me falar sobre isso. Uma amiga me conta que a escola noturna que ela frequenta está dispensando os alunos mais cedo e que nesse dia nem irá à aula. Ela, que é daquelas pessoas que lava mil vezes a alface porque tem medo de bactérias, finaliza: “Eu que não vou pagar pra ver”.

Os rumores de toque de recolher não se espalham apenas em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, onde moro. Tomaram conta de toda a periferia da capital e das cidades da região metropolitana, além da Baixada Santista. Ninguém sabe dizer ao certo quem é que está mandando as pessoas ficarem trancafiadas em suas casas durante a noite, mas vale o ditado: manda quem pode, obedece quem tem juízo.

Uma rápida passada de olhos pelas estatísticas justifica tanto juízo: o bicho tá pegando. Dados divulgados no dia 25 de outubro pela Secretaria de Segurança Pública mostram que, em setembro, os homicídios aumentaram 96% com relação ao mesmo período do ano anterior. Vou repetir: 96%!  Uma semana depois das eleições, o Governo Estadual, além de finalmente reconhecer que a coisa está feia e aceitar ajuda Federal, iniciou uma operação batizada de Saturação. A operação, que começou pela favela de Paraisópolis, já chegou a alguns bairros de Itapecerica e deve, em breve, ser estendida a outras cidades.

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Pros moradores da periferia, esses dados não precisariam sequer ser divulgados. Todo mundo sabe de um assassinato na rua de baixo, na frente do supermercado… As semelhanças entre os casos — geralmente alguém que passa de moto e dá tiros certeiros — também deixa claro que não pode ser coincidência. A sensação de que se trata de uma guerra entre o crime organizado e a Polícia Militar aumenta quando vemos o número de policiais militares assassinados, muitos quando estavam à paisana. Até agora foram cerca de 90 (em todo o ano de 2011 foram 48).

Em uma conversa por telefone, um sargento da PM de 45 anos morador do Jardim Ângela, na capital, me conta que, entre seus colegas, a versão que corre é que essa onda de violência surgiu por algo que ele chama de “questões políticas”. Em represália à transferência de alguns presos, o PCC — Primeiro Comando da Capital, a maior organização criminosa do estado de São Paulo — executou alguns policiais. Em represália à execução de alguns policiais, a polícia reagiu executando alguns membros do PCC. E por aí vai.

Nada garante que essa versão seja real, nem que todos os assassinatos estejam ligados a essa disputa. Mas é fato que ambos os lados, bandidos e mocinhos (se é que podemos chamar assim a polícia nacional recordista em “resistência seguida de morte”), estão em estado de tensão.

Sentada com as pernas ajustadas pela saia reta e com cabelos brancos que alcançariam as panturrilhas se não estivessem bem guardados em um coque, dona Ana, de 65 anos, mora com seu esposo e o filho de 32 anos. “Só pedindo a Jesus, a gente não pode fazer nada. É o trabalho dele.” Tanta resignação diz respeito ao filho Luiz Henrique, policial militar. Na igreja evangélica que frequentam, o rapaz já foi fotografado por um estranho e constantemente o telefone de casa recebe chamadas silenciosas. Na rua onde moram, num bairro próximo ao centro de Itapecerica, dois policiais passam as noites fazendo ronda pra proteger outro PM que está ameaçado de morte. O filho, tão religioso quanto, mas menos resignado que a mãe, só pede que Deus lhe dê “boa mira quando chegar a hora, porque será ele ou eu”. Mas se traficantes, ladrões e policiais vivem nesse clima de guerrilha, a população que não está em nenhum dos lados é o recheio desse sanduíche sangrento.

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Pra ver como os moradores estão percebendo a situação, faço uma visita ao bairro de Santo Eduardo, em Embu das Artes. Pra quem não sabe, Santo Eduardo é a quebrada da quebrada.

No fundo da lojinha de produtos naturais, quase escondida pelos pacotinhos de chás, sementes e variados tipos de farinhas supostamente saudáveis, a funcionária de cabelos cacheados me diz que tiveram que baixar as portas mais cedo no dia anterior. “A moça da escola de idiomas veio nos avisar que dois rapazes passaram por lá mandando fechar o comércio. Na rua todo mundo fechou.” Na sorveteria da esquina, porém, o dono disse que não soube de nada, apesar de estar bem ao lado da tal escola de idiomas. Atravesso a rua e entro num brechó. O rapaz que me atende também nega toque de recolher. Encomprido a conversa enquanto me mostro mais interessada nos sapatos do que no assunto. Então ele admite que sim, “é, às vezes acontece”. E num tom muito simpático, também me diz que posso levar aquele incrível par de sandálias de salto alto por apenas cinco reais. Então saio de lá com as sandálias e a convicção de que essa rede de desinformação é o clima que predomina.

Tiago, um eletricista de 26 anos que trabalha em Taboão da Serra e mora no bairro de São Marcos, outra quebrada de Embu com nome de santo, explica que o “não sei de nada” é sua tática de sobrevivência há muitos anos. Criado num ambiente em que os vizinhos tanto podem ser traficantes e assaltantes quanto policiais, Tiago percebeu que era preciso ser neutro se quisesse se preservar: “Se estou com a polícia, corro riscos. Se estou com os bandidos, também corro.” Nos últimos três meses, dez pessoas foram executadas só na sua rua, uma delas com 14 tiros no rosto. “É aterrorizante.”

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Ele conta que a abordagem policial também se tornou muito mais agressiva e os policiais passam avisando que, se encontrarem grupos andando pela rua à noite, vão atirar. Jovem e negro, Tiago é alvo predileto das abordagens policiais e já perdeu as contas de quantas vezes já foi revistado. Então, quando ele realmente precisa sair, toma o cuidado de não carregar nada, não usar boné e, se vir qualquer coisa “errada”, passar reto.

Entre os moradores de Embu, há outro fator que gera indignação: a eleição de Ney Santos, pela coligação PSC e PSDB. Em 2003, Ney foi preso em flagrante com uma metralhadora 9 mm roubando um carro forte no interior de São Paulo. Mesmo com o flagrante, saiu da cadeia em três anos após ter sido absolvido pelo Tribunal Superior de Justiça. Quatro anos depois, era o feliz proprietário de uma rede de 15 postos de gasolina, uma empresa de financiamentos, duas mansões, vários apartamentos e carros de luxo, incluindo uma Ferrari avaliada em um milhão e meio, acumulando um patrimônio que ultrapassava os 50 milhões de reais. As acusações contra ele vão desde adulteração de combustível e sonegação fiscal até formação de quadrilha. Mas o que realmente pesa é a suspeita de que tudo isso não passe de lavagem de dinheiro do PCC. Apesar desse currículo pra lá se suspeito, Ney se tornou o vereador mais votado do município, com 8.026 mil votos, o maior percentual de votos válidos de todo o estado.

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Os moradores se fazem duas perguntas: como ele conseguiu se safar das acusações? E o que vai ser daqui pra frente com seu mandato? De resto, é o clima de pânico disseminado que mais favorece a bandidagem ao lhe creditar tanto poder. Está claro que boa parte deste clima é fruto apenas da rede de boatos que se espalha muito mais rápido do que os riscos reais. Acredito que as chances de que eu sofra algum dano real caso saia por aí à noite são mínimas. Mas, como diria minha amiga que tem medo de bactéria, “eu que não vou pagar pra ver”.

Siga a Mônica no Twitter: @mcanejo e acompanhe seu blog e Flickr.

Tem toque de recolher na sua área? Quer contar pra todo mundo o que tá acontecendo aí? Mande seu e-mail pronosso Twitterque entraremos em contato.

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