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Exorcismo em massa no Cairo

O Padre Sama'an Ibrahim, sacerdote que comanda a coisa toda, construiu aos poucos a Catedral da Caverna pros coletores de lixo, durante os anos 80 e 90. Ele os encontrou vivendo em pecado e na miséria sem uma igreja própria e decidiu que era sua missão...

(Fotos por Omar H. Rahman)

No dia da primeira eleição presidencial do Egito, enquanto milhões de pessoas esperavam ansiosamente nas filas de cabines de votação por todo o país, eu estava em negação num lugar chamado Cidade do Lixo, procurando por uma igreja. Escutei boatos dizendo que nela um padre egípcio praticava exorcismos em massa.

Depois de passar algum tempo no Cairo, você acaba aprendendo a lidar com a sujeira. Numa cidade com 17 milhões de pessoas vivendo umas em cima das outras, você acaba se acostumando com o cobertor de fuligem, a fumaça dos carros e a poeira que inevitavelmente se assenta em todas as coisas. Mas a Cidade do Lixo, uma área urbana de prédios de tijolos inacabados na periferia do Cairo, provavelmente poderia concorrer como lugar mais sujo da Terra. Imagine um depósito de lixo transplantado dentro de uma cidade onde as pessoas comem, dormem e procriam, e você vai começar a ter uma ideia da realidade da Cidade do Lixo.

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Em 1969, o líder revolucionário pan-árabe egípcio Gamal Abdel Nasser reuniu todos os coletores de lixo do Cairo — uma ocupação tradicionalmente feita pela minoria marginalizada dos cristãos coptas egípcios — e os consolidou num subúrbio da cidade, aos pés da montanha de Mokattam, uma área deserta sem água corrente, tratamento de esgoto ou eletricidade. O que emergiu com o tempo foi uma cidade com lixo, literalmente escorrendo pelas janelas e portas. Famílias inteiras de lixeiros, lixeiras e crianças lixeiras trabalham juntas separando e reciclando os resíduos sem fim. O cheiro e a presença de moscas no clima mormacento já é o suficiente pra deixar qualquer um infeliz. Você fica imaginando como seres humanos conseguem viver assim até perceber que mesmo uma vida passada no meio do lixo, uma hora acaba se tornando normal.

A população da Cidade do Lixo é organizada e incrivelmente eficiente. Alguns trabalham apenas com plástico, outros com vidro. O lixo fornece um meio de vida aos milhares de residentes. A matéria orgânica costumava ser usada pra alimentar centenas de porcos, até que o governo matou todos por causa do pânico com a gripe suína três anos atrás.

Ouvi falar dos exorcismos em massa através de um amigo fotógrafo que vive no Cairo. A Igreja de São Sama'an, onde eles acontecem, fica dentro de uma enorme caverna na montanha Mokattam. Subindo a colina até a igreja, passei por uma pilha de ratos mortos, todos do tamanho de bolas de futebol. São Sama'an é conhecida como uma das maiores igrejas no Oriente Médio. O lugar tem assentos pra 20 mil pessoas. Na verdade, existem seis igrejas adjacentes construídas nos lados da montanha, juntamente com numerosos afrescos esculpidos nas fachadas de pedra mostrando cenas da Bíblia. O contraste com a Cidade do Lixo logo abaixo não poderia ser mais gritante.

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Os exorcismos são, em grande parte, mantidos em segredo. Um padre idoso os realiza pra cristãos e muçulmanos, uma coisa rara num país dilacerado por conflitos religiosos. Quando estive no Cairo no ano passado, depois da revolução épica de 18 dias, conflitos acontecerem devido a rumores de que uma mulher cristã que havia se convertido ao Islã estava sendo mantida refém no porão da igreja. Várias pessoas — cristãs e muçulmanas — foram mortas durante o surto de violência subsequente e a igreja foi incendiada.

O Padre Sama'an Ibrahim, sacerdote que comanda a coisa toda, construiu aos poucos a Catedral da Caverna pros coletores de lixo, durante os anos 80 e 90. Ele os encontrou vivendo em pecado e na miséria sem uma igreja própria e decidiu que era sua missão ajudá-los. Agora com mais de 70 anos, Padre Sama'an preside a paróquia da Cidade do Lixo, atraindo fiéis de toda parte. Muitos dos que frequentam os exorcismos são muçulmanos, ansiosos pra interagir com o sobrenatural.

Apesar do entrelaçamento amigável entre muçulmanos e cristãos, a Cidade do Lixo não ficou imune ao surto de violência sectária depois da histórica revolução egípcia. Muitos dos residentes com quem conversei optaram votar em Ahmad Shafiq, um general da aeronáutica aposentado ligado ao antigo regime que forneceu uma sensação de estabilidade à minoria dos cristãos copta do Egito.

Dentro do complexo, encontramos um homem chamado Magid, que ajuda nos afazeres da igreja. Ele nos dá um resumo da história da igreja e explica o que vai acontecer com os exorcismos: “Quando o padre menciona o nome de Jesus, o diabo é destruído. Você vai ver!”

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Aproximadamente duas mil pessoas lotam os bancos de madeira que rangem. Apesar da arquitetura ser impressionante, com uma enorme pedra pendente que cobre todo o anfiteatro, o culto da igreja é como todos os cultos de todos os tempos, ou seja, muito chato. Ficamos sentados lá por quase duas horas de canto e oração. Quando a noite desceu sobre a catedral da caverna, fui até a parte da frente, antecipando que o padre ia se aproximar dos loucos e dar início à coisa toda. As luzes diminuem, a música fica mais alta. Algumas das mulheres na frente começam a chorar e balançar, de olhos fechados em pleno devaneio espiritual.

De repente, ouço o uivo de um homem que parece ter sido esfaqueado. O padre — batina preta, longa barba branca e uma cruz dourada na mão — está segurando um homem de meia idade que convulsiona no banco. O padre pega uma mão cheia de água benta e joga no rosto do homem, recitando encantamentos bíblicos. O homem para de gritar e seus olhos rolam de volta pra frente.

O padre divide a multidão e vai até um grupo de mulheres. Gritos horripilantes ecoam pelas paredes da caverna. O padre estapeia as mulheres no rosto e cospe na boca delas. Ele até cospe em garrafas de água e dá pra elas beberem. As mulheres parecem aliviadas pelo coquetel de saliva. Depois que cada uma delas está curada, elas são marcadas com o que parece ser gloss labial, com desenhos nas mãos e nas testas. Duas das mulheres começam a vomitar depois que o exorcismo começa, mas em questão de minutos estão milagrosamente curadas. A multidão de espectadores, na maioria mulheres, aplaude.

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Alguns momentos antes, essas eram pessoas normais. Agora puxam agressivamente a perna da minha calça, implorando pra que eu chame a atenção do padre pra que ele venha confortar suas filhas. É um circo.

Talvez o exorcismo seja isso mesmo: uma maneira de dar conforto aos perturbados, um pouco de catarse espiritual pra limpar as coisas. Afinal de contas, nossos problemas estão todos na nossa cabeça mesmo, né? A cura está em nos fazer acreditar que estamos bem. E aqueles que veem o mundo pelo prisma de anjos e demônios provavelmente precisam mais do cuspe do Padre Sama'an do que do divã do Dr. Freud.

A coisa toda termina em menos de 20 minutos. Depois de tudo, pergunto pra uma das mulheres que estava possuída como ela está se sentindo.

“Me sinto ótima”, ela diz com um grande sorriso. “Graças a Deus.”