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Viagem

Fazendo o Toxicotur Equatoriano

Fomos até o meio da selva amazônica, repleta de dejetos da extração do petróleo deixados pela norte-americana Texaco.

Donald Moncayo, nosso guia, mostra como é possível caminhar sobre o petróleo por conta do emaranhado de raízes da vegetação.

É comum entre os equatorianos o orgulho de ser um pequeno país com quatro ecossistemas diferentes: Galápagos, as praias da costa, os Andes e nossa velha conhecida Amazônia. O país é um dos mais ricos em biodiversidade, e sua constituição prevê a defesa dos direitos aos ciclos do meio-ambiente e o controle de sua exploração por parte das comunidades locais. E isso, óbvio, é bom — fora o fato de ainda não ser posto em prática.

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A origem de uma constituição "verde" vem da supremacia indígena aliada a um passado tenebroso. Um dos passeios mais interessantes do país conta esse passado: o Toxicotur. É um passeio gratuito de um dia de duração que acontece no meio da selva amazônica. Tive a impressão de que, se o Darwin tivesse caído ali em vez dos Galápagos, teria escrito O Capital no lugar de A Origem das Espécies.

Apesar da aparente boa vontade do atual presidente de ver seu país livre do extrativismo, a falta de especialização, educação, tecnologia e indústria não deixa muitas saídas, a não ser recorrer aos minérios e ao petróleo. O lance é que, durante os anos 1960, 1970 e 1980, a extração ficou concentrada em um monopólio da petroleira norte-americana Texaco e essa galera resolveu inovar ali. Explico: um dos dejetos da extração do petróleo é a água de formação. Essa água sai junto com o petróleo e é rica em chumbo crômio e arsênico e, por lei, deveria ser estocada e reinjetada a 3.000 metros de profundidade, no poço de onde saiu. Ao invés de seguir a lei, a empresa achou que era melhor fazer as coisas do jeito mais barato e abrir uns buracos no chão do lado de cada poço e despejar ali mesmo. Bacana, né?

Donald Moncayo nasceu ali na região e é um ativista membro da Unión de los Afectados por Operaciones de la Petrolera Texaco, associação que congrega as 30 mil pessoas que processam a empresa por atividades irregulares. Ele é pai de uma filha de dois anos e até hoje vive no sítio que era de seus pais. O sítio fica a duzentos metros do poço Lago 2, o segundo aberto no entorno da cidade de Lago Agrio. Seus pais morreram cedo, quando ele tinha treze anos. Ambos de câncer.

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O Donald faz o Toxicotur através da entidade, então o passeio não é cobrado — a única despesa é o custo do motorista com o carro. Fato divertido: Brad Pitt e Angelina Jolie são dois dos ilustres que já vieram conhecer essa história. Enquanto estamos na caminhonete, Donald explica que, na região, várias cidades foram afetadas e que o número de piscinas conhecidas hoje chega a 880. O problema no mapeamento é grande, pois, além da descoberta de um memorando da sede norte-americana da empresa dizendo que todos os documentos relacionados ao caso deveriam ser destruídos, algumas das piscinas foram soterradas para que a empresa conseguisse a liberação para sair do país, como um reparo ambiental.

Casas proximas à piscina coberta do Poço 20.

Vamos ao poço Lago 20 e, a 100 metros dele, encontramos um caminhão de água enchendo uma caixa d'água de uma casinha. Algo meio estranho num dos lugares mais ricos em recursos hídricos no planeta. Donald ajuda o morador com um reparo na torneira e, ao terminar, nos conta: "Aqui no Lago 20 tinha uma piscina aberta". Ele conta que o gado da senhora que mora nessa casa vivia caindo ali dentro e então eles precisavam puxar as vacas para fora do lodo preto. As que sobreviviam já não serviam para mais nada. As piscinas, quando enchiam, eram incendiadas em um fogo que durava até um mês. A fumaça subia e, quando caía a chuva, vinha preta, tingindo todas as superfícies possíveis. Chuva ácida.

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Donald tira um objeto metálico comprido da caminhonete e diz que vai mostrar que a piscina ali foi uma das soterradas pela empresa. Em trinta centímetros de solo, a dois metros da porta da casa, começa a sair uma pestilência de químicos, um cheiro podre e inacreditável de diesel. Pedaços de terra se diluem nas poças de água e começam a formar manchas coloridas, furta-cor, pescoço de pombo. Não precisa explicar muito. Mas Donald explica ao descermos um morrinho atrás da casa. Ali tem um riacho e, como as piscinas corriam o risco de transbordar por conta das intensas chuvas tropicais, elas têm um ladrão de água que ajuda o escoamento antes do limite da borda, canalizando para um rio próximo. Dito isso, pegou uma vareta e cutucou o leito do riacho. Subiram bolotas de óleo preto na água.

Saímos de lá e vamos visitar outro poço, o Lago 30, que fica na beira da estrada. Chegando lá, um tubo de metal parecendo um incinerador de gases sobe da terra e acaba no ar, aparentemente sem função. Ouvimos um "Bucet..!" escapar por entre os dentes de Don Moncayo e, sem dizer nada, ele pega um pau comprido com um pano na ponta que estava ali no canto e acende com um isqueiro. Aproxima a chama da ponta do tubo e o fogo lambe o ar. "Isso é gás tóxico, se ficar apagado mata quem estiver por perto." Há 100 metros dali tem uma escola, um pouco mais adiante tem um pesqueiro e, ao lado e bem próximo, uma casa.

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A empresa nega sua responsabilidade sobre as piscinas. Seu advogado no Equador, Adolfo Callejas, fez afirmações de que esse petróleo não tem o logo da empresa e nem pode ser vinculado como causa de câncer de tanta gente. O argumento de que a incidência de câncer na cidade de Quito é muito maior também já foi usado, desconsiderando-se que é em Quito que a maioria dos Afectados faz seu tratamento hoje. No Equador a empresa foi condenada na Corte Provincial de Sucumbíos. Ainda falta uma instância de recurso, em Quito, para definir se efetivamente a empresa tem culpa ou não. Se a causa for finalmente ganha, ainda há o trabalho de cobrar a conta. Como a empresa não possui mais ativos no país, serão necessárias ações onde ela segue atuando para obter acesso ao dinheiro. Estão sendo movidas ações na Argentina, Colômbia, Canadá e Brasil.

Dos 20 bilhões de dólares exigidos, 30% são custeio da ação e dívidas do processo e 70% se destinam à reparação de danos ambientais. Esse share serviu de argumento para que a os advogados fossem acusados de fraude e extorsão ante a justiça norte-americana, mas apesar do ganho de causa na Corte do Distrito Sul de  Nova York, instâncias superiores decidiram que julgar o caso não era de sua competência, e sim do país de origem.

De volta ao percurso, fomos visitar os poços Aguarico 4 e 5. No primeiro, uma camada de samambaias cobriu a piscina, formando uma capa. É tanto tempo, que a deposição de folhas das árvores ao redor formou uma camada de nutrientes, permitindo o crescimento de plantas em algo tão tóxico. É possível caminhar sobre as folhas fazendo um movimento de ondas em toda a vegetação. Somos convidados a subir ali, mas não, obrigado. Em Aguarico 5 não tinha nada, só uma plantação de coco para a produção de óleo de cozinha e buracos formando poças de petróleo. São comuns as plantações de cacau e palmito em terras assim.

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Sacolejando na caminhonete, o motorista Joselo conta que trabalhou por 13 anos fazendo limpeza e manutenção em acidentes e derrames para as petroleiras estatais. Ele trabalhou, por exemplo, no terremoto de 1987, que destruiu vários dutos de transporte do líquido, causando um belo estrago na região. Ele, seus companheiros de trabalho e superiores nunca tinham ouvido falar das piscinas. Como estão no mato e ali a população é pobre e circula pouco, não é tão evidente assim o que aconteceu.

Foto da placa de obras do Museu do Petróleo.

O crescimento que a cidade teve nos últimos anos não foi afetado por essa notícia. A cidade tem água encanada hoje, mas o abastecimento não chega no campo todo. Saí perguntando às pessoas e procurando nos espaços públicos alguma dica oficial (um folheto que fosse) de que talvez não seja muito bom abrir um poço artesiano, mas não encontrei nada. Já sobre os benefícios da exploração petroleira, tem muitos outdoors divulgando estradas, energia, progresso, aeroportos, tudo graças ao líquido da terra. Até um museu do petróleo está em construção próximo ao poço Lago1.

O incinerador do Poço Shushufindi 61 elimina gases tóxicos na queima. A prática é legal e esse poço hoje é operado pela empresa estatal Petroecuador.

Chegando à cidade de Shushufindi, encerramos nosso passeio com uma visita à piscina do poço Shushufindi 61. Essa está bem visível até hoje, embora as margens já tenham um pouco de vegetação. O incinerador ainda está ativo. É um dos maiores da região, e queima coberto por uma fileira de grandes árvores dando seu recado: estamos a todo vapor.

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Poço Lago 30, que conta com um incinerador mesmo localizado a 100 metros de uma escola.

Donald Moncayo dissolve em água um pouco da terra coletada próxima ao Poço Lago 2 para que o petróleo solte e suba na superfície.

Em seguida, oferece o material para que Javier, estudante de direito internacional, possa sentir o cheiro.

Pessoas nadam em rio sob dutos de transporte de petróleo.

Ermel, um dos guias do Toxicotur, mostra a luva manchada de petróleo na piscina coberta do Poço Aguarico 4.