Peludos em Santos, como foi a convenção furry do Brasil
Foto: Larissa Zaidan

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Peludos em Santos, como foi a convenção furry do Brasil

Curtimos um sábado de sol com os furries, as pessoas que levam a sério a subcultura em que personagens peludos são criados a partir de características animais e aspectos da personalidade humana.

Está matéria foi atualizada no dia 23 de setembro às 10:34.

O mormaço de Santos, cidade no litoral paulista, fazia toda a cena passar em câmera lenta. Eram mais de 40 pessoas na avenida principal da cidade, à beira da praia, desfilando com fantasias multicoloridas e peludas. Muito peludas. A ponto de parecer que a seção de pelúcias de uma loja de brinquedo ganhou vida e saiu para a rua. Eram fantasias de cachorros, felinos, cangurus e criaturas fantásticas como dragões, grifos e unicórnios acenando para adultos estarrecidos, crianças implorando para que os pais chegassem perto do desfile e cachorros de verdade puxando a guia das coleiras para pegar aqueles estranhos animais andando sobre duas pernas. Alguns moradores dos suntuosos prédios da orla tiravam fotos em suas varandas. Outros transeuntes, sem melindres, relatavam em voz alta a aflição que sentiam vendo aquelas pessoas enfrentado o clima quente e úmido dentro de vestimentas tão pesadas. Um grupo de moleques chavosos chegou a parar suas bikes em frente ao estranho desfile para simular que estavam pegando Pokémons. Embora as faces de quem estava fantasiado estivessem cobertas com cabeças gigantes, era possível entender que estavam gostando da atenção. Alguns balançavam as caudas enormes em resposta. Puxando os fantasiados, um jovem anunciava com um megafone: " Fursoal, cuidado na hora de atravessar a rua!". O desfile que quase parou a avenida era uma das atrações do segundo dia da Brasil FurFest, a convenção dedicada ao furry fandom.

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Um grupo de garotos intrigados com o desfile de furries faz o famoso gesto para capturar um Pokémon. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

Sabe quando você sente que foi um pouco longe demais no seu mergulho na internet? Com certeza em uma dessas excursões virtuais você já deve ter esbarrado no furry fandom. Mesmo sem perceber, você já viu alguém escrever no 4chan ou no Reddit algo sobre os furries. Essa obscura subcultura, formada por pessoas entusiastas de criaturas antropomórficas, está presente onde você menos imagina. Fandom é um termo usado para definir uma comunidade que se junta para apreciar algum fenômeno cultural, seja um filme, série, livro ou um personagem mesmo. E furry significa, literalmente, peludo na língua inglesa. Então, o furry fandom é basicamente um encontro de qualquer pessoa que gostam de personagens peludos que fundem características animais e aspectos da personalidade humana. Na internet, assim como muitos fandoms, essa personalidade se manifesta principalmente na produção de conteúdo. Existe uma extensa literatura furry, quadrinhos, ilustrações, animações, vídeos e até música sobre o furry. Existe até uma pornografia furry, chamada "yiff".

Talvez elas sejam a própria internet. De qualquer forma, durante os dias 9, 10 e 11 de setembro de 2016, dezenas dessas pessoas que você só imaginava existir no mundo virtual estavam ao vivo e a cores reunidas para celebrar a subcultura numa convenção no Mercure Hotel, em Santos. O mote do evento: Peludos em Santos.

"O furry fandom é basicamente um encontro de qualquer pessoa que gostam de personagens peludos que fundem características animais e aspectos da personalidade humana."

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Nesse dia em que acompanhei convenção a sensação geral era de felicidade. Pessoas de todas as idades e tipos circulavam pelas salas de reunião onde palestras, workshops de desenho e um torneio de Magic: The Gathering estavam rolando. Grande parte dos presentes ainda não estava fantasiado, mas era possível ver de relance um lobo com roupas sociais pegando um elevador até seu quarto (muitos se hospedaram no próprio hotel) ou pessoas sem fantasia usando uma cauda presa na calça engatando uma conversa animada com outros participantes vestidos de unicórnios ou felinos. Até um repórter de outro veículo estava de tênis de pelúcia, discretamente apoiando o evento, e eu mesmo estava radiante em poder materializar anos de stalking que fiz com o furry fandom.

A convenção reuniu 160 pessoas. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

A convenção foi organizada por meio de crowdfunding e reuniu cerca de 160 pessoas, segundo os organizadores. Em menos de 13 dias conseguiram atingir a meta de R$ 6 mil para executar a ideia. Considerando que a subcultura é ainda restrita aos porões da rede mundial de computadores, foi um êxito surpreendente até para os próprios organizadores. "Incialmente, começamos a organizar o evento pensando em 50 pessoas", me explicou Patsy Purrfect, tesoureira do evento.

Patsy Purrfect é a "fursona" de Patrícia — um termo que se refere ao alter ego que os fãs do furry criam para si. No caso de Patsy, ela vem na forma de uma gatinha vira-lata azul e branca, muito fofinha. A fursona de cada participante estava escrita nos crachás de identificação, trazendo também a espécie e uma foto que representa o personagem. Um ótimo quebra-gelo para quem está sem conhecidos no evento.

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Os furries possuem liberdade de poder criar sua fursona a partir da imaginação. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

Ao contrário do cosplay convencional do fandom de anime, os furries possuem liberdade de poder criar sua fursona a partir da imaginação. Ela pode ter inspiração em um personagem já existente, mas não é regra geral. "A gente cria os personagens, que são autorais na sua grande maioria, e usamos o avatar desses personagens na internet", explica Patsy. "Não é uma regra geral, mas algumas pessoas criam a fursona de acordo com sua personalidade, inserindo suas características, mas também muitos preferem criar algo completamente diferente quando querem sair um pouco da persona real delas."

Patsy conheceu o furry fandom no Second Life ("tem uma comunidade bem grande lá"), em 2003, mas só foi se inserir no meio quando seu marido, o chairman do evento, conheceu a cena entre 2012 e 2013. O furry fandom, no entanto, existe desde os anos 80, inspirado de animações infantis com personagens antropomórficos como Looney Tunes e derivados.

No Brasil, o fandom está deixando de ser embrionário e dando pequenos passos em rumo ao reconhecimento internacional. Nos corredores do evento, existiam pessoas que já contavam 10, 15 anos como furry. Alguns eventos já aconteceram antes do FurFest, como a Abando que de fato é primeira convenção dedicada ao fandom que aconteceu em um camping a partir de 2008. Os mesmos organizadores da FurFest já faziam pequenos encontros em boliches em São Paulo chamados de "Furboliche". "A gente não tinha nenhum encontro que fosse bom para usar a fursuit, então buscamos um lugar que fosse fechado e não tivesse sujeira para se usar a fantasia com mais facilidade", relembra Patsy sobre os primeiros eventos.

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As fursuits são fantasias usadas na vida real para representar a fursona. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

As fursuits são fantasias usadas na vida real para representar a fursona. O desfile que mencionei no começo do texto, por exemplo, foi formado por todo mundo do evento que possuísse uma fursuit completa (que cobre o corpo inteiro) ou parcial, que conta pelo menos com a cabeça da fantasia. A referência mais mundana e palpável que consigo mencionar aqui são os mascotes de eventos esportivos e/ou corporativos — ou os personagens do Trenzinho Carreta Furacão que você conhece bem.

"Precisa de muito pouco pra fazer parte da comunidade. Basta ser um furry." — Danny Lauderdale

Assistindo aquele tanto de gente envolta de camadas grossas de material peludo e pesado, percebi que os furries certamente batem o recorde de resistência ao calor até mesmo se postos numa competição com os góticos de Manaus . "É muito quente", descreveu o chairman do evento, que atende pelo apelido de Danny Lauderdale, sobre as fursuits. "Duro no máximo 20 minutos dentro de uma fursuit, parado." Danny Lauderdale é a fursona de Daniel, que é marido de Patsy há dez anos. Daniel trabalha como designer gráfico em uma grande rede de televisão do Brasil e encara o furry como um simples hobby. "Sou apaixonado por bichinhos. E quem não é?" diz.

Daniel possui duas fursonas. Uma é Danny, um canguru bonachão, e a sua irmã, Sally, uma versão mais meiga do irmão. "São dois personagens bem grandes porque sou gordinho", explica o organizador. Para Daniel, a parte mais divertida do furry é poder ter a liberdade em interpretar os personagens dentro de sua fursuit e também de poder criar algo a partir da própria imaginação.

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Este pequeno cachorro não estava nada feliz com toda a situação. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

Um aspecto interessante das fursonas é que não existe nenhuma obrigação de que ela tenha o mesmo gênero de seu dono. Assim como Daniel, que possui uma segunda fursona fêmea, muitos participantes da convenção também mostravam liberdade em montar seu alter egos. "Fiz a Sally como uma brincadeira mesmo, mas eu gosto muito dessa parte de ter de representar o personagem na hora de usar a fursuit. Talvez seja uma frustração minha por nunca ter feito teatro", explica.

As possibilidades da subcultura são atraentes. Criar um alter ego para se comunicar com a comunidade, além de precisar ter uma imaginação fértil para criar uma fursona que represente o que você quer passar e que também tenha uma boa história por trás, segundo os próprios organizadores, é o que faz o furry fandom ser um lugar muito inclusivo.

"A comunidade aceita bastante todos os gêneros e sexualidades", explica Patsy. "Se você é homem, mulher, trans, gay, hetero, assexual, não importa e não é relevante no furry fandom. Você pode ser quem quiser. O grau de instrução, cor, também não fazem diferença."

De fato, havia um equilíbrio visível de homens e mulheres no evento. Inclusive até na seleção de palestrantes do evento o número de mulheres se igualava ao de homens.

Todo mundo queria uma foto. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

"Precisa de muito pouco pra fazer parte da comunidade", Daniel adiciona. "É inclusivo do ponto de vista que você não precisa ser fursuiter, escritor, desenhista ou até mesmo nem precisa de gostar de animais. Basta ser um furry."

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Ser fursuiter não é nada obrigatório, mas é um status bastante almejado entre quem é membro dessa comunidade. Para uns, como Danny, se vestir como seu personagem furry é apenas um hobby de interpretação de personagem, para outros, é uma forma de se mostrar ao mundo sem ter as barreiras da timidez ou a baixa autoestima no seu caminho.

"Quando não sou o Wolsky sou mais tímida, mais na minha", conta a garota de 19 anos que, assim como a maioria dos entrevistados, preferiu ser identificada na reportagem a partir da sua fursona, um híbrido de lobo e husky chamado Wolsky. "Quando eu peguei a minha referência, o Wolsky parecia meio macho, e eu decidi ele assim — na verdade eu deixo as pessoas decidirem. Se você achar que é fêmea, é fêmea."

Fragmentos de alter egos: fursuits esperando seus respectivos donos em uma sala reservada para quem estava fantasiado. Para evitar desmaios, a organização deixava garrafas de água espalhadas pelo evento e mantinha o ar-condicionado no máximo para refrescar os participantes. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

Muito tímida, Wolsky conta que sua fursona é uma maneira de encontrar mais liberdade. Com a fantasia cobrindo seu corpo, se sente mais livre, se diverte mais, dança e adora explorar as coisas. Wolsky gastou R$ 1.200 na sua fursuit, que demorou um ano e meio para ficar pronta. É um tipo de produto que não é feito com tanta frequência do Brasil e dá para contar em uma mão quantos artesãos de fursuits existem no país. Alguns participantes mencionaram que o preço de uma fursuit parcial pode variar de R$ 500 a R$ 3 mil, dependendo do que foi solicitado. Porém, apesar de ser muito almejada na comunidade, a fursuit não é imperativa para você ser parte do fandom.

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"Somos uma família mesmo." — Niki

Uma pequena sala foi reservada para quem fosse usar sua fursuit no evento. A entrada era restrita só para os fursuiters, mas todos os participantes, muito simpáticos, me liberaram o acesso, que estava com o ar-condicionado ligado no máximo para garantir mais conforto. Lá, foi possível ver que vários participantes vieram de outros países (especialmente da América Latina) para prestigiar o evento. A comunicação parecia mais difícil já não é fácil escutar as vozes deles por trás das gigantes cabeças de pelúcia. Para evitar desidratações e desmaios, garrafas de água também eram deixadas em alguns cantos estratégicos da sala exclusiva e pelo mezanino.

Usar a fursuit pode parecer só diversão, mas é perigoso. A roupa pode sujar ou rasgar facilmente, além de restringir os movimentos do corpo e a visão periférica, dependendo da cabeça de pelúcia. Por isso, um médico estava presente no staff para assistir casos mais graves — embora não tenha rolado nenhuma ocorrência mais grave além de um furry esbarrando em algum distraído nos corredores do hotel.

Uma cabeça de fantasia repousando na sala exclusiva para fursuiters. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

"O que estou mais esperando é o pessoal desmaiando e ficando desidratado por causa das fantasias, que são muito quentes. A pessoa sua muito e está naquele momento distraído, esquece de se refrescar e de tomar água e quando percebe já está mal", explica Gray Wolf, médico que estava com sua esposa, Niki, responsável pela segurança da convenção. Ambos são furries, lógico.

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"Antes de colocar a fursuit já precisa estar hidratado. Jamais faça isso sem tomar bastante líquido, jamais faça isso com o estômago muito cheio. Sentiu que vai passar mal? Tire a cabeça e vá para a sala que tem ar condicionado e beba muita água sempre. É importante observar os outros também. Como nós não vemos a face da outra pessoa, podemos não ver se ela está passando mal. Então é necessário prestar bastante atenção na linguagem corporal, se ela não está se mexendo muito ou está muito quieta, vai lá e pergunta se ela precisa de ajuda. O principal mesmo é observar o próprio limite. Notou que está se sentindo mal, peça ajuda pra garantir que alguém possa te tirar a cabeça", resume Gray, explicando as principais dicas médicas.

Gray é um jovem de 30 anos de Curitiba. Conhece o furry há mais de dez anos e tem três filhos junto com sua mulher. Ambos ainda não estavam com suas fursonas, reservadas para a hora do desfile. O médico montou sua fursona a partir de sua própria personalidade, ou seja, o lobo cinzento é uma versão antropomórfica de si mesmo.

"Antes de colocar a fursuit já precisa estar hidratado." — Gray

"Eu queria dizer que o furry é um hobby, mas realmente é uma coisa que eu gosto bastante. É um hobby que entrou um pouco mais na nossa vida", explica Gray sobre o fandom. Já Niki, sua mulher, contou que os dois filhos do casal foram apadrinhados na vida real por Patsy e Danny e mais outro casal do fandom. "Somos uma família mesmo", explica ela.

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Fazer parte de uma comunidade que se une graças a um gosto em comum parece trazer um aspecto positivo na vida de quem não consegue se encaixar nas rodas, digamos, mais convencionais. O furry não foge disso. É um espaço democrático para todo mundo se divertir, seja você um renegado, um nerd, tímido ou apenas estranho. Se gosta de furry e souber respeitar, será parte daquilo.

Todos migos. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

"Eu acho que eu teria muito menos amigos do que eu tenho agora se não tivesse entrado para o fandom. Eu era muito tímida até eu entrar, agora sou mais extrovertida", conta Pepper, adolescente de 14 anos que estava acompanhada da mãe, que parecia se divertir com a filha vendo aquele encontro tão inusitado.

"É um passo a mais para se sociabilizar. É assim que eu vejo", responde Lars, que veio de Salvador para participar da convenção. A jovem de 19 anos estava com sua fursuit para usar durante o desfile e muito animada, já que em Salvador é praticamente impossível colocar um casaco até em épocas invernais. "É uma coisa que me ajudou, de personalidade no geral, me ajudou a conversar, fazer amigos."

Furries se divertem antes de colocar suas fantasias e desfilar na avenida principal de Santos. O jovem que está todo de branco é o paraguaio Slayder Funbridge, de 26 anos, que descobriu o fandom em 2006. "O fandom num fim de semana levanta a autoestima de uma maneira impressionante. Estou muito feliz, na abertura cheguei a chorar de emoção, estou aqui no primeiro evento da América do Sul!". Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

Naquele mezanino que abrigou a convenção, ninguém parecia estar de fora. Crianças, adolescentes — acompanhados dos pais — jovens de menos de 30 anos e marmanjos que já pagam impostos como um membro comum da sociedade, faziam parte de uma só comunidade naquele espaço. Até eu, que não possuo uma fursona e sequer conhecia aquelas pessoas, fui muito bem recebida na convenção. Sem olhares estranhos ou qualquer ar de superioridade, lá era um espaço para os furries se sentirem bem.

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Um cheiro forte de suor, no entanto, se misturava com o cheiro de ar-condicionado do hotel, tornando a atmosfera mais, digamos assim, cremosa. Ninguém parecia se importar. Nem eu me importei depois de algumas horas. O furry é o que é.

"A parte adulta acaba dando uma má reputação para a nossa comunidade." — Gray Wolf

Assim como qualquer fandom que desperte um estereótipo mais "nerd", os furries sofrem preconceitos por nutrirem o hobby. Especialmente porque a subcultura costuma ser misturada com um fetiche sexual e, em casos mais extremos, com zoofilia. Frases como "go yiff in hell" e "furrys fags" são xingamentos comuns em redes sociais que os usuários usam para avisar que não querem os furries por perto. Coisa comum também para quem é do anime fandom ou os próprios bronies.

Na convenção ficou claro que os organizadores se preocupavam com essa imagem atrelada ao furry. A classificação é livre, então era expressamente proibido participar usando uma fantasia que simulasse genitais e os seguranças do evento (também furries) estavam a postos para evitar qualquer tipo de contato afetivo que passasse de um abraço. "Temos uma folha de ocorrências aqui, se a pessoa levar três ocorrências a gente comunica o Danny e vamos decidir se a pessoa vai ser simplesmente expulsa desse evento, ou, dependendo da gravidade, banida dos próximos eventos", explicou Niki.

"Yiff" é um termo guarda-chuva usado para designar a parte sexual do furry fandom. Ele remete ao som emitido pelas raposas árticas na hora do acasalamento, é um acrônimo também para Young Incredibly Fuckable Furry (Furry Inacreditavelmente Jovem e Transável, em tradução porcamente livre), e é usado também para descrever o sexo entre dois furries. "O yiff são coisas sensuais pra cima. É tipo uma pornografia do fandom", explica Patsy.

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Pelo fato de a internet ser esse lugar insalubre e muito fértil para o bullying, os furries acabaram ficando marcados como um tipo de comunidade mais voltada para o fetiche. Por isso a frase "go yiff in hell" é tão disseminada em fóruns por aí. "Eu não diria que sou contra," conta Gray. "Mas a ênfase nisso é tão grande que acaba por ofuscar o resto. A parte adulta acaba dando uma má reputação para a nossa comunidade. "

Furries reunidos no desfile do segundo dia da convenção. Sim, estava quente. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

Um infeliz evento que envolveu a comunidade furry foi a série policial CSI: Las Vegas conhecida pelo investigador mala metido à intelectual Gil Grissom que retratou a comunidade no quinto episódio da quarta temporada como se fosse uma reunião de pervertidos sexuais. Foi uma dor de cabeça em 2003 para os furries, desencadeando uma visão preconceituosa do fandom.

Para os organizadores do evento, é inevitável de que o fandom seja fetichizado, assim como qualquer coisa outra coisa. "Regra 34", menciona Patsy sobre a regra informal da vida online. "Considerando que existe até pornô com aviões na internet, não me admira que isso aconteça no fandom."

Na convenção, se tivesse alguém que nutrisse o fetiche, essa pessoa esteve no armário durante o evento. Era proibido qualquer ato que remetesse ao yiff e nenhuma palestra no evento era sobre o assunto. Durante algumas entrevistas com os participantes, percebi que as assessoras de imprensa me acompanhavam para ver se minha presença procurava demonizar o fandom. Em outras ocasiões, admito que ficaria irritada, mas entendi a razão do controle.

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"Na Europa, onde existe uma comunidade bem grande [de furries], não se mostra como uma coisa estranha. Entretanto, nos EUA me parece que é uma cultura muito Fox News, onde tudo é errado. Aqui no Brasil, das poucas interações que tive no mundo real, 99% foram positivas. As pessoas vêm, pedem para tirar foto, acham fofo. Eu acho que é uma coisa cultural do Brasil, de carnaval, de fantasia, acho que é uma coisa mais intrínseca na nossa cultura. De maneira geral acho que [as pessoas] nos veem como [algo] estranho, mas não como algo negativo", analisa Danny.

"As pessoas do fandom apreciam muito quem cria personagens. " — El Rano

O yiff é retratado muitas vezes por meio de ilustrações envolvendo os personagens antropomórficos em situações sensuais, sexuais ou até mesmo com pitadas de gore. O uso de desenhos vai muito além do yiff — na verdade o furry fandom venera os artistas independentes que se dispõem a desenhar ou escrever sobre o universo. "Os artistas são muito valorizados no fandom", explica Patsy.

Marc Knelsen, conhecido como El Rano, é um deles. Há quatro anos, quando largou seu emprego como designer gráfico, começou a se interessar pelo furry e hoje vive de fazer ilustrações encomendadas por membros da comunidade. Ele foi um dos palestrantes do dia, ensinando algumas diretrizes de como ilustrar personagens furries.

Não é preciso ter uma fursuit pra ser um furry. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

O gaúcho de 28 anos radicado em São Paulo é uma figurinha bem conhecida entre os furries, mesmo sem se considerar um. "Eu não tenho uma fursuit também", explica o ilustrador antes de começarmos a conversar. Porém, por entender a comunidade e se empenhar na construção de personagens, é uma espécie de celebridade para quem é entusiasta do negócio. "As pessoas do fandom apreciam muito quem cria personagens. "

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Embora não seja necessário ter uma fursuit no furry fandom, as ilustrações conseguem imprimir exatamente como seus criadores enxergam sua fursona. Junto com a literatura furry, as ilustrações são um dos principais conteúdos criados no meio. É algo bastante valorizado, já que com um desenho do seu personagem você pode se apresentar melhor na internet. Muita gente que não pode desenhar recorre a ilustradores profissionais para adquirir um avatar.

Já a literatura, outra arte apreciada no meio, era representada na convenção por Cristalwolf, que publicou seu primeiro livro, Lua de Lã, por meio de crowdfunding. No segundo dia do evento, Cristal autografou as cópias do seu livro e também presidiu uma palestra sobre a literatura furry.

Cristalwolf, escritora de literatura furry, autografando cópias de seu primeiro livro após fazer uma campanha pelo crowdfunding. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

Para Cristalwolf, o furry fandom vai muito além de qualquer hobby ou diversão. O fandom é sua vida, porque Cristal não se identifica como uma humana, ela se identifica como outro animal. No caso dela, um lobo azul. Em termos mais "acadêmicos" isso é chamado de teriantropia.

Cristal conta que se sente dessa forma desde que se conhece por gente. Quando era pequena já sentia falta de ter pelos no corpo e andar de quatro patas. Descobriu que era um lobo na primeira vez que ouviu o uivo de um pela televisão. Como é impossível se tornar uma criatura feral, ela teve depressão profunda em várias fases de vida e tentou se suicidar algumas vezes. "É um vazio muito grande que eu não consegui curar até hoje", conta.

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A criação religiosa bastante rígida de Cristal também contribuiu para sua depressão. Ela casou dentro desse regime familiar autoritário e, com isso, foi tentando se "adestrar" para se adequar ao mundo normal. Após muitos anos de fandom, Cristal finalmente decidiu se assumir

"Assumi para todo mundo que eu sou um lobo". — Cristalwolf

"Assumi para todo mundo que eu sou um lobo", relata a escritora que trabalha como diretora de arte em uma agência na cidade de Santos, onde nasceu. "Eu ouvi e ouço até hoje que é uma fase, mas as pessoas são obrigadas a aceitar." Cristal conta que quando se assumiu no trabalhou ouviu uma avalanche de risadas e perguntas preconceituosas sobre sua sexualidade. "Eu esperei as risadas cessarem e perguntei: 'Por que é tão engraçado?'"

"Eu comparo muito a causa furry com a causa homossexual e também com a causa transexual. É uma luta parecida, porque se trata de respeito", conta. Ela começou a escrever como uma válvula de escape para sua depressão e faz parte do fandom desde 2003, quando descobriu em salas de bate-papo que existiam pessoas que também se identificavam como teriantropas e que também entusiastas da arte furry.

Kage, irmão de Niki, colocando sua fantasia para o desfile. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

A escritora não possui um fursuit e nem uma fursona, porque ela simplesmente se sente como um lobo azul sem gênero. Assim, Cristal criou uma segunda família no furry fandom. Um lugar acolhedor para conversar sobre assuntos em comum e livre de julgamentos. Foi essa família que contribuiu no Catarse para que a escritora levantasse R$ 5 mil para comprar um novo computador e escrever seu romance. Segundo Cristal, a comunidade é um lugar seguro para pessoas como ela.

"Você já notou que no nosso meio tem muita gente com depressão ou outros problemas psicológicos? Então, são pessoas que fora daqui o mundo vai arregaçar com elas, eu inclusa nisso. Se não fosse pelo fandom, eu não conseguiria me assumir para o mundo", se emociona.

Confinada naquele pequeno cosmo dentro de um hotel de convenções, não pude deixar de concordar com Cristalwolf. Mesmo eu estando lá como uma outsider, que nutria um olhar exotificado em cima dessa comunidade tão inusitada que são os furries, fui inegavelmente bem recebida. Aquele lugar cheirando a corpos humanos suados era um local seguro para que essas pessoas possam externar suas ideias e possam conversar sem ter vergonha de quem são.

Furries unidos. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

Ali ninguém te mandaria latir no inferno ou te julgaria por gostar de se vestir dos pés a cabeça como um híbrido de grifo e coruja, um lobo cinza, uma gatinha sapeca ou um unicórnio colorido. Um lugar onde um jovem de 24 anos, vestido como um híbrido de gato e morcego, me chamou alegremente para comer no McDonalds porque os encontros de furries são uma maneira de poder fazer novas amizades sem medo de julgamentos.

"O fandom é 100% minha vida. Em todos os ângulos. São pessoas que te acolhem. Quando falam mal eu fico puta, porque é minha família. Eu sempre vou lutar pelo fandom", diz Cristalwolf antes de enfrentar a fila de fãs querendo seu autógrafo.

Antes do desfile, vendo todas aquelas pessoas reunidas para tirar fotos e balançar seus rabos, compreendi um pouco daquele pequeno mundo que antes se desbravava apenas em threads infinitos em fóruns virtuais. Aquele momento era como se o existisse de fato um habitat natural para aqueles furries viverem em harmonia com o mundo. Um lugar onde crianças sorriem e pedem uma foto e até adultos se divertem. Aquelas fantasias, grandes e peludas, são grandes imãs de abraços.

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