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Entretenimento

Adeus Goulart de Andrade

O jornalista e apresentador que morreu nesta terça (23), aos 83 anos, deixa sua empatia rueira e seu apreço pelos baixios do mundaréu como legado que ainda vai influenciar muitos jovens jornas desse novo século.

Foto Reprodução/ Youtube

Na redemocratização, o Brasil ainda era uma várzea. Detentores do amargo título de pior distribuição de renda do mundo, éramos um país longe de se inserir na dinâmica do consumo global, ao mesmo tempo em que contávamos com pouquíssima proteção estatal — só existia atendimento médico para quem tinha carteira assinada ou era formalmente aposentado, pelo antigo INAMPS. A exemplo de grande parte da Europa, contávamos com pouquíssimos canais de teledifusão, mas, diferentemente das democracias de primeiro mundo, nenhuma delas era pública. Dependendo do rincão onde você estivesse, nunca conseguiria imaginar que o Brasil viraria o Brasil que conhecemos hoje ao desenvolver sua nova identidade urbana.

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Era nesse tempo que Goulart de Andrade reinava nas nossas madrugadas. O apresentador, que morreu na madrugada desta terça-feira (23), aos 83 anos, era responsável pelo Comando da Madrugada, programa da TV Bandeirantes. Começara a carreira na TV Rio, em 1958, e passara por inúmeros programas da Globo — o último deles, Plantão da Madrugada, embrião do Comando. Nos anos 80, "censura" havia se tornado um palavrão incontestável, e Goulart acabaria por testar os limites desse novo país liberado, madrugada após madrugada.

Eu não lembro qual foi o primeiro Comando da Madrugada que assisti — na verdade, não lembro de um programa inteiro, eles se embaralharam todos na memória até que o YouTube viesse para retificar as lembranças. Colocando a cara na frente da câmara, de óculos largos e cabelos rebeldes, repetia seu bordão, num convite para a aventura: "vem comigo". E com ele íamos. Goulart não tinha medo da noite, e através da sua lente tomamos contato com os mais diferentes e marginais aspectos dessa nova grande metrópole, a maior da América do Sul, a cidade que nunca dorme.

Seu estilo imersivo, como todos os bons, era difícil de copiar, e de muitas maneiras, adiantou um tipo de jornalismo em vídeo que teria ecos até aqui nesta VICE. Goulart despejou na sala de estar do brasileiro (ninguém tinha televisão no quarto nos anos 80 para os 90) travestis, marginais, boemia e violência. Mostrou Juqueri , Carandiru e FEBEM, três dos nossos mais representativos depósitos de gente indesejada, pelo lado de dentro. Deixava a câmera rolar, em longos planos sequência, com cortes estranhos, iluminação errada — era como se Rogério Sganzerla dirigisse o Jornal Nacional. Seus documentos eram apresentados com calma e lucidez, e com uma empatia inaudita na TV brasileira de então. Seu programa sobre travestis, por mais "incorreto" que pareça hoje, é um retrato direto e imediato desse "terceiro sexo" tipicamente nacional, com direito a muito pajubá, silicone industrial e violência policial.

Goulart também foi um bom mestre. Muito cedo, deu oportunidade a Fernando Meirelles e Marcelo Tas, que produziram o maluco " Antenas" na TV Gazeta sob sua supervisão (falando em Sganzerla, ele aparece ali apresentando seu curta Brasil). Nos últimos anos, na Faculdade Cásper Líbero, comandava ao lado de seus alunos o Vem Comigo, ensinando o mesmo tipo de jornalismo imersivo que aprendemos a admirar. Parece que foi cedo que Goulart nos deixou, mas a sua empatia rueira e seu apreço pelos baixios do mundaréu constituem uma lição e um legado que ainda devem influenciar gerações de jornalistas neste novo século.

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