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Comida

Percebi que eu era um clichê: um escritor bêbado que não consegue escrever bêbado

Percebi que estava perdendo dinheiro.

Como nosso autor se vê. Still de 'Medo e Delírio'

O xerez pura sacarina cor de mijo vem numa garrafa de plástico transparente de 750 ml com uma tampinha preta bosta e custa US$ 7,89, o que o torna 40% mais forte e 25% mais barato que uma garrafa de vinho medíocre. Resumindo, é um jeito absolutamente nojento e econômico de ficar bem louco.

Dediquei a maior parte de 2014 a duas coisas: ingerir uma quantidade hedionda desse veneno e escrever artigos de jornal por dinheiro, nessa ordem. Então enquanto o pessoal que mora comigo tinha empregos de verdade na construção civil e em escritório, eu bebia, escrevia e gastava o dinheiro que ganhava escrevendo com bebida, fingindo viver no angustiante ideal desbravado pela Santa Trindade do Pileque, Hemingway, Hitchens e Hunter S.

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Os dias começavam às 10 horas; o álcool, ao meio-dia. Só depois de pegar a fila atrás de um cara sem-teto visivelmente embriagado na loja de bebidas e perceber nosso interesse em comum por apera canadense Kingsgate Reserve que quatro questões igualmente lamentáveis e relacionadas começaram a bater: a) minha escrita exagerada jamais conseguirá se comparar com a obra de meus heróis literários; b) duas dessas lendas tiraram a própria vida e a terceira se matou de fumar; c) eu estava comprando uma versão ligeiramente mais pomposa de Listerine e d) fazer a linha escritor alcoólatra é de um romantismo perigoso.

Apesar dessas reflexões, comprei a garrafa, bebi quase tudo nas três horas seguintes e passei o resto da noite jogando Borderlands 2 afundado em um pufe enorme em vez de trabalhar. Isso logo se tornou recorrente nas minhas noites, porque jogar FPS bêbado é hilário, mas também um grande impedimento para o cumprimento de prazos. Uma vez, esqueci completamente que tinha que fazer um artigo e meu editor teve de correr e dar um jeito de fechar a edição.

Arte e bebida alcoólica sempre tiveram um relacionamento nebuloso, mas parece que os escritores possuem uma chave para a forma mais extrema e sacal de autoglorificação sobre o tema. Passe uma hora em uma redação ou um círculo de escritores – ou, pior, em uma aula de escrita criativa cheia de alunos sedentos demais – e é certo que você ouvirá todo um sortimento de piadas infames de tiozão sobre esconder garrafas de uísque na gaveta e beber antes do meio-dia: o ex-editor da Slate Jack Shafer uma vez lamentou o fim da era Mad Men, quando "os alcoólatras eram celebrados ou pelo menos brindados nas redações pela imoderação heroica". Alheio a tal endeusamento ficava o fato de que muitos desses repórteres eram cuzões misóginos ou pseudoconservadores do contra.

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Não se pode negar que existe uma hora e um lugar para o álcool no processo jornalístico. Para mim, é muito mais fácil entrevistar rappers ou CEOs depois de alguns goles de alguma coisa. Mas esses prazeres podem rapidamente se tornar um hábito problemático, que culminou comigo conduzindo uma entrevista por telefone às 9 horas da manhã com uma teóloga ecofeminista católica de 79 anos, eu zonzo de vinho de caixa (para falar a verdade, foi muito divertido, apesar de ela não ouvir bem e ter ficado gritando no telefone a ligação inteira).

Eu superava a classificação aparentemente conservadora da agência canadense de estatísticas relativa ao "consumo pesado de álcool", de "cinco ou mais doses, por ocasião, pelo menos uma vez por mês no último ano", quase todo dia, muitas vezes antes do sol se pôr. E aí as lojas de bebida de Manitoba começaram a vender latas de 473 ml da minha IPA favorita por US$ 2,50, levando inevitavelmente a dois meses de farra com mais ou menos 250 calorias por lata. Em outras palavras, metade do meu consumo diário de calorias se dava através de cerveja. A despensa no nosso quintal logo ficou cheia de latinhas vazias. Por sorte, a escrivaninha em que eu trabalhava ficava em um cômodo com piso laminado, tornando muito mais fácil muito a limpeza de sujeiras ébrias do que, digamos, carpete.

O álcool certamente permite uma eficiência de escrita excepcional. A primeira vez que fiquei bêbado foi com sidra Growers acampando na Colúmbia Britânica com a família, e depois fui serpenteando até o lago e rabisquei meia dúzia de poemas semilegíveis sobre uma angústia qualquer em tipo 15 minutos. Hoje, posso escrever 800 palavras em algumas horas com algumas doses de gim. Infelizmente, o tipo de assunto que me interessa – uns bagulhos mais cáusticos sobre política e meio ambiente articulando muita entrevista e pesquisa – exige muito mais apuração e atenção às escolhas linguísticas. Esse trabalho, assim como concatenar um artigo acadêmico, exige disciplina e consciência. Pela minha experiência, o álcool conduz particularmente nessa direção.

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Pesquisas e artigos sobre o tema corroboram isso. Embora possa ajudar a desencadear formas de livre associação de expressão criativa (tipo rabiscos adolescentes à beira do lago ou o cara que fez vários autorretratos sob efeito de 52 drogas diferentes), a bebida alcoólica geralmente reduz a precisão do pensamento que depende de traços como memória e linearidade. Por isso a discussão tende a ficar consideravelmente menos produtiva depois da terceira ou quarta cerveja, fazendo com que a emoção fale muito mais alto que a racionalidade. Então, claro, eu conseguia trocar ideia com a divertida dupla de rappers Run the Jewels às 10 horas da manhã naquele limiar entre estar zonzo e bêbado (cortesia do drinque caseiro à base de Everclear da minha amiga, presente ofertado especificamente para a tarefa), mas traduzir a experiência em uma narrativa que fizesse sentido era uma empreitada árdua se eu não ficasse um pouco sóbrio.

Por absurdo que seja, minha paixão por xerez bosta – e, quando eu estava inspirado, uma garrafa de 750 ml de malbec Copper Moon – era uma coisa sobre a qual eu sutilmente fazia graça em situações sociais, talvez na esperança de conquistar um pouco daquela apreciada imagem de bad boy que não tive ao deixar de ir ao baile da escola para jogar Star Wars no videogame com os amigos. Não deve ter dado certo. Apesar disso, minha anedota padrão por quase um ano inteiro foi o causo de não conseguir terminar uma matéria de capa no prazo porque fiquei preso em Indiana num domingo (dia em que tem uma proibição disparatada da venda de bebidas).

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No meu Ano do Xerez, eu me dissuadia do aspecto prejudicial da prática, reatribuindo aquela frase já equivocadamente atribuída a Hemingway sobre escrever bêbado e editar sóbrio. O problema é que essa escrita deliberada não é só uma questão de escolha de palavras (que se pega em uma revisão rápida), mas afeta coisas como a progressão temática. Foder com um argumento na primeira parte pode gerar horas de retificação, pois erros lógicos criam uma bola de neve de bobagem sentimental e incoerente. É assustador como a minha memória é ruim, mas há algo de particularmente inquietante em revisar artigos antigos – às vezes para consulta e outras para alimentar o ego na cara dura – e não lembrar quando ou onde eu estava quando escrevi o material. Por outro lado, é particularmente estranho ler seu próprio argumento e pensar, olha, faz sentido.

Sejamos justos, é mais fácil fazer piadas engraçadas sobre pinto estando bêbado, mas raramente isso serve como base para argumentos herméticos sobre os méritos de um salário mínimo mais alto ou da regulação dos créditos de carbono. Como diz o professor überburguês Joseph Heath, da Universidade de Toronto: "Não se pode fugir do fato de que é difícil explicar a maioria das opiniões progressistas moderadas". A apresentação de alternativas radicais para a sociedade merda em que vivemos tende a exigir um tanto de imaginação. Mas também exige uma reflexão racional para que tais ideias sejam apresentadas em uma argumentação lógica. A bebida pode ativar aquela, mas raramente esta.

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Sempre haverá sábios que desafiam o problema: James Joyce e William Faulkner eram grandes alcoólatras e mestres da técnica. Mas a maioria de nós da plebe funciona em uma frequência diferente. Aceitar isso é de uma importância infernal. E talvez seguir outros modelos: David Foster Wallace e Stephen King, embora autores muito diferentes, têm em comum o fato de que produziram alguns de seus trabalhos mais inteligentes depois de parar de beber (Graça Infinita e O Iluminado ambos serviram, em parte, como meditações sobre o alcoolismo).

Isso não quer dizer que abandonei a bebida como atividade obrigatória para escrever: tendo a oscilar entre a abstemia e a dipsomania de tempos em tempos com uma dedicação fervorosa a cada uma delas. O problema para mim é que a tentativa de criar uma justificativa para beber sozinho – poder fazer piadas mais engraçadas sobre pinto – pode rapidamente levar a apenas beber sozinho o tempo todo. O que pode não ter problema para algumas pessoas, mas meu gosto por uísque com soda é um tanto excessivo. Junte isso a uma temporada de Fargo e qualquer vulto de produtividade desaparece. No dia seguinte à bebedeira, mais álcool tinha de ser ingerido para entorpecer a ressaca e conseguir fazer com que eu me concentrasse no trabalho. Essa habituação custa centenas de dólares por mês. Resumindo, na essência eu estava perdendo dinheiro escrevendo.

A imagem da mente bêbada, eficiente e criativa é de fato proeminente. Talvez seja hora de admitir que a maioria de nós que tentamos colocá-la em prática acaba virando apenas um bando de escritores medíocres, alcoólatras e patéticos. Mas fale comigo na semana que vem e provavelmente estarei cantando outra melodia, quiçá com uma garrafa de alguma coisa na mão.

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Tradução por Aline Scátola.