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João Silvério Trevisan

O cara é um dos escritores mais corajosos vivos - criou o primeiro grupo de apoio aos direitos gays no Brasil e ajudou a fundar o jornal homossexual O Lampião da Esquina.

RETRATOS POR JAMES STREET E DANIELLE SALLES

FOTOS DE ARQUIVO CORTESIA DE JOÃO SILVÉRIO TREVISAN A primeira vez que eu encontrei o João Silvério Trevisan foi depois de trocarmos uma ideia por e-mail. Eu tinha adicionado ele no meu Facebook por pura admiração, o cara é um dos escritores mais corajosos vivos – criou o primeiro grupo de apoio aos direitos gays no Brasil (o Somos), ajudou a fundar (em plena ditadura) o jornal homossexual O Lampião da Esquina, foi cronista de uma revista em que ex-BBBs e afins aparecem pelados de pau duro todo mês, e sempre falou mal da mídia conservadora. E, apesar de tudo isso, ganhou vários prêmios oficiais como o Jabuti, que geralmente fica entre os baba-ovos da literatura nacional. O Trevisan não teme se queimar no mundo cheio de viadagem dos autores consagrados, mas reconhece que a posição que tomou às vezes prejudica o reconhecimento da sua arte. Seu livro mais recente, Rei do Cheiro, narra a saga de um menino que se torna milionário criando perfumes em São Paulo e acaba gastando a grana com muita orgia e pó (alguém pensou que “cheiro” era só por causa dos perfumes?). Antes dessa entrevista, a gente deu uma volta pela Galeria Metrópole, conhecida como point gay dos anos 80 e frequentada por Roberto Piva. Reclamando das panelinhas na mídia cultural, ele me disse uma coisa que eu já tinha ouvido, mas que naquele momento fez muito mais sentido: “Se você não aparece, é como se você não existisse”. Depois a gente subiu até o apartamento dele, em frente à Praça da República, e a conversa foi a seguinte. VICE: Seu último livro, Rei do Cheiro, é sobre um magnata dos perfumes. Você teve alguma razão para escolher esse mundo tão específico?
João Silvério Treisan: Nem sei dizer se tem um interesse particular na coisa do cheiro, mas na minha primeira novela, que nunca publiquei e que se chama Os Sete Estágios da Agonia, eu já falava do dono de uma empresa de perfumes, um produtor de aromas. Na época cheguei a investigar o assunto, apesar de ser um projeto que não envolvia tanta pesquisa. É um projeto completamente diferente, mas acho que isso ficou no meu rol de interesses e encantamento. Além disso também tem a coisa das sujeiras que envolvem o mundo dos grandes empresários e que é o grande enfoque do livro, não?
Quando tive a primeira ideia de fazer Rei do Cheiro, meu interesse era escrever um livro sobre como surgia uma grande fortuna brasileira, um projeto sobre a burguesia paulista. E aí acho que espontaneamente entrou a questão do cheiro. Conheci um conterrâneo meu que tinha uma grande loja de zíperes na 25 de março, chamada Rei do Zíper, e aí você sabe como essas coisas são na criação, você vai juntando aqui e ali e surge um projeto. Então de certo modo retomei a primeira novela, que talvez saia pela minha nova editora, a Tordesilhas. O final desse livro tem um clima apocalíptico que me lembrou vários jogos de videogame. Viver em São Paulo te dá a sensação de que o mundo vai se acabar logo mesmo. Parece que a cidade está para explodir a qualquer momento.
Pois é. O final do Rei do Cheiro já trata de uma explosão. Termino o romance com os ataques do PCC em 2006. A meu ver, aquilo foi de uma gravidade que tanto a sociedade quanto os políticos não querem se dar conta. O que acontece nos presídios é um sintoma de como está o país. Os ataques do PCC paralisaram a maior cidade da America do Sul e todos os mecanismos do capitalismo brasileiro, e isso já é sintoma de que as coisas estão num grau avançado. São Paulo é um sintoma do Brasil. Mas se você prestar atenção na estrutura final do romance, você encontra uma metáfora. O personagem vê na rua um grande anúncio publicitário do lançamento de um perfume, cujo slogan é uma citação do Shakespeare, dizendo que a vida é um sonho. Então ele descobre que o tal desenvolvimento nacional é um sonho e que a realidade é só destruição?
Sim, é a partir desse anúncio que você vê o desabamento de São Paulo, mas é também o desabar do capitalismo e da nossa civilização. Ele é apocalíptico sim, mas não num sentido exclusivamente relacionado com a cidade de São Paulo. Tomo a cidade como um sintoma. Quando no final faço variações em torno do lema paulistano “não sou conduzido, conduzo”, invertendo-o, “sou conduzido, não conduzo”, é porque o PCC naquele momento estava conduzindo a cidade, então esse é o contexto em que se dá o desmoronar do capitalismo que a cidade de São Paulo representa. Toda aquela proposta de escatologia do final dos tempos tem como mote o texto do Shakespeare. O seu livro parecia prever esses desastres civis que têm ocorrido hoje no país.
Olha, a cada vez que acontece um evento como o massacre do Realengo, eu realmente sou remetido ao final do Rei do Cheiro. Para mim isso também está lá no romance, de alguma maneira. Me fale sobre Devassos no Paraíso, que é um ensaio histórico sobre os gays no Brasil. Um livro assim precisava ter sido feito, e deve ter exigido muita pesquisa. É verdade que o mundo acadêmico não gosta do Devassos?
Claro que é verdade, porque o livro não está dentro dos padrões consagrados pela academia. E ela é tão limitadinha que não se deu conta de que fiz o livro justamente para não ficar nos padrões acadêmicos. Fui rigoroso para que a pesquisa tivesse validade, utilizo vários tipos de documento como referência. E aí chego ao ponto de fazer um capítulo em primeira pessoa, que é a parte sobre a fundação do movimento homossexual no Brasil. Abro o capítulo dizendo que eu seria hipócrita se me distanciasse dessa história, já que sou o fundador do grupo Somos, o primeiro grupo homossexual de São Paulo. Não tinha como não mencionar minhas experiências do período. E isso é um ponto que a academia acha absurdo: misturar experiências pessoais com pesquisas documentais. Além disso, expresso algumas das minhas opiniões políticas muito críticas à esquerda brasileira. Critico a direita e seu conservadorismo, mas também as tentativas cínicas da esquerda de controlar o movimento homossexual. E isso me criou vários problemas com muita gente, principalmente pessoas ligadas ao PT. A maneira como o PT se relaciona e manipula os movimentos sociais começou com o grupo Somos em São Paulo. É um fato histórico pouco estudado. E apesar disso tudo, hoje o Devassos é um livro esgotado. O que te levou a entrar na luta a favor dos direitos gays?
Foi uma consequência natural de me assumir. Sou uma pessoa muito inquieta por justiça, não é à toa que tenho problemas dentro da esquerda. Não acho que nenhum partido político seja dono da justiça e da verdade. Nenhum credo político nem religioso, e em geral os partidos adotam a mesma posição das religiões. Então acho que essa minha preocupação com a justiça e com o preconceito contra os homossexuais me levou a buscar saídas. Em 1973 fui pros EUA fazer contato com a nova esquerda americana, que estava à frente dos enfoques políticos de vanguarda, como a luta feminista, racista, ambiental e anti-homofobia. Naquela época isso já estava fervendo nos EUA, e lá aprendi coisas fundamentais pro resto da minha vida. Quando voltei para o Brasil, trouxe comigo um conhecimento muito grande do movimento de liberação homossexual, e aí achei que estava mais do que na hora de implantar uma coisa parecida por aqui, até porque as esquerdas brasileiras eram conservadoras demais, ainda muito voltadas para a luta de classes. O Somos era um grupo de amigos pirando numa luta revolucionária? Eu imagino uma galera gay pensando em fazer algo sério e botar o terror na política enquanto outros mais enrustidos tentavam matar seus desejos gays em lugares secretos gays escondidos da sociedade não-gay.
Na verdade não foi entre amigos que surgiu o Somos, porque quando fui pros Estados Unidos e passei três anos fora do Brasil, perdi contato com todos eles. Pior ainda, os amigos que tinha deixado aqui acharam um absurdo as ideias que eu trouxe. A primeira tentativa que fiz de criar algo antes do Somos foi um fiasco porque eu só encontrava jovens de esquerda que tinham um problema de culpa por serem homossexuais. Eles se sentiam culpados porque, ao lutarem pelos direitos gays, não se viam engajados nas supostas lutas fundamentais do povo brasileiro—que eram as tradicionais lutas da esquerda. Eles achavam que a batalha contra o preconceito homossexual era secundária. E como foi que você, Aguinaldo Silva e outros caras conseguiram criar um jornal de conteúdo político gay em plena ditadura? Imagino que dava para vocês conversarem sobre esses temas entre amigos, mas como foi produzir e distribuir o Lampião da Esquina?
Tudo era muito complicado no Lampião. Não foi nada fácil criá-lo e mantê-lo. A gente teve que montar toda a distribuição porque os caras não queriam expor nas suas bancas. O jornal foi distribuído do Rio Grande do Sul até o Amapá com a ajuda de colaboradores locais. Era uma maluquice. A Abril, por exemplo, distribuiu por um tempo mas depois parou, não quis mais. Nas bancas, o jornal ficava escondido. Chegar na banca e pedir o Lampião era um certificado de viadice. Além disso, a gente tinha um problema crônico: a falta de grana. Não tinha ONG nem nada disso. A equipe se dividia entre São Paulo e Rio, uma edição era feita lá, outra aqui. Um tempo depois não pudemos dar continuidade a essa alternância, aí ficou tudo no Rio, onde era encabeçado por Aguinaldo.

Fora a dificuldade em distribuir, deve ter sido meio perigoso criar uma mídia que misturava linguagem gay e discurso político.
Na verdade, desde o começo foi bem polêmico. O jornal tinha um ponto de vista homossexual direcionado a essa comunidade, mas não apenas a ela. A nossa ideia, que era muito avançada pro que acontecia até então, entrava em conflito com a esquerda ortodoxa, que era totalmente voltada para a luta de classes e os sindicatos. Essa era considerada a luta maior da esquerda. Então o Lampião promoveu a união do que seriam as lutas menores. Nossa proposta era que toda luta política tinha que caminhar junta. Houve brigas muito sérias porque a esquerda ortodoxa tinha aquele sonho de revolução de classe. Algumas feministas até chegaram a ser agredidas fisicamente num congresso nacional. Era uma coisa bem brava, porque a esquerda era muito bitolada na luta contra a ditadura e na busca pelo socialismo. Mas a gente entrou de cabeça junto com feministas, com o movimento negro e com índios. A gente fez campanha até contra os projetos de desmatamento da Amazônia durante o governo de Figueiredo. Mas vocês já falavam sobre os direitos dos gays?
Era o nosso objetivo principal. E pra isso a gente teve que meter o pé na porta, porque não havia nenhum espaço. Até porque ninguém falava dos gays: as lésbicas, os negros, esses grupos não falavam sobre a defesa dos direitos gays, mas a gente fez isso em aliança com eles porque ninguém no jornal queria criar uma segregação política. O Lampião chegou a fazer uma entrevista com o Lula, não?!
Uma das que deram maior repercussão foi o do Lula, que já era um líder sindicalista. Na entrevista ele dizia que no proletariado não havia homossexuais. E aí as bichas metalúrgicas ficaram furiosas. A gente começou a receber cartas com cópias de identidades de metalúrgicos que diziam “Olha aqui meu RG, eu sou metalúrgico e sou viado”. Não sei por que nunca resgataram essa entrevista, mas hoje em dia o Lula é muito protegido, tem toda essa muralha ao redor dele pra preservar sua imagem. Essa nossa entrevista foi feita nos tempos em que Lula ainda era apenas o Lula sindicalista. E os intelectuais não eram às vezes meio homofóbicos para aceitar colaborar com o jornal?
A gente nem ia buscar esse tipo de gente para colaborar no Lampião. E dentro da equipe não tinha atrito desse tipo. A gente só abria o jogo sobre quem era gay com os que se assumiam, inclusive estrangeiros, como o Peter Fry, que colaboraram no jornal. O problema que tivemos foi com as lésbicas, algumas mais conhecidas não quiseram se agregar. Nós nunca entendemos bem por quê. Mas nós gays éramos considerados um escárnio da história, e mesmo quando havia alguma compreensão pelos outros intelectuais de que nossa luta era importante, eles não se interessavam. Havia na Paulista uma livraria de uns trotskistas chamada Kairós, que vendia o Lampião. Eles nos contaram que o Fernando Henrique comprava o Lampião lá, mas sempre mandava embrulhar. Quer dizer, era um dos poucos que tinha interesse, mas ainda tinha o cuidado em não ser visto. Tinha uma galera que tremia de medo de ser empurrado pra fora do armário?
Ah sim, a gente sofreu até uma investigação pelo Ministério da Justiça, e um dos motivos era a suposta homossexualidade do então Ministro da Justiça, Armando Falcão. Umas bichas do Ceará mandaram material do começo da carreira dele, em que adversários políticos faziam referência maldosa à sua homossexualidade. Esse tipo de cara morria de medo. Me lembro também que um ator famoso, casado mas gay, ficou furioso quando o Lampião apareceu. Mandou uma carta dizendo que o jornal era um absurdo. Ele achava que a gente ia fazer uma campanha de outing, dando nomes aos enrustidos. Às vezes a gente até fazia uma sacanagem, mas nada sério. O Glauber Rocha, por exemplo, que dizia coisas muito agressivas sobre os gays, sofria com nossas ironias. Quando ele disse no Pasquim que a Grécia só entrou em decadência por causa da homossexualidade, a gente chegou a fazer gozação sobre o pau dele [risos]. Tinha muito humor no jornal, porque a gente queria resgatar a linguagem da subcultura gay. Nós não tínhamos nenhum pudor quanto a isso. Numa coluna escrita pela personagem Rafaela Mambaba, havia uma sessão para o vocabulário gay. Bicha de tudo quanto é canto mandava as gírias e os significados da época. Dá pra enxergar alguma mídia comparável ao Lampião hoje?
Nem de longe. Pode ser mais chique, mais metida. O Lampião era feito em papel jornal, a gente forjava a capa colorida. Era uma impressão ruim. A diagramação não era nada especial. A gente tinha muito cuidado sim, mas não tinha grana. O cuidado com as capas era nas ilustrações. Por exemplo, teve uma que foi encomendada a um artista plástico e ele fez uma caricatura do Fidel Castro vestido de Carmem Miranda. Foi um dos números que menos vendeu, porque era muito sério, ao denunciar a perseguição aos homossexuais em Cuba. As bichas queriam saber era de homem pelado e coisas picantes. Mas a grana era mesmo a maior dificuldade. A gente vendia também livros com temática homossexual, por reembolso postal. Nosso sustento vinha das assinaturas e da venda desses livros, porque a oferta de títulos era bem escassa. Eu mesmo ia num depósito de ponta de estoque aqui em São Paulo e comprava os livros por baixo preço, que depois o Lampião vendia pelo correio, com algum lucro. O jornal acabou por causa de grana?
Além do problema da grana, no final, ele começou a trazer coisas muito apelativas. Eu pessoalmente quis acabar com o Lampião, não queria que virasse um Notícias Populares pra viado. A gente estava correndo esse risco, de fato. Fui até o Rio para tentar convencer o pessoal de lá. Achava que o jornal tinha cumprido sua função. Aí decidimos encerrar a publicação, depois de quase três anos de atividade.