Karl Ove Knausgård é um superstar da literatura e isso não precisa ser um problema
Crédito da imagem: Fotoarena.

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Entretenimento

Karl Ove Knausgård é um superstar da literatura e isso não precisa ser um problema

O escritor best-seller norueguês que ~arrancou suspiros~ na Flip é uma estrela, mas também um cara comum que bota o lixo pra fora, se empolga pra falar de futebol e tem uma obra foda.

Antes de começar a conversa com o mediador, o escritor Karl Ove Knausgård leu, em inglês, um trecho de seu livro que acaba de ser lançado no país, Minha Luta 4 – Uma temporada no escuro (Companhia das Letras). Apesar de toda a desenvoltura — uma surpresa, de certa forma — parecia haver algo de estranho naquilo tudo. Talvez fosse o fato de ele estar encenando a si próprio.

Foto por Fabio Uehara/Divulgação

E por que caralho esse cara tá falando para uma plateia de desconhecidos sobre como era difícil pra ele comer uma mina aos 18 anos? E por que toda essa gente (eu, inclusive) fica tão fascinada lendo milhares de páginas sobre a vida desse sujeito, contada nos mínimos detalhes?

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Knausgård é o homem por trás de uma série de seis romances autobiográficos que é sucesso de público e crítica em mais de 30 países. Em 2013, o autor cancelou de última hora sua participação na Festa Literária de Paraty alegando "problemas pessoais" — o que é uma anedota involuntária maravilhosa, já que a essência dessa saga são os problemas pessoais mais íntimos e banais do autor.

A mesa do escritor, que aconteceu na sexta-feira, dia 1º de julho, era uma das mais aguardadas na programação da Flip. Não só pela expectativa gerada pelo coito interrompido três anos atrás, mas pelo sucesso que a história mundana de sua própria vida tem feito.

Foto por Fabio Uehara/Divulgação

A popularidade desses livros com certeza tem muito a ver com o narcisismo do nosso tempo, a cultura da superexposição, exibicionismo, voyeurismo etc, mas não é só isso. Até porque não é só do relato minucioso do cotidiano do escritor e da exposição de sua intimidade que a série é feita.

O que Knausgård consegue fazer em Minha Luta é criar essa sensação de que estamos testemunhando no texto a vida como ela é, em toda a sua complexidade. Está tudo ali, pilhas de louça pra lavar, o lixo pra botar pra fora, as frustrações, as tretas de família, o papo filosófico com os amigos, as bebedeiras, tudo ao mesmo tempo.

Pode parecer chato, mas tem gente, como a escritora Zadie Smith, que tem lido isso como quem fuma crack — palavras dela. Não era a intenção de Knausgård quando ele começou a escrever a série, mas ele percebeu que ao mergulhar fundo em si mesmo atingiu… o outro.

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Foto por Fabio Uehara/Divulgação

"Eu imaginei que ninguém ia querer ler aquilo, porque era muito pessoal, muito centrado em mim mesmo, mas os leitores sempre me falam de como aquela história se conecta com a deles", disse o escritor.

E o curioso é que essa conexão não se dá por um lado fácil da personalidade de ninguém. Minha Luta é uma obra sobre vergonha, sobre fracasso, sobre morte, sobre o inconfessável. O que só deixa a "Karl Ovemania" mais interessante.

O escritor fez a fama de ser péssimo comunicador. Mas ali, no palco, ele não parecia tão deslocado. Estava bem vestido, com um terno bege, sem gravata, camisa branca e sapatos marrons. Foi simpático, parecia bem humorado. É muito bem articulado e não fugiu de nenhuma pergunta.

Senhoras e senhores. Estou me lixando para vocês

No dia anterior, antes de se apresentar ao público, o escritor recebeu jornalistas em uma pousada em Paraty (RJ). Quando o homem entrou na sala para a coletiva de imprensa tomou um susto: "Oh, what a surprise, eu estava esperando seis ou sete", disse, meio desconcertado, enquanto caminhava para o centro da mesa.

Éramos, pelo menos, três vezes o volume de gente que ele esperava. Tinha um clima de tietagem no ar, que no final se confirmou — e eu não tô de fora desse barquinho.

Se você chegou ao fim do segundo volume da série, Um outro amor, sabe o quanto ele odeia falar com jornalistas e participar de eventos literários. Lá pelas tantas no livro, ensaiando o que dizer na cerimônia de um prêmio na Noruega, ele escreve que está pouco se lixando para todo mundo, que a única coisa que ele quer é continuar escrevendo e que para marcar essa transição na carreira vai estender uns jornais no chão na frente da audiência e dar uma bela duma cagada pra deixar isso bem claro.

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Foto por Fabio Uehara/Divulgação

Não fez nada disso, e lá estava ele, respondendo com a mesma atenção e gentileza perguntas que passavam pela ascensão do nacionalismo no mundo, direita X esquerda, terrorismo, o que era verdade e o que era ficção em seu romance autobiográfico, quais eram seus hobbies, o que ele achava de ser comparado à Proust, e sobre o fato de não ter se masturbado antes dos 18.

De repente o assessor de imprensa anunciou que ia chamar a última pergunta porque já tinha dado uma hora e não podia tanto. Eu pedi pra fazer só mais uma. "É sobre o 7 a 1, ele vai gostar." Perguntei pra ele, então, o que ele, como fã de futebol e intelectual, pensava do placar entre Brasil e Alemanha na última Copa do Mundo.

Ele riu e disse que a resposta iria longe. "Eu nunca tinha visto um time entrar em colapso daquele jeito. E do outro lado havia uma seleção que só estava ali fazendo seu trabalho. Aquilo foi uma tragédia, foi doloroso, já não era mais um esporte, era outra coisa. Minha esposa não conseguiu assistir e saiu da sala", disse.

[O 7 a 1] foi uma tragédia, foi doloroso, já não era mais um esporte, era outra coisa. Minha esposa não conseguiu assistir e saiu da sala.

Knausgård contou que estava escrevendo um livro, sem edição em português, sobre a Copa do Mundo no Brasil quando o jogo aconteceu. Ele comparou a partida com uma situação vivida por um amigo seu, que havia se juntado a um grupo humanitário para tentar impedir que os EUA atacassem Bagdá, servindo como escudo humano. Apesar da boa vontade, eles não conseguiram fazer nada, porque eram muito desorganizados, ao contrário dos marines norte-americanos.

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Pra ele foi um pouco do que aconteceu com o Brasil no jogo contra a Alemanha, com todo o ideal de nação por trás, com toda a história da seleção brasileira, o fantasma de 1950, o Neymar. "As ideias abstratas eram tão grandes que eles não conseguiram fazer o que tinha de mais básico no futebol."

Foto por Fabio Uehara/Divulgação

Despediu-se dos jornalistas perguntando se estávamos acompanhando a Eurocopa e dizendo que havia um jogo naquele momento.

Celebridade

Depois da tão esperada mesa, na sexta-feira, rolou uma sessão de autógrafos. Na fila um dos assuntos mais comentados era se o autor gostava ou não daquela exposição toda. "Eu acho que ele é o antinarciso", disse um cabeludo quarentão que trocou a engenharia pela psicanálise e lia o terceiro livro da série, que trata da infância do autor, para seu filho de sete anos. Sua interlocutora, uma médica curitibana que morava em Recife, discordava. Pra ela, ele sempre quis ser um grande escritor e fazer sucesso, por mais que a fama fosse difícil. Concordei, em silêncio, com ela.

Foto por Fabio Uehara/Divulgação

Tinha um cara com um bonequinho do Knausgård, estilo mini craque. (Aliás, existe um perfil no instagram, @legokarlove, que reencena Minha Luta com bonecos e cenários de Lego.) Homens e mulheres comentavam o quanto ele era lindo. "Um pão", disse um senhor que perguntou ao autor quantos anos tinha a mais nova dos quatro filhos dele. Um outro levava uma garrafa de cachaça pra dar de presente ao norueguês.

Mais tarde, uma amiga minha, também jornalista, comentou que a gente devia aceitar com mais naturalidade que existem pop stars na literatura, assim como acontece na música. Concordei. Fazer sucesso não faz dos Beatles artistas menores, por exemplo. O próprio Karl Ove parece entender isso, embora não disfarce muito bem o tédio que é passar horas assinando livros em série.

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