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'Luke Cage' é a série de HQ hip hop que você estava esperando

Conversamos com Cheo Hodari Coker, o criador da série, que fala sobre empoderamento negro e como misturou o mundo dos quadrinhos de ação com os gêneros noir e blaxploitation.

A ideia de um homem indestrutível no centro do Harlem, em Nova York, chega numa hora auspiciosa. Enquanto o movimento BlackLives Matter segue em frente, o número de homens negros se tornando hashtags aumenta a cada dia. A nova série da Netflix Luke Cage, sobre um super-herói negro de pele indestrutível, fornece uma história necessária de empoderamento negro. A história mistura o mundo dos quadrinhos de ação com os gêneros noir e blaxploitation, criando uma temporada estilosa e atraente para a TV. O notório roteirista Cheo Hodari Coker criou uma série centrada na experiência negra: nossa humanidade, nossas identidades complexas, nossas motivações e meios de sobrevivência.

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O quadrinho original da Marvel Luke Cage, Herói de Aluguel estreou em junho de 1972, no auge dos filmes de blaxploitation. O protagonista — que antes usava o nome Carl Lucas — nasceu e se criou no Harlem, onde cometia pequenos crimes numa gangue juvenil chamada Rivals. Conforme Carl cresce e começa a procurar um trabalho legítimo, seu amigo de infância e colega de gangue Willis Stryker (o Kid Cascavel) se volta para a violência. Mais tarde, depois de ser preso injustamente na prisão Seagate, Carl se torna parte de um experimento de regeneração que acidentalmente lhe dá força sobre-humana e uma pele à prova de balas.

Mais de quatro décadas depois, Coker modernizou essa história noir e criou uma série impressionante, parte dos esforços da Marvel para se tornar mais inclusiva. Recentemente a editora chamou Roxane Gay para ser a primeira mulher a escrever um quadrinho para a Marvel, Ta-Nehisi Coates ficou com a HQ do Pantera Negra e Ryan Coogler está dirigindo o novo filme do personagem.

Quando me encontrei com Coker no Red Rooster, um dos restaurantes de comfort food mais famosos do Harlem, ele estava vestindo um terno fashion não muito diferente dos usados pelo personagem de Mahershala Ali, o Boca de Algodão. Enquanto comíamos pão de milho, macarrão com queijo e frango frito, ele me falou sobre ser um nerd negro, as afinidades com Luke Cage e a cultura hip hop, e sua esperança de que o público se envolva na história.

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Cheo Hodari Coker no set. Foto cortesia da Netflix.

VICE: Li em entrevistas anteriores que você queria que a série Luke Cage estivesse mais ligada ao empoderamento negro do que ao blaxploitation. Você pode explicar isso um pouco mais?
Cheo Hodari Coker: Não é que não temos orgulhos das nossas raízes blaxploitation. Abraçamos isso mais musicalmente por causa da maneira como Adrien Young, Ali e Shaheed Mohammed [criaram] a trilha sonora original. É meio uma mistura de Trouble Man de Marvin Gaye com toques de Bernard Herman ou Ennio Morricone. Conseguimos uma orquestra de 30 músicos para gravar a trilha. Conforme você avança na série, a trilha fica cada vez mais profunda.

Com o passar do tempo, fomos ganhando confiança na capacidade da série de se expressar musicalmente sem usar outras músicas, com exceção da música que veio do Method Man…

Uau, essa parte é interessante.
Bom, o momento com o Method Man é interessante. Eu estava apreensivo em usar a música dele no trailer porque queria guardá-la para mais tarde na série. Mas eu sei que você tem que revelar pequenos trechos para manter o impulso. Quando o Method Man aparece e, em termos do contexto do episódio, tem um momento realmente incrível. Sem dar spoilers, esse é um dos meus momentos favoritos da série inteira.

"Essa série é sobre subverter expectativas. É uma série na qual os heróis usam capuz."

Eu queria falar sobre o significado do capuz, porque imediatamente pensei em Trayvon Martin e na ligação da roupa com a criminalidade negra. Mas Luke Cage é o herói — ou tenta ser — então tentei pensar no meio termo. O capuz foi uma escolha proposital?
O grande apelo de Luke Cage é que ele não usa máscara, ele não usa capa, você pode encontrá-lo na barbearia. Ele não está se escondendo. Eu queria mostrar que homens negros de capuz podem ser qualquer coisa. Quer dizer, eu uso moletom com capuz desde Stanford, mas sei que se alguém me vir passar de capuz a pessoa não vai ver Stanford, ela vai ver Hotchkiss. As pessoas vão fazer suas suposições sobre mim e no que estou envolvido. Essa série é sobre subverter expectativas. É uma série na qual os heróis usam capuz. Uma série onde o vilão é um músico frustrado, onde políticos podem ser sinceros e ao mesmo tempo sem piedade.

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Certo. Lembro de uma parte onde Boca de Algodão e Mariah estão sentados no parque e mencionam invasores, o que me fez pensar em gentrificação. Como você decidiu quem seria o inimigo?
Mariah realmente acredita que está fazendo o bem e o Boca de Algodão diz "Isso é só fachada. Somos criminosos, é isso que fazemos". Os dois estão nessa pelo poder. Não pelas pessoas. É tudo uma questão de controlar o que eles têm e que eles não podem controlar as pessoas que estão comprando no Harlem e como o bairro está mudando. Então isso parece gentrificação.

Veja a história do Harlem: Harlem vem de Haarlem, que é holandês. O bairro era um gueto étnico diferente antes da grande migração negra que veio do sul, e de vários outros lugares, procurando a terra prometida. Quando o influxo aconteceu na Grande Migração e a demografia mudou, isso se tornou uma fuga negra e branca. Mas o lugar sempre teve seus pecadores. Os gangsteres sempre estiveram aqui. Eles estavam aqui na Era do Jazz e na era do hip hop. É uma continuação acontecendo em um só lugar. Então se você acrescenta um negro à prova de balas com superpoderes na mistura, não importa para onde você aponta a câmera, você tem uma história interessante que é, ao mesmo tempo, negra e profundamente Marvel. Era isso que eu queria provar: que você pode vender uma história que já era da Marvel, mas acrescentando cultura como um tipo diferente de efeito especial, você consegue aumentar a história e ela se torna automaticamente diferente de tudo que você já viu.

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"Minha piada favorita do Paul Mooney foi quando ele disse que só era negro à noite e nos finais de semana, porque o tempo todo era muito estressante."

Fiquei pensando na duplicação de identidades e como elas mudam perfeitamente dependendo do contexto. Isso me fez pensar na psicologia de heróis e vilões num lugar como o Harlem, onde você sabe que a gentrificação está acontecendo.
Não lembro direito se W.E.B. Dubois [foi o primeiro a falar sobre] a noção de consciência negra dupla, ter duas pessoas em uma, o chamamos de alternância de código linguístico. Minha piada favorita do Paul Mooney foi quando ele disse que só era negro à noite e nos finais de semana, porque o tempo todo era muito estressante. É uma piada sutil, mas é algo que todos nós já passamos por ter que subverter nossa cultura no local de trabalho onde você não é a norma. Acho que isso é uma coisa que os brancos têm garantida; eles podem ser eles mesmo em qualquer ambiente enquanto os negros precisam alternar o tempo todo. De certa maneira, o hip hop foi a primeira forma de arte que disse "Não, vamos entrar no mainstream chutando a porta e não vamos nos fantasiar". O hip hop se tornou uma evolução cultural e seu próprio paradoxo. É isso que um programa como esse representa: uma série de quadrinhos hip hop, porque estamos usando a atitude do hip hop para mudar o jeito como você conta essa história.

Outra coisa que me chamou a atenção em alguns episódios foi o conflito entre gerações, que são os personagens jovens negros e latinos versus os personagens mais velhos.
Uma das letras de rap mais profundas, para mim, é "Things Done Changed" do Notorious B.I.G, onde ele diz "Back in the days our parents used to take care of us / Look at them now they even fuckin' scared of us / Callin' the city for help because they can't maintain / Damn, shit done changed". A desconexão que Shameek e Chico fazem dos pais é o motivo para eles tentarem seguir seu próprio caminho, para eles não estarem realmente tentando se encaixar no sistema. Eles vêm uma oportunidade de roubar o Boca de Algodão e é isso que dá partida no motor. Pop, sendo um ex-gângster, não tem medo desses moleques. Ele é basicamente um cara tentando dar a eles uma vida diferente e melhor. É isso que a barbearia representa: segurança. Esses garotos não têm força para dizer "Estou com medo. Não quero ficar nas ruas, preciso de uma alternativa". Então a barbearia se torna um lugar seguro para eles.

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Foto por Myles Aronowitz / cortesia da Netflix.

Também fiquei impressionada com os papéis das mulheres negras. Gostei principalmente da caracterização da Misty, porque ela entende a vida e a cultura do Harlem, mas está tentando seguir seu próprio caminho também. E ela tem muita autonomia e muito mais força em certos aspectos que os homens da série.
Sabe, cresci cercado de mulheres negras independentes e educadas. Minha mãe era mãe solteira e largou a faculdade para me ter. Eu basicamente a assistia dando um jeito de terminar a escola noturna e seu curso superior. Ela se formou em direito quando eu tinha nove anos. Depois eu a vi transformar isso num mestrado em trabalho social. Ela acabou se tornando comissária do Departamento de Serviço Social de Connecticut. Quando eu era garoto, ela me levava para a biblioteca quando tinha que estudar e foi assim que me tornei um leitor. Foi assim que me apaixonei por livros, e também porque ela lia muito para mim. Eu queria que as mulheres [da série] refletissem a realidade dos tipos de mulheres com quem convivi, como minha mãe e minha tia Valerie, que era editora executiva da revista Essence. Eu fiz um estágio na Essence. Aquilo era o céu na terra porque eu estava cercado de irmãs lindas e dinâmicas. Eu estava cercado de Mistys e Mariahs: mulheres com poder, foco e equilíbrio. Mas você raramente vê isso [na TV e no cinema]. Eu queria provar que você pode mostrar mulheres de carne e osso que têm carreiras e fazem coisas, e que elas não estão sempre ansiando por um homem.

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A primeira temporada de Luke Cage já está disponível na Netflix.

Tradução: Marina Schnoor

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