Desastre ambiental em Mariana (MG)
Maurício Fidalgo

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Desastre em Mariana

Mariana, a sete palmos de lama: a terceira barragem do rio

O sentimento de impunidade é mais denso que a lama que atola os lares de Mariana.

Todas as fotos foram tiradas pelo autor.

Um dos motivos que movem um jornalista para frente é a possibilidade de estar presente nos momentos que farão parte da história. E, quando recebi de um colega o convite para ir documentar o que pode vir a ser a maior tragédia ambiental do país, minha resposta não poderia ser diferente, ainda que já tivesse quase uma semana do ocorrido. Sim.

Os rompimentos das barragens Fundão e Santarém no dia cinco deste mês ocuparam todas as manchetes do país: 65 milhões de metros cúbicos de lama haviam enxurrado ladeira abaixo Bento Rodrigues, distrito de Mariana. E ela continuava indo pelo Rio Gualaxo do Norte afora. Doze desaparecidos, 11 mortos, quatro deles não identificados – e, seis dias depois, um raio de exclusão de 10 km ao redor da barragem foi criado. Bento, agora, já não está mais acessível à imprensa ou aos moradores. Mas ainda havia histórias a ser contadas.

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Então, na sexta-feira, 13, partimos rumo à Mariana. Uma vez em Minas Gerais, nos encontramos com fontes locais. Recebemos um levantamento dos hotéis e das pousadas onde os desabrigados se encontravam. Mapeamos e partimos para as entrevistas. O contato inicial é aversivo: depois de muitas entrevistas e conversas com repórteres e agentes sociais, as pessoas já estavam preparadas, calejadas para qualquer tipo de acesso. Assim, as histórias se repetiam. O discurso de agradecimento à SAMARCO era frequente; quando não, a única queixa que surgia era um receio repetido em cada uma das falas: o tempo passar e eles ficarem ali, em hotéis, esquecidos. A sensação de impunidade no Brasil é avassaladora.

José Geraldo Gonçalves.

Foi assim que conheci José Geraldo Gonçalves, carvoeiro e residente de Paracatu de Baixo, 53 anos pai de nove filhos. E sua conterrânea, Alexandra Aparecida de Sales, 36, professora do ensino fundamental, gravida de oito meses do segundo filho. Eles contam que no dia 5, por volta das 17h30, um helicóptero pousou no campinho de futebol do distrito: os bombeiros avisavam que a barragem havia estourado e que os moradores tinham cinco minutos para pegar seus documentos em casa e subir o morro. Começava o desespero: ir a casa, escolher quais de seus bens seriam salvos, quais não. Mas foi só no meio da noite, entre nove e dez horas, que o barulho ensurdecedor de água foi ouvido pelos moradores, que, de lá de cima, assistiam a Paracatu de Baixo ser arrastada em pedaços. Assim que os primeiros postes começaram a cair, Paracatu se apagou. Apenas o escuro e sons da destruição.

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Os primeiros dias dos desabrigados passam na quadra municipal, transformada depois em um centro de triagem para as doações. Lá, pilhas gigantes de roupas e colchões se acumulavam, eram separadas e depois entregues aos desabrigados, agora já alocados em hotéis e pousadas de Mariana. Suas refeições e cama lhes são garantidos, mas não a paz e uma sensação de segurança.

"Aqui é barulh[ent]o demais, é chato. Eu não consigo ficar sem ter meus animaizinhos para cuidar e meu negócio para tocar. Não dá para ficar sem trabalhar, tenho nove filhos", conta-me seu José, sócio de uma carvoaria que toca com o amigo, queimando eucaliptos plantados nas estradinhas que levam a Paracatu.

Enquanto me mostra as mãos onde sobra o espaço de um dedo que perdeu desgalhando uma arvore, ele me diz que são necessários sete dias de forno – ele, seu sócio e mais um ajudante no serviço – para encher um caminhão de carvão e, então, mandar isso para a siderúrgica.

"Eu dividia o quintal com minha mãe", suspira Alexandra. "Ela me ajudou a criar meu primeiro filho enquanto eu trabalhava. Minha filha, Ana Clara, não ia ser diferente. Agora, eles querem me colocar longe dela."

Constância das Graças, 59, descreve a geladeira "frost free com congelador embaixo" que comprou com o dinheiro do fundo de garantia: "Custou mais de mil reais!". A filha adotiva cuidada por ela está na casa de parentes, e ela confessa o medo de talvez nunca ver o reembolso de sua casinha.

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Constância das Graças.

Na manhã seguinte, fomos a Paracatu de Baixo para constatar as afirmações: Paracatu seria o segundo lugar mais atingido, com 80% das edificações danificadas ou destruídas.Duas horas em estradas de asfalto e terra batida depois, encontrávamos uma rua coberta de lama. O que não parecia ser muita coisa se revelou cruelmente quando viramos a esquina: uma clareira se abria, e os únicos lugares possíveis de andar eram as ruas, que pareciam mais canais escavados entre a grossa camada de lama que cobria todo o local. As marcas de lama ultrapassavam as portas e janelas. Ao redor das casas, um tapete de um metro e meio de altura se espalhava em todas as direções. Alguns tratores iam e vinham, enquanto matilhas de cachorros percorriam os esqueletos de casas e pequenos comércios. Sacos de ração se encontravam abertos, embora os cães preferissem as carcaças de galinhas e os peixes que brotavam na superfície da lama.

Uma semana secando deixa a lama com uma capa traiçoeira: o que parece firme de repente engole sua perna até acima do joelho. Os caminhos para chegar às casas menos atingidas são perigosos: ao afundar sua perna, você pode atingir vidro ou restos de metal e madeira. O cheiro forte também é um dos empecilhos, além do peso da lama que se acumula no e ao redor do calçado.

Na igreja católica local, conheço Antônio Celestino, 51, lavrador. Ele procura os objetos litúrgicos da missa a pedido do padre da paroquia. "Falta o cálice", repete Celestino enquanto desembrulha os achados. Ele e mais dois colegas foram à igreja para, além de recolher os objetos, tentar limpá-la. A água, que arrancou uma das portas e quebrou uma segunda, passou dos três metrôs e deixou uma cobertura de lama com mais de um metro de altura. Mesmo que retirassem toda a lama de dentro da igreja, não adiantaria. A grossa cobertura fétida e marrom escuro era da mesma espessura dentro e fora daquele local, cobrindo todos os lados.

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Na escola fundamental, onde entrei através de um buraco na grade feito pela enxurrada de terra, as marcas estão acima do segundo andar. Lá, devido à densidade do material, muita lama ainda se aloja no segundo andar, deixando as salas de aula e a biblioteca com um ar de desolação.

O resto do dia serviu para editar o material e checar as notícias sobre rachaduras ou o rompimento eminente da terceira barragem, a maior e mais antiga, Germano. O processo de edição é tão importante quanto o de fotografar e de se informar, porém é muito mais maçante. Rachaduras são confirmadas na base do maior dique, mas nada aponta para outro deslizamento iminente como o boato infundado que percorria as redes sociais.

Na manhã seguinte, voltamos aos hotéis dos desabrigados. Mostrei as fotos aos moradores. "Esta é minha casa", aponta Alexandra, "Do lado, é a da minha mãe." A tristeza era visível, embora a curiosidade em ver e rever aquelas imagens tenha sido maior.

A viagem terminou com uma sensação de alegria e pesar. Poder contar a história desse acontecimento e dessas – e para essas – pessoas é gratificante. Triste é imaginar que o desastre ainda não acabou. Agora que o Rio Vale continua a carregar os sedimentos tóxicos em direção ao mar, os prejuízos sociais e ambientais mostram-se incalculáveis. Ainda assim, o sentimento de impunidade é mais denso que a lama que atola os lares de Mariana.

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