Natasha Fiercce: de Aspirante da Marinha a Drag Queen

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Natasha Fiercce: de Aspirante da Marinha a Drag Queen

Segundo um oficial que prefere se manter no anonimato, a homossexualidade continua sendo um tabu dentro da instituição, mesmo que existam casos isolados de gays assumidos ali dentro.

Beyoncé criou o alter ego Sasha Fierce para mostrar, nos palcos, lados mais ousados e sexies do que a sua alegada timidez permitia. Inspirado na artista, o tranquilo Vinícius Rosalvos, um carioca de 22 anos, alto, magro e de fala suave e ponderada, desenvolveu uma persona que costuma aparecer pela noite do Rio de Janeiro de forma muito mais chamativa do que ele se porta no dia a dia: a glamourosa Natasha Fiercce, impersonator da Bey que canta, dança e dubla pra valer. "Viado tem todo um lado feminino que quer colocar pra fora, né?"

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Foto: Matias Maxx

No entanto, antes de se tornar drag queen, o rapaz levava uma vida muito diferente. "Eu era muito sério, não tinha noção de um monte de coisa", disse durante nosso primeiro encontro. Sentado comigo no segundo andar de uma lanchonete no centro do Rio, próxima ao Largo da Carioca, o jovem se montava e relatava a transição de uma rotina estrita para a agitação da noite; enquanto isso, a lente de Matias Maxx capturava a materialização dessa mudança. De dentro de uma mochila laranja, que compunha o look básico e casual do rapaz – camiseta, bermuda e tênis baixo sem meia –, Vinícius retirou tudo o que era necessário para o aparecimento de Natasha: peruca, sapato alto, bijuterias, vestido e um enorme estojo de maquiagem.

Durante a montação, ele contou que sua adolescência foi toda com a cara enfiada nos livros. "Desde os 15 anos, eu estudava pra caramba." Vinícius queria ser piloto de caça, mas acabou desistindo da Aeronáutica e sendo admitido na Escola Naval – a instituição de ensino superior mais antiga do país – para se tornar um aspirante a oficial da Marinha do Brasil. Só que a vida lá dentro não era fácil. A homossexualidade do rapaz era um segredo, e ele precisava, diariamente, sufocar a própria personalidade e orientação sexual para não sofrer preconceito. "Ninguém sabia. Eu não era aberto lá. Aliás, não tinha nenhuma vida particular: só ia pra casa, estudava, ficava no computador e voltava pra escola", afirmou ao mesmo tempo em que se olhava em um pequeno espelho e modelava, com base facial e corretivo, um novo rosto a partir de diversos jogos de luz e sombra. "Eu não tinha vontade de fazer nada. Queria estar morta", confessou, rindo do passado recente que já parece tão distante.

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Foto: Matias Maxx

Comentei que, após ter consultado algumas fontes e feito pesquisas online, tive a impressão de a Marinha ser uma das Forças Armadas mais tolerantes com a homossexualidade, mas Vinícius foi rápido em retrucar que esse "mais tolerante", ainda assim, é horrível. Segundo um oficial que prefere se manter no anonimato, a homossexualidade continua sendo um tabu dentro da instituição, mesmo que existam casos isolados de gays assumidos ali dentro. "Ninguém fala sobre isso, entendeu? E, na prática, acontece muito bullying. 'Viadinho' é uma palavra muito usada no convívio diário", relatou. "Dentro da escola de formação de oficiais, a Escola Naval, no caso, eu diria que a situação é bem tensa por ser um ambiente de muita cobrança e vigilância com relação a tudo que você faz", explicou. "Existe cobrança tanto dos colegas quanto dos instrutores para que você assuma um comportamento de acordo com o que julgam ser certo." De acordo com Vinícius, mesmo os poucos gays assumidos lá dentro se escondem em um papel heteronormativo. "Tipo 'Eu sou gay, mas não sou afeminado', sabe?"

"Vou me vestir de Beyoncé"

Foto: Matias Maxx Como um jovem imerso em um ambiente conservador, que vivia escondendo o que sentia e quem era, acabou se tornando a diva Natasha Fiercce em um período tão curto de tempo? Tudo começou em 2013, ano que carrega uma sucessão de acontecimentos marcantes na vida do rapaz: a primeira balada, a saída da Escola Naval após um ano e meio como aspirante (e uma reprovação de ano causada por intensa desmotivação) e a vontade de revelar para o mundo inteiro que era gay mesmo – e pronto.

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Apesar da homossexualidade socialmente abafada, Vinícius nunca a negou para si próprio, o que talvez tenha ajudado a desencadear a necessidade de viver de forma mais livre, já que até mesmo o hábito de assistir a clipes da Lady Gaga na televisão e copiar, escondido, as coreografias tinha sido abandonado por conta da imensa pressão que sentia em representar um papel do heterossexual padrão. Por isso, na primeira vez que saiu à noite, foi pego no flagra por colegas aspirantes dando uns beijos em um carinha e chutou o balde. "Pensei: 'Tanto faz que eles estejam aqui, não aguento mais essa merda. Foda-se'. Eles passaram por mim com o olhão todo arregalado", contou. "Foi uma pressão muito grande, porque pensei: 'Agora já era, meu irmão vai saber'." O irmão dele, também aspirante da Marinha, ainda permanece na Escola Naval e sofreu uma zoada de leve da galera por lá, segundo Vinícius. "Mas ele tem uma cabeça boa", defendeu, adiantando a possibilidade de eu achar que se tratasse de alguém preconceituoso.

Foto: Matias Maxx

Com a retirada à força do armário e a fofoca correndo solta pela instituição, Vinícius, que mora com o pai, a mãe e o irmão em Niterói, decidiu se abrir para a família. "Sentei no colo da minha mãe e disse: 'Preciso te contar uma coisa'. E ela perguntou: 'Você engravidou alguém?'. Longe disso…", riu. Antes que pudesse continuar, ela questionou: "Você não gosta de meninas, não é?". Simples assim. Ednalva Rosalvos, uma empreendedora individual de 47 anos, tirou um peso enorme do peito do filho. "A vida afetiva dele é interesse só dele, e eu quero vê-lo feliz", me falou, por telefone, a simpática mulher de voz alegre que pareceu realmente 100% nem aí com o fato de um dos filhos ser gay e drag queen. Além disso, a vida noturna não fez o jovem deixar de se dedicar aos estudos, o que tranquilizou os pais: atualmente, ele cursa Engenharia das Telecomunicações na Universidade Federal Fluminense (UFF), representando a ruptura com o padrão heteronormativo em outro ambiente conservador – ainda que nem tanto quanto o militar. "Só as mulheres fazem amizade comigo lá."

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Foto: Matias Maxx

Ednalva é tão de boa que até deu uma mãozinha no nascimento de Natasha. "Vou me vestir de Beyoncé", foi a decisão de Vinícius no carnaval do ano passado – ele é fã dela desde a primeira vez que a viu. Com a ajuda da mãe e de amigas, fez uma roupa, arrumou uma peruca, se montou pela primeira vez e foi à extinta festa ULC (Ultra Lovecats). O ritual passou a ser constante: toda quinta-feira, por exemplo, batia ponto na festa V de Viadão e ansiava pelo encontro com outras pessoas montadas. "Era o meu auge: eu passava a semana inteira pensando nisso, naquela festa [em] que eu ia me montar, encontrar outras drags e aquele povo viado e superaberto. Era muito legal. Meus pais sempre me levavam, era em Copacabana", relatou cheio de empolgação. A partir daí, o processo constante de usar roupas ditas femininas, passar maquiagem, dançar e cantar fez o jovem cair na real e sacar que, bem, se estava se montando semanalmente, ele praticamente tinha se tornado uma drag queen – e que havia escapado de um cenário cinza e fechado para um novo momento, repleto de agitação e brilho. "Eu, assim, enxergo outra pessoa. Nem parece meu filho. Se transforma. Baixa uma Natasha mesmo", frisou Ednalva.

Natasha Fiercce é poderosíssima

Foto: Matias Maxx

Quando as horas de arrumação terminam e Natasha está, finalmente, de vestido, salto, peruca e uma maquiagem toda trabalhada no bocão vermelho e nos olhos esfumaçados de preto, com cílios enormes e detalhes prateados, é perceptível como o processo todo é não apenas trabalhoso como artístico mesmo. Acompanhar essa montação é como um lento mindfuck em que, no final, você pensa algo tipo "Gente, como assim? Cadê a pessoa que estava aqui antes?". Ao entoar "My Life", da Donna Summer, a drag mostra que não está pra brincadeira e sabe cantar mesmo.

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Ela é, aliás, parte do trio As Baphônicas, junto com Chloe Van Damme, uma drag bombada que desafia estruturas binárias de masculino e feminino, e Ravena Creole, mais chegada em música brasileira e autointitulada "drag do povo". Durante o dia, elas são o funcionário público Daniel Barroso, de 26 anos, e o maquiador Robson Dinair, de 27 anos, respectivamente.

Foto: Matias Maxx

Neste ano, foi lançado "Close Baby", o primeiro single do grupo, que é um funk-pop-bate-cabelo politizado, já que leva mensagens empoderadoras para gays sem deixar de fazer a galera descer até o chão. A letra dá a dica: "Homofóbico otário, rala logo desse armário, chega pra se libertar". Fui a uma festa de ursos no La Paz, uma boate na Lapa, para curtir e ver a apresentação delas; já acostumada com ambientes gays e libertos – isso é praticamente o que frequentei a minha vida inteira –, só pude ter a certeza da importância desses espaços como válvula de escape em relação ao processo de normatização pelo qual toda pessoa passa, forçosamente, desde que nasce. Pensei também na forma como as cantoras pop representam um papel ambíguo. Para nós, mulheres, elas reforçam muitos estereótipos dos quais queremos nos livrar ("Seja bela, magra, sexy", por exemplo), enquanto, para muitos homens – homossexuais, principalmente –, elas são a representação de um ideal de glamour cuja simulação temporária por parte de pessoas do sexo masculino transfere um caráter mais lúdico e extrovertido para esses mesmos estereótipos, até porque a não obrigatoriedade deles os torna mais moldáveis.

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Foto: Matias Maxx

"Essa geração de drags do final da década de 80 e início da de 90 tem uma relação bem forte com as divas do pop. Mas [é] lógico que existem pessoas que se montam por outras razões: algo mais gótico, mais Marilyn Manson, por exemplo", explicou a produtora cultural da Suma Filmes, Bia Medeiros, de 28 anos. Ela afirmou também que, nos últimos dois anos, houve um boom no cenário drag queen do Rio de Janeiro, o que levou à criação do Drag-se, um canal de conteúdo online que reúne diversas drags mais jovens, mostrando o estilo e o dia a dia dessas pessoas, bem como registra performances e produz também tutoriais diversos que vão desde dicas de maquiagem até como "esconder a neca". As Baphônicas, juntamente com diversas outras artistas, fazem parte do canal, que tem os episódios dirigidos por Bia, totalizando 13 drag queens. "A ideia era juntar um perfil bem diferente: mostrar pessoas que se montam porque querem ser artistas, por razões políticas… juntar um grupo que demonstrasse bastante diversidade, até para mostrar que existe pluralidade dentro do movimento", definiu a produtora.

Onda errada

Foto: Matias Maxx

Mesmo que a montação seja, visivelmente, um processo artístico, muita gente entende errado. Ofendida, Natasha contou que já recebeu, algumas vezes, propostas para se prostituir. "Tem gente que não entende", desabafou. Conversamos sobre a forma como, para alguns homens, tudo o que se relaciona ao feminino tem relação direta a sexo. Só que isso não a abala e nem tira a "vontade de destruir" antes de alguma apresentação. E, afinal, o que será que atrai esses caras? A mulher que Natasha exageradamente representa ou a possibilidade de existir um Vinícius por trás? Nunca saberemos.

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Entretanto, Natasha sabe que não se sente mulher nem quer ser uma, garantindo se sentir confortável com o corpo que tem. "Tem gente que acha que a gente quer ser mulher, que a gente é transexual. Tem umas que não gostam por causa disso, acham que somos covardes", relatou. Perguntei se dá vontade de ser Natasha o dia inteiro, e ela riu: "Não, dá muito trabalho". E acrescentou: "Mas, às vezes, dá vontade de, tipo, botar unha postiça e ficar o dia inteiro de unha, só porque é legal. As pessoas têm mania de pensar em tudo como feminino e masculino, mas acho que as coisas podem ser usadas por quem quiser, como a gente quiser, e isso não necessariamente define o seu gênero", pontuou. Não tem como não se lembrar da icônica RuPaul, que diz que "nascemos nus, o resto é drag".

"Me sinto uma coisa muito misturada, não me sinto preso a masculino e feminino. Tenho meu corpo e não tenho problema com ele. Não sei, gosto muito dos dois universos", explicou. "É tudo cultura. Não sou expert pra sair falando, mas a experiência que tenho é das coisas que vivo". No campo amoroso, existem também complicações: tem gente que quer só Vinícius, tem gente que quer apenas Natasha. "Tem de querer os dois", exige.

Foto: Matias Maxx

Menos homofobia?

Se ainda estivesse na Escola Naval, Natasha Fiercce seria uma personagem mantida em segredo? "É lógico! Qualquer pessoa faria isso", exclamou. No entanto, talvez seja possível vislumbrar um futuro, ainda que distante, com menos homofobia institucionalizada dentro das Forças Armadas. Em 2013, a Procuradoria-Geral da República propôs alterar o artigo 235 do Código Penal Militar (CPM) – em vigor desde 1969, época de ditadura no Brasil – que prevê pena de seis meses a um ano de prisão para a prática de ato libidinoso por integrantes das Forças Armadas durante suas atividades. No período, a então subprocuradora Helenita Acioli considerou que a criminalização de ato sexual em lugares sujeitos à administração militar era inconstitucional por ferir princípios da dignidade da pessoa humana.

No final de outubro deste ano, o Superior Tribunal Federal (STF) decidiu manter a validade do artigo. Porém houve uma pequena vitória: as expressões "homosexual ou não" (da frase: "Praticar ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar") e "pederastia" (um crime, de acordo com o artigo) foram retiradas do texto original por serem consideradas homofóbicas e discriminatórias. "Realmente, tanto a palavra pederastia quanto a homossexual dão uma conotação esquisita. Sem essas palavras, fica o mesmo sentido", comentou Adriano Marreiros, promotor de Justiça Militar, bacharel em Ciências Militares, professor e palestrante em Direito Penal Militar. "O nomen júris é infeliz e dá a impressão de que o crime pune a condição sexual ou homoafetiva", destaca o livro Direito Penal Militar – Teoria Crítica e Prática, que conta com o promotor como um dos autores.

Foto: Matias Maxx

Ele informou que a proposta de retirada de tais termos é antiga, haja vista que, no final dos anos 2000, a Procuradoria-Geral descobriu, por meio de pesquisas, que o número de casos envolvendo pessoas do mesmo sexo e de sexos diferentes era similar. "A hipótese é que os comandantes da época estivessem punindo casos que envolvessem dois homens apenas", explicou. Segundo o promotor, "há muitos casos de ingresso de mulher em quartel que resultam em relações sexuais", como a contratação de prostitutas, por exemplo.

A drag queen se mostrou inicialmente feliz, embora logo manifestasse descrença com a informação: demora muito até que a mentalidade do que está escrito se infiltre, de verdade, na realidade. Saímos para dar um rolê pelo centro, e, coincidentemente, um aspirante da época de Escola Naval passou por ela e fez carão. "Nunca viu viado, não?", ria Natasha enquanto posava lindamente para mais um clique.

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