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VICE Sports

​Nem a Primeira Nem a Última: a Violência Não Vai Acabar Tão Cedo nos Estádios da América do Sul

Por que não é num canetaço que a Conmebol vai se livrar da imagem de violência associada à Libertadores.

Foto: Nica

"Deus, mesmo, quando vier, que venha armado!"

Não consta que Guimarães Rosa tenha visitado La Bombonera alguma vez, mas o alerta de Riobaldo para as duras veredas do grande sertão cai como uma luva para o espírito que cercou o estádio do Boca Juniors na noite da última quinta-feira (14). Se o Altíssimo, nos últimos tempos muito solicitado pelos boleiros, resolvesse descer à Terra para conferir o superclássico e saber quem sairia dali para enfrentar o Cruzeiro nas quartas de final da Libertadores, seria melhor que, no mínimo, estivesse munido de um litro de vinagre.

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Boca e River empatavam por 0 a 0 até o fim do primeiro tempo de um jogo de muita pancadaria, pouco futebol e quase nenhuma arte. Na primeira partida, o River havia vencido por 1 a 0; por isso, o time jogava por um empate para passar de fase. Quando seus jogadores subiam de volta ao campo para o segundo tempo, passando por um túnel que deveria os proteger da torcida adversária, foram atingidos por um jato de gás de pimenta que deixou avermelhadas as paredes próximas à entrada do campo.

O jovem atacante Sebastián Driussi, um dos mais promissores novos talentos do futebol argentino, foi internado com uma inflamação cerebral, descoberta após fortes dores de cabeça. Outros quatro jogadores, Leonardo Ponzio, Ramiro Funes Mori, Matías Kranevitter e Leonel Vangioni, foram afetados pelo gás. A partida, após uma hora e meia de discussão ao som de "A jugar, a jugar, River no se va", foi suspensa. Os jogadores do River Plate só conseguiram sair de campo protegidos por escudos policiais que serviram como guarda-chuva para toda sorte de objetos. Depois de quase 48 horas de enrolação, a Conmebol, entidade que "organiza" o futebol sul-americano, optou por excluir o clube da competição, passar o River para as quartas de final, multar o Boca em 200 mil dólares, obrigar o clube a jogar com portões fechados suas próximas quatro partidas em casa por suas competições e proibir seus torcedores de comprarem ingressos nas próximas quatro partidas como visitante.

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Escolha uma rivalidade qualquer no futebol brasileiro: Cruzeiro x Atlético, Palmeiras x Corinthians, Vasco x Flamengo, Grêmio X Internacional – qualquer uma delas parecerá uma discussão de reunião de condomínio perto de Boca x River. Isso pode explicar a postura dos jogadores do time azul-dourado, que em nenhum momento se aproximaram dos rivais para demonstrar uma mínima dose de empatia; além disso, liderados pelo goleiro Agustin Orión, eles se despediram dos torcedores com aplausos, como se dessem seu aval a tudo o que saiu das arquibancadas.

Mas talvez a atitude dos jogadores tenha outro motivo: medo. Não há castigo pior para um atleta do que cair em desgraça com sua própria torcida, ainda mais quando se trata da poderosa La Doce, a principal torcida do Boca Juniors, protagonista de um esclarecedor livro sobre a cultura das arquibancadas no país vizinho. Escrito por Gustavo Gabria, repórter do Olé, o principal jornal esportivo do país, o livro La Doce – A Explosiva História da Torcida Organizada Mais Temida do Mundo conta como essa torcida, ao longo dos anos, se tornou um espaço ocupado e comandado por criminosos.

Em entrevista ao site Trivela em 2012, na época do lançamento do livro no Brasil, Gabria contou que os barra bravas comandam cambistas e até mesmo os flanelinhas que trabalham ao redor da Bombonera em dias de jogo. Há influência até na política nacional, já que parte dos líderes da torcida tem ligações com Mauricio Macri, hoje prefeito de Buenos Aires e um dos nomes fortes da oposição para suceder Cristina Kirchner nas eleições deste ano.

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Em artigo na edição do Olé da última sexta, Gabria escreveu que o ataque ao River foi uma "surpresinha" planejada como parte de uma disputa por poder no comando da torcida, envolvendo lutas por ingresso para revenda e outros benefícios. No sábado, Gabria contou que a torcida atribui a culpa pelo gás a um torcedor de codinome "Padeiro" ("Panadero", em castelhano). Talvez Órion tenha pensado que não seria bom negócio ir contra gente assim.

Um "papelón" recorrente

Para quem acompanha futebol mais de perto, a punição aplicada ao Boca pelo caso que o Olé batizou como "Papelón de Mayo" soa familiar. Foi pouca coisa maior que aquela imposta ao Corinthians após a morte do garoto Kevin Beltrán Espada, de 14 anos, durante o jogo contra o San Jose, em Oruro, na noite de 20 de fevereiro de 2013, também em jogo pela Libertadores.

Durante o primeiro tempo, um sinalizador naval, lançado da região das arquibancadas onde os torcedores do Corinthians estavam, atingiu em cheio o garoto, que havia ido ao estádio escondido dos pais. Doze membros da Gaviões da Fiel, a principal organizada corintiana, ficaram mais de dois meses presos na Bolívia; eles, no entanto, alegavam inocência – quem assumiu a bronca foi um rapaz, então menor de idade, que havia ido de ônibus até a Bolívia. Ele se entregou ao Ministério Público brasileiro, mas o Judiciário boliviano não aceitou o incluir na investigação.

Na esfera criminal, o caso permanece sem solução. Na esportiva, a pena foi pífia: o Corinthians foi punido com três jogos sem torcida no estádio, mas recorreu da punição e só cumpriu um – e não totalmente, pois quatro torcedores que haviam comprado ingresso ganharam na Justiça o direito de assistir à partida contra o Millonarios, da Colômbia. Antes mesmo de a decisão da Conmebol ser confirmada, o Boca já avisava que também ia apelar. Não se sabe quando sai uma decisão definitiva.

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As semelhanças não são mera coincidência: no Brasil, como na Argentina, também há relatos de envolvimento direto entre torcidas e criminosos. Na madrugada do último 19 de abril, oito pessoas foram mortas numa chacina na quadra da Pavilhão Nove, outra organizada do Corinthians, horas antes de um clássico contra o Palmeiras pelo Campeonato Paulista. A polícia afirma que o caso nada tem a ver com briga de torcidas, mas com disputa por pontos de tráfico de drogas na zona oeste de São Paulo. Dois acusados de envolvimento no crime, um policial militar da ativa e um ex-PM, foram presos. Um dos torcedores assassinados fazia parte do grupo de 12 pessoas que passou um tempo no xilindró boliviano por causa da morte de Kevin.

As confusões em La Bombonera também são comuns: nos últimos 10 anos, lembra a revista argentina El Gráfico , o clube já havia sido punido seis vezes por causa de atos de sua torcida, uma delas num jogo contra o River, em maio de 2013, pelo campeonato argentino. Foi o primeiro superclássico no estádio do Boca depois que o rival havia passado pela segunda divisão local. Houve rojões, bombas de fumaça, sinalizadores e torcedores pendurados no alambrado vestidos de "fantasma de la B", iguais ao carregado pelo drone que sobrevoou o estádio na quinta-feira. A punição: uma partida com portões fechados contra o Colón.

Uma torcida, mesmos problemas

A recorrência de problemas na Argentina mostra o fiasco de uma das soluções propostas para se acabar com a violência relacionada ao futebol: a torcida única. Desde 2007, torcedores do time visitante são proibidos de ir a jogos entre Boca e River, além de outros clássicos locais, como Newell's Old Boys e Rosario Central. No Brasil, a medida já foi adotada em duelos entre Cruzeiro e Atlético Mineiro, mas não impediu mortes em dias de jogos em terminais de ônibus e outros pontos de Belo Horizonte.

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As brigas dentro dos estádios no Brasil, aliás, têm sido menos comuns – e letais. Em 2013, houve distúrbios em dois jogos do Vasco: contra o Corinthians, em Brasília, e o Atlético Paranaense, em Joinville. Esse último provocou a interrupção do confronto por mais de uma hora, por pouco não fazendo o tapetão agir: o time carioca tentou jogar a culpa no Atlético e ficar com os pontos da partida, o que o salvaria do rebaixamento, mas foi derrotado nos tribunais.

As mortes, hoje, acontecem longe dos estádios: em emboscadas, em brigas marcadas pela internet ou mesmo em ações ocasionais. No dia 26 de abril, horas depois de Palmeiras e Santos abrirem a final do Campeonato Paulista na zona oeste de São Paulo, um palmeirense foi espancado por um grupo de 15 santistas armados com barras de ferro perto da estação Jardim Romano da CPTM, no extremo da zona leste, a cerca de 38 km do local da partida. Até agora, ninguém foi preso.

Na Argentina, a polícia está apurando o Papelón. Quer saber como, afinal de contas, um sujeito entrou com um spray de pimenta, algo que não se compra na esquina e que deveria ter sido retido numa revista a que qualquer torcedor comum é submetido ao entrar num estádio. E também investiga como um avião controlado por controle remoto também apareceu nas arquibancadas da Bombonera. Pode-se apostar, em reais, pesos ou dólares, que não vai acontecer nada – em seu livro, Gustavo Gabria conta que a polícia nem passa perto da entrada do estádio controlada por La Doce. No caso da partida contra o River em 2013, a suspeita é de que os apetrechos ilegais tenham sido levados na véspera do jogo ao estádio.

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Ethos da pancadaria

A violência é uma marca da Libertadores desde seus primeiros dias. Criada nos anos 1960 com o objetivo de reunir a elite do futebol sul-americano, a competição registra incontáveis histórias marcadas pela pancadaria, seja dentro e fora de campo - e suas cenas lamentáveis também podem ser vistas em outros torneios disputados nos campos do continente. Abaixo, selecionamos quatro delas, todas envolvendo times brasileiros:

O jogo que foi, mas não foi – Em 1962, Santos e Peñarol decidiram o torneio na Vila Belmiro. Após vitória no Uruguai, o time da casa, sem Pelé, jogava por um empate. O Peñarol marcou 3 a 2, o pau comeu e o juiz encerrou a partida, mas sem contar para ninguém. A bola voltou a rolar, o Santos empatou, comemorou o título, porém nos vestiários o árbitro explicou que os minutos após a briga não valeram: eles só aconteceram para a torcida não invadir o campo e quebrar tudo. Oficialmente, o jogo acabou em 3 a 2 e houve uma terceira partida, que o Santos venceu para poder comemorar para valer.

O anelão e o soco – Flamengo e Cobreloa, do Chile, decidiram a Libertadores de 1981. No Maracanã, o time carioca venceu. Em Santiago, o zagueiro Mario Soto distribuiu pancadas e socos "anabolizados" por um anel pontiagudo que arrancou sangue de vários rubro-negros, como Zico e Adílio. O time da casa venceu e foi marcada uma terceira partida. O Flamengo vencia por 2 a 0 quando, aos 44 do segundo tempo, o técnico Paulo Cesar Carpegiani colocou o atacante Anselmo em campo com uma só missão: acertar Soto. A ordem foi cumprida: Anselmo pôs o chileno a nocaute e saiu correndo para o vestiário a fim de não apanhar dos outros rivais. Nunca mais se ouviu falar de seu futebol.

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A batalha de La Plata – O Grêmio foi à Argentina para enfrentar o Estudiantes em duelo que poderia o deixar perto da final da Libertadores de 1983. Vencia por 3 a 1 e tinha quatro jogadores a mais em campo, após seguidas expulsões dos adversários, mas cedeu o empate por 3 a 3. Depois, jogadores e o técnico Valdir Espinosa admitiram que temeram pela própria vida caso ganhassem a partida. Após o apito final, saíram correndo de campo, trancaram-se no vestiário e só saíram do estádio no meio da madrugada. Apesar do tropeço, o tricolor gaúcho chegou à decisão e foi campeão do torneio.

A final que ficou pela metade – São Paulo e Tigre decidiram a Copa Sul –Americana de 2012 no Morumbi. No intervalo, quando o time paulista já tinha a vitória de que precisava para ser campeão, os jogadores argentinos se envolveram numa confusão que começou no campo, com são-paulinos e policiais que tentaram separar a briga, e se estendeu pelos vestiários. Eles alegaram que foram agredidos por seguranças particulares, deixaram o vestiário cheio de marcas de sangue e foram embora, sem voltar para o segundo tempo. O São Paulo foi decretado campeão, mas acabou punido pela Conmebol com a perda de um mando de campo. A pena foi cumprida no ano seguinte, num jogo da Libertadores que foi disputado – com torcida – no Pacaembu.

Sob esse prisma, há quem defenda os aplausos de Orión e os torcedores do Boca como símbolos da resistência ao futebol atual, das arenas bilionárias construídas para a Copa do Mundo, dos planos de sócio-torcedor que custam três dígitos ao mês, dos torcedores "coxinhas" mais preocupados em tirar selfie e aparecer no telão do placar eletrônico do que em impulsionar o time rumo à vitória.

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Do outro lado, há quem diga que a selvageria da Bombonera é um sinal da falência completa do modelo antigo e que o futebol deve se voltar cada vez mais aos ingressos caros, a lanches gourmet e aos torcedores-espectadores-consumidores.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra. O processo de gentrificação dos estádios é uma discussão necessária, mas que passa ao largo da questão da violência. Relacionar as duas coisas é pernicioso, pois dá a entender que, se não há pobres, não há brigas e violência, o que não faz sentido – para ficar num exemplo citado acima, não se pode dizer que vascaínos brigões em Brasília e em Joinville tenham problemas financeiros. O próprio estádio do Boca foi objeto recentemente de uma revitalização que permitiu a criação de camarotes onde se cobram ingressos mais caros.

Punição ajuda, mas por si só não resolve. Na Europa, todos os clubes ingleses ficaram cinco anos fora das competições continentais após a tragédia de Heysel, em 1985, quando 39 torcedores da Juventus morreram após uma confusão provocada por fãs do Liverpool, adversário na decisão da Copa dos Campeões que acontecia no estádio situado em Bruxelas. E, mesmo assim, a coisa na Inglaterra só começou a mudar para valer depois de outra tragédia, a de Hillsborough, em 1989, quando 96 torcedores do mesmo Liverpool morreram esmagados – e, nesse caso, o problema nem foi causado por briga entre torcidas, e sim por superlotação, falta de segurança e péssima atuação da polícia, tanto antes como depois do desastre. Além disso, a terra da rainha viveu processo escancarado de gentrificação, o que elevou o preço dos ingressos, afastou os pobres dos estádios e… não acabou com a violência. Não há brigas, mas o racismo continua lá, com as imitações de macaco e as bananas atiradas ao gramado.

A Conmebol sonha em transformar a Libertadores em algo parecido com a Champions League. As punições mais duras – embora ainda brandas – são um sinal dessa tentativa de enfrentar, à moda sul-americana, essa imagem de violência e selvageria. A questão é saber como será a reação das arquibancadas. Los de Abajo, a barra brava da Universidad de Chile, tem desafiado as sanções aplicadas contra o clube chileno. No caso do Boca, é difícil imaginar que os capos de La Doce passem a se comportar só por causa da eliminação do time da Libertadores.

E os clubes vão colaborar? Uma multa de 200 mil dólares é dinheiro de vinho barato e chorizo de segunda para uma potência esportiva como o Boca Juniors. O "Panadero" acusado de espirrar gás de pimenta nos jogadores do River pode até ser preso ou proibido de pisar na Bombonera por algum tempo, mas, enquanto a estrutura que permite a La Doce se sentir parte dessa potência não for atacada na raiz, outros padeiros aparecerão – e ninguém sabe o que pode vir depois do gás de pimenta. Vale para o Boca, vale para os principais clubes sul-americanos. A semelhança, já vimos, não é mera coincidência.

Por isso, Senhor, se resolver descer à Terra para conferir um jogo de Libertadores, venha preparado. O bicho vai pegar.

(Fernando Cesarotti é jornalista, professor universitário e colaborador do Puntero Izquierdo.)