​O Burning Man das Pipas é uma Zona Livre de Facções
Foto: Matias Maxx

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​O Burning Man das Pipas é uma Zona Livre de Facções

Pipeiros RJ X SP, dessa vez no RJ.

Foto: Matias Maxx

Foi uma semana quente pra cacete no Rio. Termômetros marcaram não só os tradicionais 40 graus como também atingiram o recorde da primavera, 43 graus, em Santa Cruz. Quando eu, no intuito de recrutar voluntários, falava pros amigos que iria cobrir um festival de pipas em Campo Grande (ali do lado de Bangu, um dos pontos mais quentes e abafados da cidade), a galera falava que eu era maluco e que deveria levar protetor, chapéu e outras parafernálias dignas de um safári. Eu não tenho costume de usar proteção quando tenho de cobrir protestos, imagina então se eu vou ficar preocupado com protetor solar? Enfim, no final das contas, choveu pra cacete no sábado, e o domingo amanheceu com o céu fechadão; logo, embora isso não tivesse impedido o festival de acontecer (pois lá em Campo Grande não chove nunca mesmo), o público foi um pouco menor que o esperado e o céu estava naquele cinza escroto de fotografar.

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Depois de pilotar por uma hora numa sequência de retas intermináveis, o GPS me jogou pra dentro do bairro de Campo Grande, aonde guiei pela mítica Estrada da Posse até o asfalto acabar e eu ir parar na Estrada da Serra Alta, uma ladeira de barro que dá num descampado enorme, onde uma galera já costuma empinar pipa aos sábados e que, duas vezes por ano, recebe festivais de pipa e de balão. Neste domingão, era a etapa carioca do tradicional "Rio x SP", já genialmente coberto em SP pelos colegas Debora Lopes e Felipe Larozza.

Foto: Matias Maxx

Logo de cara, já deu pra se ligar que só tinha homem empinando pipa. Homens de todas as idades (algumas bem avançadas), mas as poucas minas no rolê estavam trabalhando nas barraquinhas, dormindo dentro dos carros ou sentadas de braços cruzados com aquela cara de "Não vejo a hora de essa porra acabar!". Me lembrou bastante os encontros do Growroom, só que com pipas no lugar de maconha. Na real, as semelhanças não paravam por aí. Aliás, passei a tarde toda lá e, embora cerveja e churrasco rolassem sem parar, não vi um baseado rolando. "Como você pode ver, aqui não tem droga rolando, mas não quer dizer que não tem maconheiro! A nossa galera tem consciência e sabe qual é a hora de trabalhar e qual é a hora de relaxar – aqui não tem vagabundo", me falou um integrante de uma turma da Zona Oeste. "E tem também [o fato de] que aqui é área de milícia, a Liga da Justiça. Você vai vê-los dando volta de moto, todos vestidos de preto; inclusive, quando a galera te viu, ficou um pouco escaldada: 'Esse daí com a câmera tá mandado!'." É, eu tava vestido todo de preto.

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Turma Art e Cor. A galera disse que curte esses festivais, embora fale que a 'Pipa nunca pode deixar as comunidades'. Foto: Matias Maxx

Vários carros equipados com caixa de som davam o tempero musical: praticamente, só funk carioca. Rolavam até uns funks sobre pipa, mas o que mais ecoava mesmo era o Funk Putaria, aquele que apavora a classe média. O hit mais tocado era "Que saudades da minha ex". Num determinado momento, a turma "Art e Cor" tocou um lance mais baiano, só que durou pouco. Essa galera do "Art e Cor" era local, lá de Campo Grande mesmo. Era uma galera grande, e ainda estavam recebendo dois manos do "Passô, Fatiô", de Campinas. Eles estavam espalhados ao redor de um carro com um som e de uma van que vendia cerveja e churrasquinho. "Aqui, onde a nossa equipe tá, não tem chepeiro." O chepeiro é aquele cara que não tá a fim de comprar pipa, então ele fica de rolê com um bambu ou uma marimba, resgatando pipas avoadas – ou, às vezes, roubando pipa dos outros mesmo.

O chepeiro. Foto: Matias Maxx

"Isso daí é pior que vírus de internet", afirmou Neném a respeito dos chepeiros. Neném é da turma "Os Patinhos", de Jacarepaguá. Ele, que trabalha numa construção, diz chegar em casa meia-noite para acordar às cinco – e, mesmo assim, adentra a madrugada fazendo pipas e balões. "Conheço gente que vive disso. O pessoal faz várias gambiarras e produz a linha chilena dentro de casa mesmo. Imagina só: cada "dezão" é vendido a R$ 120 reais, e, gastando uns R$ 50, você compra material pra produzir jardas e jardas de linha. É um bom negócio." A obsessão pelo seu hobby já fez Neném terminar dois relacionamentos, um por causa de pipa, outro por causa de balão, porém ele não se arrepende. Seu sonho, assim como de muitos nesse meio, é se mudar pro México, onde o Balão é legalizado. É, eu havia avisado que as semelhanças com os encontros dos cultivadores de maconha eram muitas…

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Tem de tomar muito cuidado pra não enroscar o pé nas linhas espalhadas pelo chão. Foto: Matias Maxx

O cerol e a linha chilena são ilegais. Embora todos os pipeiros com quem conversei reconheçam o risco envolvido, todos também reclamam da legislação. "Aqui ninguém é inocente, todo mundo sabe que pode cortar o pescoço de alguém, mas o pessoal é consciente", declarou um deles que preferiu não ser identificado. De fato, notei muita preocupação entre os pipeiros, e de todas as idades, em levantar a linha quando o pessoal circulava. Na real, o mais importante era tomar cuidado onde pisava para não acabar enroscando o pé em alguma linha e se cortando ou estragando a brincadeira de alguém. Vários moleques usavam meião de futebol para proteger as canelas. O mesmo tipo de consciência é exibido pela turma que curte balão, segundo Neném: "O que o governo não entende é que, se eu solto um balão pequeno, do tamanho de um caixote, já vão colar umas 30 pessoas pra tentar resgatá-lo; um balão de vinte, trinta metros, mobiliza uma multidão: eu já fui até outro Estado seguindo balão e lá conheci outra turma, é muito maneiro!". Os Patinhos soltaram um dos poucos balões daquela tarde. O momento em que ele é solto é superclássico, com direito a muitas selfies.

Foto: Matias Maxx

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Foto: Matias Maxx

A turma da Equipe Morrão do Lins me fortaleceu com uma cerveja puro malte geladíssima. Foto: Matias Maxx

O astral do evento estava muito maneiro. E, mesmo sem nunca ter empinado pipa ou mesmo entender aquela porra toda direito, me diverti muito com a galera, a qual sempre ficava falando que, apesar de ser um encontro "Rio X São Paulo", o astral era de união. Aí, conversando com um amigo da "Equipe Morrão", do Lins, perguntei se, como lá tinha gente de vários locais do Rio de Janeiro, não tinha "caozada de facção". "Então, aqui é área de milícia, nossa comunidade é Comando Vermelho, e a daqueles caras ali do outro lado, por exemplo, é ADA [Amigos dos Amigos], mas aqui não tem nenhum bandido. Você acha que bandido vai vir aqui empinar pipa? Então, a galera até brinca, mas aqui não tem problema; na real, é até um momento em que várias turmas podem se encontrar sem problema, porque, se eu levo alguém de um morro que é facção rival para empinar pipa na minha comunidade, eu tenho de avisar o tráfico." O papo rendeu, e eu ganhei até uma cervejinha e preza de churrasco dos amigos. Num determinado momento, sem eu precisar perguntar mais nada, o amigo emendou: "Tá vendo aquele menor ali? Tem umas semanas atrás [que] ele tava envolvido nessa porra de arrastão. Sabe por quê? Por causa de mulher! Roubou um cordão de ouro pra poder levar a mina no Habib's. Mas a gente o tirou dessa porra: 'Não vai pra praia hoje, não! Vai empinar pipa com a gente!'. E, agora, ele tá felizão! E, se precisar de um lugar pra ir com a mina dele, não tem problema: eu empresto minha quitinete".

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Foto: Matias Maxx

Em todo grupo que eu parava, rolavam histórias sobre intercâmbios com turmas de outras cidades e estados. "O encontro de São Paulo é muito maior do que esse aqui: lá, a gente tem de ficar de costas pro ônibus pois, se andar um pouquinho, já bate uma linha na nuca. Uma vez, no último encontro, colou um cara com uma Land Rover, daquelas bem grandonas mesmo, parou na nossa frente e saiu pelo teto solar com um bambu para tentar roubar pipa dos outros. É claro que a galera não perdoou, e ele teve de sair de lá rapidinho." Embora não estivesse tão cheio, sobretudo por conta da chuva, havia milhares de pipeiros e várias barraquinhas vendendo pastel, x-tudo, cerveja e, é claro, pipas, linhas e carretilhas. Tudo gerido pelas próprias turmas. Parecia um "Burning Man" da pipa.

Galera de Osasco levou uma geral da polícia na chegada ao evento. Foto: Matias Maxx

Num dos cantos, estavam os ônibus que trouxeram as turmas de São Paulo. Colei lá, porém a galera estava com cara de poucos amigos. Eles tinham saído de São Paulo à meia-noite de sábado para domingo. Mal chegaram ao local do evento, às 5h, foram recebidos pela polícia, que encaminhou dois ônibus, um de São Paulo e outro do Espírito Santo, para a delegacia. Linhas e carretilhas foram apreendidas, e todos os ocupantes de ônibus foram obrigado a depor. O pessoal de SP foi liberado às 11h; o do ES, só às 15h. "A galera passou mais tempo na delegacia do que viajando ou empinando pipa! Muita sacanagem! Falha da organização. O pessoal não é recebido assim lá em São Paulo." Mais tarde, comentei o fato com um cara local que foi categórico: "A polícia tá só fazendo o trabalho dela. Foi falha de organização, que não negociou direito; você sabe, aqui é Brasil, pra tudo tem um jeitinho…".

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E saca só mais essas fotos do Matias Maxx:

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