O Chile Ainda Está Coberto de Minas Terrestres de Pinochet
Um soldado começa o processo de escavação ao lado de sua equipe. Imagem cedida por Alejandro Perez

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O Chile Ainda Está Coberto de Minas Terrestres de Pinochet

Abelino Paicil passa seus dias nos limites de imensos campos, assistindo jovens desenterrando minas terrestres.

Abelino Paicil passa seus dias nos limites de imensos campos, assistindo jovens desenterrando minas terrestres. De vez em quando a mente do homem de 59 anos divaga para quando ele era um jovem plantando minas terrestres no mesmos campos.

"Eles estão arrancando o que nós plantamos", disse Paicil, enfermeiro do Batalhão de Desminagem do Exército do Chile atuante na Tierra del Fuego, a inóspita região no extremo sul do país. "É bom ver isso. É bom ver como as coisas podem mudar."

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E as coisas mudaram drasticamente. Em 1980, quando Paicil estava plantando minas nas planícies do Estreito de Magalhães, o Chile estava vivendo sob o jugo do regime ditatorial do General Augusto Pinochet, e se encontrava no meio de uma disputa de fronteira com três de seus vizinhos — o Peru, a Bolívia e a Argentina.

Pinochet, certo de que uma invasão terrestre era iminente, comprou minas terrestres dos EUA e da Bélgica e as enterrou com um ardor febril. Em apenas alguns anos o Chile enterrou mais de 180.000 dispositivos explosivos ao longo de suas fronteiras. Elas estão sepultadas desde então, esperando por inimigos.

Mas elas nunca encontraram nenhum. Ao invés disso, elas explodiram os cascos de várias vacas e lhamas azaradas. Cento e setenta e sete acidentes envolvendo pessoas já aconteceram; 29 dessas detonações foram fatais, a mais recente delas ocorrendo em 2012 quando um peruano que cruzava a fronteira ilegalmente pulou um muro que cercava um campo minado e pisou em uma mina antipessoal. Ano passado um homem colombiano sobreviveu a um acidente semelhante, mas perdeu sua perna direita.

Abelino Paicil é enfermeiro do Batalhão Sulista de Desminagem Humanitário do Exército do Chile. Quando jovem, ele ajudou a enterrar as exatas minas que estão sendo removidas aos milhares nas fronteiras do Chile. Paicil está de prontidão nos limites dos campos minados, caso algum acidente ocorra. Crédito: Katie Worth

Por mais anacrônicas que as minas terrestres pareçam em um dos países que é hoje um dos mais economias mais fortes e política mais estável do mundo, o Chile ainda é assombrado por quase 100.000 minas enterradas em suas fronteiras, um resquício do legado de Pinochet que a nação ainda não superou.

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Para o Batalhão Sulista de Desminagem Humanitária atuando nos campos minados da Tierra del Fuego, esse legado toma a forma de uma veste de proteção de 34 quilos e uma batalha diária contra ventos ferozes.

Em um dia de muito vento em fevereiro desse ano, o enfermeiro Paicil estava sentado no capô de uma ambulância ao lado de seu supervisor, Major Alejandro Perez. Eles observavam os soldados que examinavam o campo em busca de explosivos restantes. Uma dúzia de soldados andavam lentamente dentro de seus incômodos equipamentos de segurança, brandindo detectores de metal. Outros soldados cortavam a grama atrás deles para sinalizar por onde era seguro andar. Um oficial checava o vento. Se a velocidade chegasse aos 70 quilômetros por hora, eles iriam parar suas atividades: ser arrastado pelo vento em um campo minado não é muito recomendado.

ISSO FAZ PARTE DA POLÍTICA, NÉ? AS COISAS MUDAM

Até o momento o vento soprava a 60 quilômetros por hora, então eles continuaram a procurar os explosivos. Na primeira checagem do campo, eles acharam 416 minas, 14 a menos do que os registros históricos indicavam existir naquela região. Ao passo dos dias seguintes, durante a segunda checagem, mais cinco foram encontradas. Naquele dia eles não haviam encontrado nenhuma.

Eles nem sempre encontram todas as minas presentes nos registros. Algumas explodiram há anos sem deixar rastros. Outras foram arrastadas pelas águas, e é muito provável que estejam no fundo de algum lago próximo. Ocasionalmente algum morador local encontra uma delas e a leva para casa.

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Depois do batalhão checar o campo com seu equipamento desminador duas vezes, ele é declarado como limpo. O batalhão retira as cercas e as placas, e, após uma cerimônia com habitantes e líderes locais, permitem o acesso público ou uso privado do terreno pela primeira vez em três décadas e meia.

Soldados percorrem campos usando detectores de metais para encontrar minas terrestres. Outro soldado os segue, cortando a grama para indicar as áreas que já foram checadas. Imagem cedida por Alejandro Perez

Hoje, a ameaça de uma invasão armada não passa de uma memória distante. Agora o Chile está desenterrando suas minas terrestres, um processo laborioso que já recebeu críticas por sua lentidão. Em 2001 , o Chile ratificou o Tratado de Ottawa, se comprometendo a desenterrar e destruir todas suas minas até 2012. Inicialmente, o Chile aceitou esses termos, mas o prazo foi estendido até 2020 graças ao lento progresso da missão.

Líderes da campanha de desminagem afirmam que a lentidão se deve às condições extremas das fronteiras Andinas: algumas minas foram instaladas em terrenos a mais de 15.000 pés acima do nível do mar; a maioria fica enterrada sob metros de neve por meses, e grande parte delas está extremamente isolada, o que obriga o exército a construir alojamentos e instalações para seus batalhões trabalharem nesses locais.

Com o passar do tempo o número de fatalidades das minas terrestres aumenta, e alguns representantes internacionais são céticos quanto ao vagaroso avanço do governo chileno. Abigail Hartley, chefe da polícia e porta-voz do Serviço de Ação de Minas Terrestres das Nações Unidas, disse que é normal que países como o Chile peçam a extensão do prazo de desminagem completa.

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"Mas é irritante, já que a maioria deles não precisa", ela disse. "O Chile poderia ter terminado o processo em 2012, se o governo realmente tivesse se esforçado."

Hartley acrescentou que o Afeganistão, um dos países mais ameaçado por minas terrestres, está processando até 100 quilômetros quadrados de campos minados por ano. O Chile começou com uma área de apenas 23 quilômetros quadrados, e até o momento checou 10 deles. "O que o Chile está fazendo?" perguntou Hartley.

Outros na comunidade internacional tem uma visão um pouco mais complacente do ritmo de desminagem do Chile. Kerry Brinkert, diretor da Unidade Suporte de Implementação da Convenção de Proibição de Minas Antipessoais, descreveu o Chile como "um bom seguidor da convenção — ele tem progredido continuamente, e está usando todos os recursos disponíveis para isso", disse ele, acrescentando que não é justo comparar o Chile ao Afeganistão, que recebeu dezenas de milhões de dólares de órgãos internacionais para desativar as minas. "Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa", ele disse.

De acordo com o Coronel Juan Mendoza, chefe da Comissão de Desminagem Humanitária Nacional, a extensão do prazo não foi o resultado de incompetência, mas sim dos terrenos acidentados que precisam ser percorridos e do comprometimento com a segurança dos batalhões.

Em um primeiro momento, o Chile teve que buscar exaustivamente toda informação disponível sobre a localização das minas terrestres. Algumas eram óbvias — campos minados que estavam isolados há anos, ou que apareciam em documentos da época da ditadura. Mas em outros casos a Comissão de Desminagem teve que se basear nos relatos dos membros da comunidade. Já que o Chile está usando todos recursos disponíveis para fazer a remoção das minas terrestres, o governo teve que criar batalhões de desminagem compostos por soldados e marinheiros, e ensiná-los a utilizar um série de equipamentos recém-adquiridos.

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E o país progrediu: de acordo com a Comissão de Desminagem, nos 13 anos desde que o Chile assinou o tratado, o país já removeu 85.054 das 181.814 minas que existiam em suas fronteiras, liberando 88 dos 199 campos minados. Mas os 53 por cento restantes devem ser removidos nos próximos 6 anos, segundo o Tratado de Ottawa.

Quando indagado se o Chile cumpriria o prazo de 2020, Coronel Mendoza hesitou. "Esse será o grande desafio. Se nós estivermos sob circunstâncias normais, achamos que sim", disse.

"Circunstâncias normais" não incluem aquelas que ocorreram no deserto do Atacama, ao extremo norte do Chile, em 2012, quando uma tempestade rara e violenta no deserto mais seco do planeta arrastou algumas das minas instaladas nas montanhas até uma estrada interestadual, explodindo algumas delas no trajeto. Outros campos minados chafurdaram na lama. Minas que antes estavam a alguns centímetros da superfície estão agora a vários metros de profundidade, o que dificulta sua detecção com o equipamento comum.

"Nós estamos procurando essas minas centímetro por centímetro", disse Mendoza. "Elas não estão onde costumavam estar."

Cristian Garnica, um soldado chileno especializado procura minas usando um veículo de captura remota de minas terrestres fabricado na Eslováquia, o Bozena 5. Crédito: Katie Worth

Assim como Paicil, Mendoza está desfazendo o trabalho de sua própria juventude. Em 1979, Mendoza era um tenente do exército de Pinochet, e ajudou a instalar muitas das minas que estão sendo desativadas. Mendoza é pragmático quando o assunto é o rumo teatral de sua carreira.

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"Isso faz parte da política, né? As coisas mudam", ele disse. "Enterrar minas terrestres era necessário, na época. Mas agora nós devemos completar o trabalho que prometemos à comunidade internacional."

A necessidade de se instalar as minas é algo questionável. O Chile entrou em disputas de fronteira com três de seus vizinhos ao longo do século 20. Essas disputas tiveram uma virada sombria nos anos 70, quando o Chile e a Argentina quase entraram em guerra porque causa de um punhado de ilhas inabitadas no Canal Beagle. Os líderes militares do Chile acreditavam que a Argentina poderia invadir o país, e temiam que o Peru e a Bolívia se aproveitassem do caos e seguissem a deixa da Argentina, disse Patricio Navia, um professor de estudos Latino-Americanos na Universidade de Nova Iorque.

"Pinochet não era um paranóico", disse Navia. "Ele instalou minas terrestres nas fronteiras do Sul porque a Argentina estava ameaçando invadi-los, e instalou as minas nas fronteiras do Norte porque se a Argentina os invadisse, o Peru e a Bolívia não resistiriam — eles também partiriam para o ataque."

Uma motivação à parte também propulsionou a demonstração de poderio militar, disse Nara Milanich, um professor de história Latino-Americana a Universidade Barnard. Pinochet sabia que os chilenos iriam se voltar contra seu governo se achassem que o território estava sendo ameaçado. "É de se imaginar que um ditador expansionista e belicoso fosse se aproveitar de um momento de tensão para angariar suporte para suas políticas", disse Milanich.

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Nesse sentido, as minas terrestres são tanto um símbolo quanto uma realidade do legado de Pinochet, enterradas na superfície do cotidiano chileno. O general chegou ao poder em um golpe de Estado violento em 1973, que, com o apoio da CIA, destituiu o governo do Presidente Salvador Allende, o primeiro líder socialista eleito democraticamente na América Latina. Nas semanas e anos que seguiram o golpe, o regime de Pinochet torturou e matou milhares de dissidentes e levou 200.000 de chilenos ao exílio.

É claro que, na época, muito países da América Latina eram governados por ditadores violentos e autocráticos. Mas a influência de Pinochet no futuro de seu país foi única: ao contrário de países como a Argentina e Honduras, onde a ditadura possuiu vários líderes, Pinochet governou despoticamente durante 17 anos, o que permitiu que ele moldasse várias políticas que ainda estão em andamento.

Mais tempo se passou desde que Pinochet abdicou do poder do que toda a duração de seu governo. Mas ambos Navia e Milanich acrescentam que, mesmo 24 anos após o final do governo de Pinochet, nenhum chileno está imune às diretrizes que ele inseriu na política, na economia e na cultura do país.

"Podemos pensar no Chile como o Luke Skywalker e no Pinochet como o Darth Vader. Pinochet é o pai do Chile, e é inevitável que o Chile tenha que viver com esse legado", disse Navia.

Apesar do tédio do trabalho, nunca faltam voluntários para os batalhões de desminagem do exército, segundo Perez. Atualmente o Chile está em paz, o que significa que seus soldados não vivenciam nenhum combate. "Os caras da desminagem são os únicos que fazem algo que é feito em uma guerra, o que aumenta o status deles dentro de suas instituições", disse Perez. Mas não é permitido trabalhar na desminagem por mais de três anos, disse Perez. "Após três anos o cara perde o respeito pelo campo minado. Os acidentes acontecem na marca dos três anos."

Quando Paicil estava instalando essas minas, eles não tomavam nenhuma precaução. Ele havia sido designado como enfermeiro do batalhão, mas quando ele ficava entediado eles deixavam que ele instalasse algumas minas, mesmo sabendo que ele não havia passado por nenhum treinamento. Era um trabalho empolgante, do qual ele gostava muito. Atualmente, seu trabalho é ficar nos limites dos campos ventosos, esperando por algum acidente que, até o momento, não ocorreu em seu batalhão. "O trabalho é muito mais tedioso hoje do que quando eu era jovem", disse. "Graças a Deus."

Tradução: Ananda Pieratti