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O Complexo Secreto de Tortura em Londres

Algumas histórias de tortura que aconteceram na "Jaula de Londres".

O Kensington Palace Gardens, antigo lar da “Jaula de Londres”. (Foto via)

Considerando tudo, Kensington e Chelsea são provavelmente os bairros que fazem os londrinos se sentirem mais de mal com suas vidas. Não é um lugar pra gente como você; é um lugar para sultões, xeques, oligarcas e pessoas que sentam bem lá no topo das estruturas de poder que o povo britânico não entende muito bem. É um lugar onde os cachorros comem melhor que você e onde os gatos têm suas próprias televisões. É um lugar onde as pessoas sempre carregam mil dinheiros de várias moedas fortes porque nunca sabem em que país vão passar a noite. Mas você sabia que lá costumava ser o lar de um complexo gargantuesco de tortura?

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A Jaula de Londres, como ficou conhecida, se situava dentro de três prédios que agora são usados como parte da embaixada russa, na vizinhança das casas atuais do Sultão de Brunei e de Roman Abramovich. Sessenta anos atrás, o lugar serviu como um dos muitos centros britânicos de interrogatório da Segunda Guerra Mundial, e como quartel-general da Unidade de Investigação de Crimes de Guerra depois de 1945.

Dentro dos muros do Kensington Palace Gardens, a Inglaterra dava pouca bola para a convenção de Genebra, servindo tormentos ao nível dos gulags e interrogatórios ao estilo de Guantánamo para criminosos de guerra nazistas. Que o prédio já tenha abrigado um vasto complexo carcerário do qual você nunca tinha ouvido falar (talvez porque, estranhamente, esse detalhe foi omitido dos itinerários de turismo) revela muito sobre a Grã Bretanha e suas práticas secretas desde a Segunda Guerra Mundial.

Entre julho de 1940 e setembro de 1948, 3.573 soldados inimigos passaram por essas portas, incluindo vários famosos criminosos de guerra. Fritz Knochlein, por exemplo – o soldado da SS responsável por massacrar 97 membros do Segundo Batalhão do Regimento Real de Norfolk em Le Paradis, França – e um Gauleiter nazista (um líder regional do partido nazista) chamado Sporenburg, que foi considerado culpado de matar sistematicamente 46 mil judeus poloneses em 24 horas. Seu método envolvia reunir as vítimas aos milhares nos campos de concentração, levá-las ao campo aberto e forçá-las a cavar suas próprias covas onde cairiam depois de serem baleadas pelos soldados nazistas.

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Fritz Knochlein da SS. (Imagem de The London Cage)

Ninguém está discutindo que as pessoas que acabaram na Jaula de Londres acabaram ali por razões bastante boas. Mas o interesse aqui está no fato disso ter permanecido um segredo por tanto tempo, apesar de ficar a menos de quatrocentos metros de Notting Hill Gate e das estações de metrô da Kensington High Street. Na verdade, a existência da Jaula só foi denunciada em 2005, quando o jornalista Ian Cobain finalmente revelou suas práticas.

Em 1946, Knoechlein afirmou numa reclamação por escrito que tinha sido despido, impedido de dormir por quatro dias, impedido de comer, forçado a correr até desmaiar, forçado a marchar em pequenos círculos por quatro horas, espancado com um bastão, forçado a ficar dentro da água congelante depois de ter ficado perto de um grande forno a gás por horas e forçado a correr em círculos carregando pesadas toras de madeira. Outros detentos corroboraram essas afirmações, acrescentando que também foram ameaçados com aparelhos elétricos. Dizem que Knoechlein chegou a um ponto em que gritava em seu estado meio ensandecido durante o sono, fazendo com que a polícia local ligasse perguntando o que diabos era aquele barulho vindo do Kensington Palace Gardens.

O homem no comando, o tenente-coronel Alexander Scotland – o agressivo e intransigente chefe da seção de interrogatório dos prisioneiro de guerra do corpo de inteligência – mostrou-se sempre indignado quando confrontado com as alegações de tortura. Um trecho de seu livro de memórias dá uma ideia vívida da atitude que ele tinha diante de alegações similares. Ele relembra um diálogo com uma advogada chamada Dra. Oehlert, que defendia Erich Zacharias – um homem acusado de matar um oficial da RAF e que teria supostamente também mandado matar sua amante – durante um julgamento de 18 nazistas em 1947.

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Dra. Oehlert afirmava que “seu cliente reclamou de ter apanhado várias vezes no rosto na Jaula de Londres, que alimentos foram retirados dele por vários dias e que, em muitos dos dias em que ele foi interrogado, não foi permitido que ele dormisse durante a noite.”

Se dirigindo a Scotland, ela continuou: “Zacharias diz que você o ameaçou com aparelhos elétricos.”

Scotland respondeu: “Completamente falso. Não temos armas nem aparelhos como esses na Jaula de Londres.”

“E assim por diante”, escreveu Scotland em seu livro, The London Cage, publicado pela agora extinta Evans Brothers em 1957, “até que outro advogado da defesa sugeriu que eu disse aos prisioneiros que eles seriam enforcados com suas esposas ou deportados para a Sibéria onde se tornariam propriedade comum.”

Tenente-coronel Alexander Scotland. (Imagem de The London Cage)

No que parece mais um movimento de briga de meninas, Scotland também foi acusado de puxar o cabelo dos prisioneiros. Novamente, ele refutou tais acusações e encontrou um jeito bizarro e vagamente ridículo de provar que seus acusadores estavam errados.

“Essa alegações me interessaram, porque me pareceu uma forma muito improvável de tortura, e possivelmente muito ineficaz”, ele escreveu. “Então, na presença de muitas testemunhas na Jaula de Londres, dei uma demonstração para provar que isso era impossível. Um dos meus assistentes britânicos e suboficial concordou em ser a cobaia do teste. Primeiro, ele se esparramou no chão e eu peguei firmemente em seu cabelo. Finalmente, eu o arrastei dessa maneira pela sala… como resultado, quando soltei seu cabelo, apenas alguns poucos fios podiam ser vistos na minha mão… E, como frequentemente acontece, algumas manchetes dos jornais foram muito imprecisas, como, por exemplo… 'Homens da Gestapo Não Foram Espancados – Mas Tiveram o Cabelo Puxado'.”

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As histórias que emergem da Jaula vão do angustiante ao absurdo, como outro caso de alguns anos antes reportado nas memórias de Scotland: o caso do “Garoto Que Não Parava de Rir”.

Um dos poucos sobreviventes do navio de guerra alemão Bismarck que afundou no Atlântico em 1941 “foi trazido para a Jaula de Londres, onde seu interrogatório começou. Sua resposta a todas as perguntas, no entanto, era uma risada descontrolada. Mesmo as questões mais comuns e simples provocavam um acesso de riso. Era como se, no meio de toda aquela infantilidade, ele possuísse uma faísca intuitiva, um reflexo, que resultava num método estranho de evitar um assunto sobre o qual ele tinha sido ensinado a guardar segredo.”

Scotland afirma que seu método para resolver esse empecilho foi simplesmente rir com o garoto, levando-o a colocar suas ideias no lugar e a falar direito.

(Imagem de The London Cage)

Tenentes sádicos e bizarros à parte, o segredo em torno da Jaula de Londres mais uma vez levanta a questão da chamada “política de não tortura” da Inglaterra desde o final da guerra. Claro, foram os caras enfrentando acusações de homicídio em massa que passaram pelos piores tratamentos. E as acusações – especialmente no caso de Knoechlein, que já tinha sido sentenciado à morte e parecia obcecado em sujar a reputação do exército britânico antes de ser executado – devem ser tratadas com ceticismo. Mas seus relatos não diferenciam substancialmente daqueles contados por outros prisioneiros; e, como Darius Rejali afirma em seu livro Torture and Democracy, não podemos ignorar o fato de que “Scotland se recusou a permitir inspeções da Cruz Vermelha, argumentando que os prisioneiros eram civis ou criminosos das forças armadas, portanto protegidos pela convenção de Genebra.”

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Uma investigação posterior do MI5 concluiu o oposto, mas Scotland nunca foi acusado, apesar de mais tarde ter admitido: “Nunca praticamos qualquer sadismo. Ainda assim, algumas das coisas que fizemos foram mentalmente cruéis… Um colega que chegou até nós era atrevido e obstinado. Dissemos a ele que se despisse e eventualmente ele ficou diante de nós completamente nu. Isso o desinflou. Então dissemos a ele para começar a fazer exercícios. Isso matou completamente sua resistência. Logo ele começou a falar.”

A humilhação também se estendia às funções corporais: “Às vezes mandávamos que eles ficassem em pé por vinte e quatro horas”, Scotland continuou. “Se um prisioneiro quisesse urinar, tinha que fazer ali mesmo, em suas próprias roupas. Era algo surpreendentemente efetivo.” Conta-se também que os oficias britânicos responsáveis pelos interrogatório usavam uniformes da KGB para intimidar os detentos alemães.

Foi por causa disso que o Ministério da Guerra bloqueou as memórias de Scotland quando ele as submeteu à censura em 1950? Ele foi rapidamente ameaçado com uma ação judicial nos termos da Lei de Segredos Oficiais e sua casa foi revista sem aviso. O Ministério das Relações Exteriores insistiu que o livro fosse escondido do conhecimento público e ele só foi publicado sete anos depois, quando todas as evidências incriminatórias foram retiradas.

Seja qual for a causa exata – e podemos nunca saber – é importante destacar há quanto tempo a Inglaterra usa a tortura, agora que crescem as preocupações quanto à introdução de Tribunais Secretos, casos fechados onde os acusados podem não ter conhecimento de todas as alegações feitas contra eles, presididos apenas por um juiz e “defensores especiais” liberados pelo governo.

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Temos uma longa história nos apresentando como um país justo que respeita e apoia os direitos humanos. E agora nosso governo tem mais liberdade que nunca para esconder informações de nós; para cobrir seus rastros, quando o processo justo não se mostra tão efetivo quanto a força bruta.

Siga a Nathalie no Twitter: @NROlah

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