O corre dos pizzaiolos

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O corre dos pizzaiolos

Os endinheirados tomam whey protein e contam com ajuda profissional, mas ainda não conseguem superar aqueles que comem umas calabresinhas e treinam no trajeto da casa para a pizzaria.

Garçons, pizzaiolos, entregadores, todos unidos. Foto: Guilherme Santana/ VICE

Funciona assim: o sujeito nasce no interior e, sem perspectiva, decide tentar a sorte na capital, seguindo a trilha aberta pelo tio, pelo primo, pelo irmão mais velho. E logo está quase todo um clã junto na grande cidade, gente que batalha por salários de 3 mil, 4 mil reais e vive em puxadinhos no fundo das casas dos parentes.

Os filhos desses migrantes, mais tarde, vão estudar em escolas públicas deficientes para, quem sabe, conseguir vaga numa faculdade mais ou menos. O ciclo se repete por gerações. "O de cima sobe, o de baixo desce", como musicou Chico Science em A cidade.

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Mas nem sempre é assim, ainda bem. Há lugares em que os de cima podem ir para baixo e os de baixo, subir. Nas competições atléticas, por exemplo.

Na corrida de rua, um esporte que não exige grandes investimentos, há muita gente de cima que aplica 200, 300 reais por mês em assessorias esportivas, participa de provas em Berlim, Buenos Aires e Boston, mas nem sempre consegue chegar tão longe quanto os funcionários da rede de pizzarias 1900, de São Paulo.

A calabresinha, o combustível. Foto: Guilherme Santana/VICE

Lá, a corrida é uma febre entre garçons, pizzaiolos, assistentes de cozinha, entregadores – muita gente que migrou do Nordeste para São Paulo, mora na periferia e faz jornadas de trabalho que só terminam de madrugada. Com todas essas dificuldades, eles obtêm tempos excelentes em provas de longa distância. No famoso revezamento Bertioga-Maresias, prova de 75K tradicional do litoral de São Paulo, chegaram em sexto entre as equipes.

Se os corredores endinheirados que treinam em assessorias esportivas tomam whey protein e fazem dietas balanceadas, a tigrada da 1900 come de tudo; se aqueles praticam corrida em parques bem cedinho ou no começo da noite, os funcionários da pizzaria têm de se virar com treinos sob sol a pino, às 2 da tarde. Alguns, para complementar, usam o trajeto de casa para o trabalho como treinamento.

É o caso do pizzaiolo José Daniel de Souza, o Zé Daniel, 30 anos, cearense de Pedra Branca, cidadezinha não muito distante da Quixeramobim da música do Chico Buarque. Zé tem um tempo absurdo para os 10 quilômetros, cerca de 38 minutos, e já completou a meia-maratona (21 quilômetros) em 1 hora e meia. (São tempos impressionantes. Faça um teste na esteira: tente correr 1 quilômetro abaixo de 4 minutos. Multiplique então a parada por dez. Não vale parar.) Daniel agora se prepara para estrear na maratona, em abril, mas uma dor no joelho esquerdo que ele ganhou nas férias anda lhe incomodando. "Voltei do Ceará em janeiro com essa dor. Fiz um treino de 19 quilômetros, tinha muita subida, espero que não me atrapalhe em abril."

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Não poder correr a maratona, a mítica prova de 42 quilômetros, seria uma grande frustração, mas resignação é uma coisa que essa rapaziada aprende desde muito cedo. Tendo estudado apenas até a antiga quarta série e hoje vivendo numa casa em São Mateus, nos fundões da Zona Leste de São Paulo, com uma filha pequena e um salário que com comissões não chega a 3 500 reais por mês, Daniel diz que "não tem do que reclamar". "Fui criado na roça, estou feliz com o que tenho."

Também feliz com o que tem – inclusive seus treinos de corrida – é outro Zé, o Alves, que trabalha na unidade da Chácara Flora. Alves veio de São João do Piauí, na boca da linda e paupérrima Serra da Capivara, em 1996. Vive no Grajaú, Zona Sul de São Paulo, e às vezes vai correndo pela muvucada avenida Teotônio Vilela para o trabalho. O autódromo de Interlagos, que ele vê da rua, talvez até sirva de inspiração, mas o trânsito e as calçadas cheias de gente são um estorvo para qualquer um ganhar velocidade. Alves não é tão rápido quanto o xará Daniel, mas já cravou 42 minutos para os 10 quilômetros, outro tempaço.

Família Alves indo pro trampo. Foto: Guilherme Santana/VICE

Na corrida está também Roberto Carlos Alves, 44 anos, pizzaiolo e irmão mais velho de Zé Alves. Este ano ele sofreu com uma contusão no calcanhar e está um pouco mais lento. Correu meia maratona e não pensa ainda na maratona, como os Zés. "Parece uma rixa de irmãos, mas a corrida junta, não separa", diz Roberto.

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Ele logo cita o irmão caçula, Raimundo Alves, 35, o chefe dos pizzaiolos, que decidiu, não faz muito tempo, a correr junto dos familiares. "A corrida, não sei o que ela ajuda no meu trabalho, mas se eu sair da 1900, vou manter essa atividade", conta Raimundo, que fez prova de meia maratona (21 quilômetros) para 1:47, abaixo dos irmãos mas um tempo excelente para a média geral dos corredores amadores.

Os três irmãos e Josias, primo dos Alves e garçom, correm junto duas vezes por mês (em média) do Grajaú – todos moram lá, em bairros diferentes – pro trampo. Nascido na região da Serra da Capivara, em São João do Piauí, Josias veio pra SP em 97, trabalhou como ajudante geral numa metalúrgica e chegou à pizzaria em 1998. Ficou um tempo de segurança e virou depois garçom, função que gosta muito. "Quando eu não corro, sinto meu trabalho mais pesado", diz. Ele treina três vezes por semana mas sua quilometragem ainda é baixa – fez provas de 5K mas pretende logo estar na meia (21K).

Josias modo corredor. Foto: Guilherme Santana/VICE

A corrida de rua começou a ganhar popularidade no Brasil nos anos 2000, e hoje há diversas empresas que, como a 1900, oferece treinos e paga provas para seus funcionários. Erik Momo, dono da 1900, diz que a empresa investe "cerca de 2 mil reais por mês na corrida". É, na sua opinião, muito melhor do que subsidiar a velha pelada – o futebol – coisa que a empresa também faz e que sempre gera "atritos" entre os trabalhadores.

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"Na corrida você não tem de alugar quadra, e ela ainda ajuda no relaxamento e na melhoria da capacidade de concentração dos funcionários", diz Momo. "Considero que toda prática esportiva requer disciplina, e quem mantém essa disciplina consegue levá-la para a família e para o ambiente de trabalho."

O cearense Zé Daniel também prefere a corrida ao futebol. Segundo ele, nas passadas pelo asfalto há um espírito colaborativo, enquanto nas peladas sempre rola clima de "revanche". Ele exemplifica dizendo que o time de uma unidade – Vila Mariana ou Perdizes, digamos – não admite perder para outra.

Nada, no fim das contas, que a gente não veja nas séries A, B, C, A-1, A-2, A-3, A-4 de qualquer campeonato de futebol, de qualquer cidade, de qualquer país, de qualquer liga, de qualquer época.

Quando a corrida entra em campo, contudo, o espírito de competição é que leva a melhor.

Josias modo garçom. Foto: Guilherme Santana/VICE