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Entretenimento

O filme cortado

‘Promiscuidade: Os Pivetes de Kátia’, o pornô da Boca do Lixo, é exibido no Canal Brasil em versão censurada.

Na segunda metade dos anos 1980, a produção cinematográfica da Boca do Lixo descambou para o sexo explícito. Os exibidores não queriam mais saber de filmes que não tivessem cenas hardcore. "Foi uma espécie de morte da pornochanchada. Os exibidores queriam trabalhos que tivessem cenas mais ousadas", resume o cineasta José Adalto Cardoso que acabou dirigindo dez produções no gênero.

O primeiro exemplar brasileiro do pornô foi Coisas Eróticas (1982) do ítalo-brasileiro Raffaele Rossi (1938-2007). O sucesso foi imediato: 4,7 milhões de espectadores. O diretor de fotografia Virgílio Roveda, o Gaúcho, trabalhou algumas vezes com Rossi e não guarda boas recordações dele. "O Raffaele não acrescentou nada para a cinematografia paulista. Era um filme horrível com um bando de enxerto que deu uma baita renda", opina Roveda.

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"Filme de sexo explícito era só trepada" — Walter Wanny

As produções pornôs paulistas não tinham dinheiro para competir com os filmes realizados fora do país. O jeito foi baratear ainda mais as produções com poucos dias de trabalho. Sem opções, o montador e cineasta Walter Wanny foi um dos profissionais que acabou embarcando no gênero. Em 1987, ele lançou o longa-metragem A Tara do Touro . "Foi pela minha própria empresa. Era uma equipe pequena: eu, o Henrique Borges fotógrafo, o Amauri assistente de câmera e um eletricista. Levamos o elenco para um apartamento no Guarujá e filmamos praticamente tudo dentro de um quarto. Acho que fizemos aquela fita em uma semana ou duas", rememora Waltinho. "Filme de sexo explícito era só trepada", resume ele fumando seu cigarro sem nenhuma nostalgia.

Wanny acompanhou de perto a trajetória do ator, diretor e produtor Tony Vieira (1938-1990). Conhecido pelos filmes do gênero faroeste e policial de baixo orçamento, Vieira acabou produzindo películas no gênero hardcore em busca de dinheiro. "Ele não gostava desse gênero. Tanto que assinou esses filmes como Mauri de Queiroz e não como Tony Vieira", lembra Waltinho.

"Não eram as mesmas atrizes da pornochanchada que foram fazer os pornôs. A gente buscava meninas novas que trabalhavam nas boates na chamada Boca do Luxo." — Walter Wanny

Na segunda metade dos anos 1980, Wanny tinha outra atividade fora do cinema. Ele era proprietário do Cinechopp, um bar localizado na rua do Triunfo e que reunia o pessoal do meio cinematográfico. Ele conheceu com intimidade o período em que o quadrilátero passou a produzir filmes de sexo explicito. "Não eram as mesmas atrizes da pornochanchada que foram fazer os pornôs. A gente buscava meninas novas que trabalhavam nas boates na chamada Boca do Luxo, ali na (rua) Major Sertório." Diversas atrizes do cinema hardcore da rua do Triunfo trabalhavam nessas boates. Waltinho prefere não revelar quais.

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O cineasta José Adalto Cardoso afirma que muitas atrizes das produções pornôs paulistas eram recrutadas pelo produtor Darby Daniel. Nome atuante da cena LGBT paulista nos anos 1980, Daniel era muito conhecido no meio noturno. "Não renego que fiz esses filmes. Mas chegou uma hora que nem era cinema mais. A gente fazia tudo muito improvisado sem qualquer tipo de produção", resume Adalto.

Dentro do cinema explícito da Boca duas produtoras se destacam por conseguir realizar filmes artesanalmente mais bem-acabados: a Galápagos e Virgínia Filmes. A primeira pertencia ao chinês Juan Bajon. Cinéfilo inveterado, o produtor acabou colocando esse nome na empresa em homenagem a um documentário que assistiu sobre o inusitado arquipélago localizado no Oceano Pacífico.

A Galápagos produziu mais de trinta títulos como Borboletas e Garanhões, Seduzida por um Cavalo, Júlia e os Pôneis e Fêmeas que Topam Tudo. "Trabalhar com o Bajon era fácil porque ele sempre foi uma pessoa muito honesta. Muitas vezes rodávamos os filmes na chácara dele em Campinas (interior de São Paulo)", recorda o cineasta Alfredo Sternheim, que assinou onze longas-metragens na produtora. Todos os filmes realizados por Alfredinho possuíam história, roteiro e tinham a música clássica como trilha sonora. "Sempre gostei de contar histórias. Nessa fase não foi diferente. Muitos diretores assinaram esses filmes com pseudônimo. Eu não. Assinei com meu nome e paguei um alto preço por isso. Recebi preconceito de meio mundo."

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Imagem: Reprodução do acervo da Cinemateca Brasileira

VIRGÍNIA FILMES
Já a Virgínia Filmes produziu mais de 25 títulos. A empresa pertencia ao cineasta Fauzi Mansur. Diferentemente de Sternheim, Mansur nunca teve nenhum apreço pelos filmes dessa fase. Tanto que assinou seus filmes explícitos com quatro pseudônimos diferentes: Victor Triunfo, Vitor Triunfo, De Bako e Izuf Rusnam (seu próprio nome ao contrário). Na segunda metade dos anos 1980 a Virgínia produziu mais de trinta longas-metragens dirigidos por Custódio Gomes, Waldir Kopeszky e pelo próprio dono.

Uma das produções mais inusitadas lançadas pela Virgínia foi o longa-metragem Promiscuidade: Os Pivetes de Kátia (1984). O filme contava com cenas de sexo explícito envolvendo a atriz Kristina Keller e alguns garotos menores de idade. Dentro da história da película, uma jovem mulher casada passa a se oferecer sexualmente para menores num ancoradouro de barcos. Os garotos chegam a fazer fila para terem momentos de intimidade com a mulher. O inusitado é que mesmo com cenas de pedofilia, o filme foi liberado sem cortes pela Censura Federal e lançado comercialmente após a Páscoa de 1984, época em que os cinemas estavam dominados por produções bíblicas. "No Ouro, a faixa anunciando Os Dez Mandamentos está embaixo da placa de Calígula 2 (…) Ao lado um outro cartaz mostra as fotos do próximo lançamento do cinema, o filme Promiscuidade - Os Pivetes de Kátia ", publicou a Folha de São Paulo em 21 de abril.

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"Todos aqueles pornôs da Boca eram liberados por mandato judicial. Era época do Figueiredo (último presidente da Ditadura Militar) e a Censura já não apitava mais nada." — Virgílio Roveda

"Todos aqueles pornôs da Boca eram liberados por mandato judicial. Era época do Figueiredo (último presidente da Ditadura Militar) e a Censura já não apitava mais nada. Tinha um advogado especializado em liberar os filmes paulistas", conta o diretor de fotografia Virgílio Roveda. Ele próprio chegou a trabalhar em três filmes dessa fase produzidas por Mário Lima e dirigidas por José Mojica Marins, o Zé do Caixão ( A Quinta Dimensão do Sexo, 24 Horas de Sexo Explícito e 48 Horas de Sexo Alucinante ). Ele lembra que o trabalho nesse tipo de filme era bastante desgastante para os técnicos. "Era um verdadeiro massacre. Teve uma vez em que eu e o Geraldão (assistente de câmera) trabalhamos dezoito horas seguidas."

Promiscuidade foi lançado comercialmente em 30 de abril de 1984 no cine Ouro, um dos principais cinemas do centro de São Paulo. O filme também foi exibido no cine Globo e no Broadway, duas salas do centro da capital paulista. Durante o lançamento do longa-metragem nenhum jornal paulista ou brasileiro questionou o filme por ter cenas de pedofilia.

"Lembro que tinha cenas meio chocantes. Principalmente naquele porto. A garotada fazia fila e depois a câmera filmava dentro do barco a molecada fazendo a festa com a Kristina", lembra o cinéfilo Beto Ismael, que assistiu o longa-metragem no cinema em sua primeira versão em 1984.

Trinta anos depois, o longa-metragem começou a ser exibido no Canal Brasil. Mas sem as cenas hardcore. Qual seria o motivo? Por que essas cenas foram retiradas agora? A VICE tentou conversar por telefone com o diretor e produtor duas vezes. Fauzi, porém, não quis falar sobre o assunto. É fato que a versão exibida no Canal Brasil e no Now, serviço on demand de filmes da Net, é diferente da exibida originalmente nos cinemas. A versão integral de Promiscuidade- Os Pivetes de Kátia permanece praticamente inédita para o grande público.

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