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Música

O Historiador É História: Erika Palomino e a Cena Clubber de SP

Conversamos com a jornalista que viveu e reportou intensamente os primeiros ciclos de vida do house/techno na cidade.
Foto por Jonas Tucci. Todas as reproduções do livro Babado Forte foram autorizadas pela autora.

Não há maneira de entendermos a atual cena de música eletrônica de São Paulo (e inevitavelmente a do Brasil) se não fizermos uma imersão no passado, especificamente entre 1988 e 1991, anos de efervescência na cultura underground da cidade. Foi a época em que explodiu a house music no mundo, filha da disco dos anos 1970 e que, no Brasil, teve seu auge nas discotecas dos anos 1980. O club Nation, nos fundos de uma galeria comercial da Rua Augusta, foi a primeira casa da cidade a mergulhar na eletrônica, que lá fora já tomava de assalto o traseiro da música pop.

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Na pista do Nation a galera tinha acesso a sons como "Big Fun" e "Good Life", do Inner City, e logo cedo na história do clube a trilha sonora foi sendo preenchida pelo techno. Este é o ponto de partida do livro Babado Forte, da jornalista Erika Palomino. Ainda que a autora tenha construído a narrativa da obra – de 288 páginas e lançada em 1999 – a partir de uma compilação de notas e relatos de vivência pessoal, as impressões contidas ali deram forma a uma sólida documentação sobre como o conceito e a alma da cultura notívaga da metrópole se formaram e se consolidaram no que conhecemos hoje da cidade.

A costura do texto, ágil e baseada em mais de uma centena de entrevistas com personagens-chave da noite, dá um panorama cronológico e cheio de minúcias que começa na histeria do Nation, passa pela ferveção do Massivo, desemboca na baderna do Sra. Krawitz, visita o deslumbre da turma do Hell's com o ecstasy e o techno e lança olhares apurados sobre o nascimento das festas-rave, as boates gay e as drags saindo do gueto. Fala também de moda em meio a tudo isso: Mercado Mundo Mix, Cybermanos, Heroin Chic, o Hype Sneaker, Body Modification, Street Wear e mais um monte de coisas então novidadeiras.

A Erika teve sorte de fazer parte do rolê de várias dessas cenas ao mesmo tempo em que podia reportá-las para a Folha de S. Paulo, onde começou a trampar em 1988. Ela acabou saboreando tanto a ascensão dos clubs como o boom fashion por aqui. Fora isso, a coluna que ela começou a fazer em 1992, a Noite Ilustrada, ajudou a introduzir no jornalismo do Brasil uma pegada de texto e foto menos sisudos, utilizando os termos e assuntos familiares somente aos insiders da balada: "carão", "bas fond", "modelão", "atendimento", "uó", "montadx", "fazer", "tombar", "almôndegas", etc. Tudo isso fazia com que o leitor médio do jornal tivesse um vislumbre dessa cena que era, em grande medida, uma vanguarda estética. Ela foi a primeira pessoa a escrever a palavra "clubber" num veículo de comunicação nacional.

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Erika deixou a Folha em 2005 e atualmente é publisher e diretora de redação da revista L'Officiel. De lá pra cá, também atuou como diretora de redação da Revista Key e editora de moda do Portal FFW. Para abrirmos com chave de ouro histórica a carreira do THUMP, achamos que seria não só legal, mas também justo, trocar uma ideia com a Erika sobre sua vasta e rica experiência dentro do mundo da música eletrônica paulistana.

Apesar de ela estar na correria insana do São Paulo Fashion Week, conseguimos trocar uma ideia com ela por e-mail. Se liga no babado e, no pé da página, saca alguns recortes fotográficos publicados no Babado Forte que representam fortemente o geist que a Érika, "péssima repórter mas boa editora", captou tão bem.

THUMP: Qual é a importância de clubs como o Nation, Massivo, Sra. Krawitz e Hell's na formação daquilo que se convencionou chamar de "cena" aqui em São Paulo? Em sua visão, os clubs formaram a cena ou na verdade serviram apenas de abrigo para uma expressão que já era viva na galera?
Erika Palomino: O Massivo e o Sra. Krawitz eram o início dos anos 1990. Um momento em que éramos muito pequenos, em número de pessoas, mas que nos sentíamos muito representativos do que acontecia na cidade, em termos de vida noturna. Os dois clubes eram especificamente uma evolução do Nation, na Rua Augusta, tanto em termos de personagens quanto em termos musicais, de comportamento e de repertório, ainda que um fosse uma espécie de evolução do outro. Eles eram, incluindo agora o Hell's, de fato a tal falada cena, e também a menção de sua própria expressão. Seus frequentadores, promoters, hosts, eram a cena. Não apenas levantavam o astral, ERAM o astral, CONSTRUÍAM o astral. Seu núcleo fazia acontecer e respingava em seus círculos periféricos, no bom sentido. E assim a coisa ia, com seus frequentadores. Sem eles, vale dizer, nada acontecia. Num ciclo autofágico, como em qualquer célula, isso se dá de forma orgânica, e natural. Muita gente legal se conheceu no circuito, de fato, mas muita gente passou a frequentar porque era modinha. Mas o povo da modinha logo vazou.

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Na época do Hell's, eu era menor de idade e não podia entrar na balada. Mas, de fora, a gente escutava várias lendas de que era uma festa com clima pesado. Isso é um estereótipo?
O Hell's abrigou diversas lendas, esta é uma delas. Mas o clima não era pesado, não. Acho que esse "estereótipo" inicial se deu por causa da máquina de fumaça sempre ligada e por conta do ar condicionado, muitas vezes desligado pelos frequentadores. Além disso, nos dois primeiros anos, talvez três, os chamados clãs eram um pouco mais fechados aos outsiders, só isso.

É curioso observar que muitos personagens do boom da cena clubber acabaram virando também pessoas destacadas em diferentes áreas do mercado da moda. É certo dizer que a década de 1990 foi o período em que tanto a noite como a moda se firmaram por aqui?
De fato, muitas pessoas que vemos hoje estabelecidas na moda emergiram daquele momento. Alexandre Herchcovitch é seu maior expoente.

Você levou mais ou menos três anos para produzir o livro, que saiu em 1999 e cuja cobertura começa em 1990. A ideia de fazê-lo surgiu ao mesmo tempo em que tudo era vivenciado? Há alguns personagens ou situações/histórias específicas que te impulsionaram a querer documentar todo aquele contexto?
É uma inverdade dizer que a ideia surgiu simultaneamente aos fatos enquanto vivenciados. A origem do livro veio mesmo em finais dos anos 1990, quando eu já tinha outros interesses e a coluna atingira outros patamares, até mesmo em termos de vocabulário. Escorpianamente ciclotímica, eu queria deixar registradas algumas das coisas que eu havia escrito sobre aqueles movimentos que, sem significado histórico, sob algum prisma, adquiririam algum. Pensei inicialmente em somente juntar as notas. Depois venci minha inercial preguiça e decidi tentar contar alguma história, pensando que talvez depois os próprios fatos pudessem contar as deles. O livro Babado Forte, ainda que relutantemente não seja autobiográfico, em suas passagens sobre o Nation, o Krawitz, o Massivo e o Hell's, sobretudo, eu sabia que seriam muito verdadeiras e que teriam muito recall com as pessoas.

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Das mais de cem entrevistas que você fez para o livro, quais você apontaria como as mais inusitadas ou curiosas?
Sou péssima repórter mas boa editora. Citaria o obituário de Andreia de Maio, como se chama em jornalismo, um dos textos mais importantes que já escrevi na vida e que me faz repensar em minha trajetória como jornalista. No livro, são emocionantes todos os depoimentos das drags, minhas passagens sobre as detenções como mera frequentadora no Hell's Club, os relatos das primeiras passeatas das Paradas Gays e do Skol Beats.

As Drag Queens ocupam papel de destaque em sua documentação. Você acha que a cena clubber deve muito à participação delas na noite dos anos 1990? Quais as figuras mais marcantes desse período, em sua opinião?
Sempre me identifiquei com as drags e com a cena gay. Todas as bichas que aparecem no Babado Forte são heroínas, na minha opinião, e se for para citar, Veronika, que morreu espancada, no interior de São Paulo. Uma cena que continua acontecendo, na Avenida Paulista, onde moro, ou ao redor do nosso Brasilzão. Nem tenho o que falar, choro por pensar nisso. Porém, para levar para o lado mais glamoroso da cena, Marcelle, a diva, Léia Bastos, Talia Bombinha, Sylvetty Montilla, genial… Tantas meninas incríveis…

A coluna Noite Ilustrada foi novidadeira para o jornalismo em papel, já que, além de tratar de um tema relativamente novo, trazia linguagem e conceito, não só pelos textos, mas pela pegada do layout, incomuns para um jornalão. Como é olhar em retrospecto e recordar disso tudo?
Não sou saudosista. De verdade. Pedi demissão de um emprego depois de 17 anos, para deixar boas lembranças e sair no alto. Prefiro que meus leitores sintam saudades. Acho que cumpri meu papel e poderia ter feito mais. A gente sempre pode ter feito mais. Fiz tudo por intuição e por amor.

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Quais foram as festas mais lendárias desse período, em sua opinião? O sucesso delas tinha a ver com a vibe da galera ou mais com a proposta temática/estética musical que traziam?
Vibe, sempre. Vou citar de coração:

- A Festa da Piscina, no Krawitz. Todos levavam choque nos corrimões, mas ninguém se importava. Todo mundo de roupa de banho.

- Dois anos do Hell's. Melhor que o Primeiro Aniversário. Prêmio para Mau Mau, o melhor DJ de todos os tempos, de todos os tempos.

- A Festa do Milharal, Krawitz. Glaucia Mais Mais jogando milho sobre a pista de dança de Mauro Borges.

- A Festa de Bebete, Massivo. Fusca rosa estacionado à frente do clube.

- House of Palomino, Arte/Cidade do Trem. Primeira festa aberta pra cinco mil pessoas da cidade. DJ Marky tocando no trem; minha maior festa; Veronika sob o queijo no laser; art + moda + club culture.

A chegada do techno às pistas pode ser considerada um divisor de águas na cultura clubber? Rolou uma absorção rápida do pessoal ou era algo mais ligado a uma cultura de gueto?
Não foi fácil nem rápido. Os early-adopters usavam até t-shirts: eu entendo a nova linguagem. Mau Mau e Pil disseminavam o ritmo e sua linguagem, as meninas mais bonitas dançavam as músicas sem vocais, houve uma grande ruptura; o Hell's era o grande templo; o ecstasy seu credo. Foi assim. Dançamos e sobrevivemos. Somos amigos até hoje. Somos a Velha Guarda. Os meninos da periferia nos provaram que música não tem bolso. Que bom.

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O que você acha que rolou de pior e de melhor no período em que as raves e megarraves começaram a ser firmar?
Dos clubes fomos desfrutar o outdoor, sentir o vento na cara, até descobrir as grandes corporações, como os partidos políticos. Os clubbers dos anos 1990 são tão ingênuos como jovens apolíticos que não pensavam em nada, a não ser na diversão hedonista, não havia nada além do culto à música, ao DJ, aos hinos criados nas pistas de dança. As megarraves caíram quando os dancers perceberam que dava muito trabalho se deslocar para se divertir. Cadê o táxi? A vida, e a diversão, devem ser mais fáceis, prega essa geração. Certo ou errado? Não sei. De outra forma, ligamos o Netflix.