O que é ser policial feminina?

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O que é ser policial feminina?

A VICE falou com duas policiais, uma da PM e outra da Civil, sobre a profissão.

A VICE falou com duas policiais, uma cabo da Polícia Militar (PM), com 17 anos de estrada na corporação, e uma investigadora da Polícia Civil (PC), com 23, ambas da Grande São Paulo, sobre a profissão. Os depoimentos de ambas estão aqui, boa leitura.

Cabo da PM

Foto: Guilherme Santana/ VICE

"Foi e é uma luta. Como a maioria sabe, a Polícia Militar é uma instituição tradicional, machista, não é? O quadro feminino da polícia existe há 60 anos. É algo "muito" novo dentro da realidade da PM.

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E por ser uma instituição predominantemente masculina, é muito difícil (ser mulher). Porque, a princípio, quando as policiais entram (para a corporação) é só para trabalhar no serviço assistencial. Não saía na viatura (para fazer rondas ostensivas).

Nessa época em que as mulheres entraram para a PM, o quadro feminino não se misturava com o masculino. No ano 2000, os quadros masculino e feminino da PM se unificaram. E a partir daí, nós mulheres passamos a trabalhar na rua também. Começamos também a sentir algumas dificuldades para trabalhar.

Normalmente os homens acham que nós mulheres não trabalhamos tão bem quanto eles. Existe o preconceito, além é claro o fator psicológico que rola na rua. A própria população antigamente não via mulheres policiais abordando as pessoas na rua. As pessoas não tinham este contato com PMs mulheres. O serviço das policiais militares, antigamente, era basicamente assistencial mesmo, não é?

Quando entrei na PM, eu fazia policiamento fixo nas escolas. Não era para atender ocorrência nem nada semelhante ao que os policiais masculinos fazem. Eu só contribuía para dar a sensação de segurança, era só policiamento escolar. Ou seja, o tratamento entre homens e mulheres (para atribuição de funções) era diferenciado.

Daí quando unificou, acredito que tenha sido um choque tanto para eles como foi para a gente. Por exemplo, antes tinha o quartel feminino e o masculino. Depois que unificou, modificou a realidade de convivência. A partir daí, começaram a surgir dificuldades. De 2000 até hoje, muitos policiais não aceitam trabalhar com policial feminina. Eles acham que a gente não vai dar conta. Acham que em uma situação de risco, se tiver tiroteio, a gente não vai ter uma pronta resposta, reagir 'como deve'.

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E percebo isso porque alguns dos policiais masculinos falam. A maioria deste tipo de situação, eu ouço de praças. (Praças são os policiais militares que atuam ostensivamente, os caras que ficam na rua. Vão de soldados até sargentos. A hierarquia dos oficiais começa a partir dos tenentes e "sobe" até o cargo de coronel).

Muitos falam abertamente: 'com policial feminina, eu não quero trabalhar'. Já com outros, percebemos nas atitudes.

Foto: Felipe Larozza/ VICE

Por exemplo, (o policial masculino) deixa de abordar uma pessoa, porque está acompanhado de uma policial feminina. Daí ele fala pro chefe que "queima" mesmo, é um termo que usamos, fazer algumas abordagens estando acompanhado por uma policial. Daí eles falam: 'sabe chefe, se eu estivesse com um homem, a situação poderia ter sido diferente. Mas como estava com uma mulher, preferi não tomar determinadas atitudes'.

Alguns nos tratam com inferioridade. No conceito deles, pra gente ser igual, precisamos estar infinitamente melhor do que eles pra chegar ao nível deles. E não é verdade, não é o que deveria ser. Claro que cada pessoa tem um perfil. Há policiais que gostam de trabalhar no administrativo, há policiais que gostam de estar na rua.

A princípio, nos 16 anos em que as mulheres estão na PM, era pra gente ir para rua. Daí estagiamos e, por fim, fomos nos encaixando onde cada uma queria (administrativo ou rondas na rua).

E o machismo é mais evidente na rua. Não são todos, mas creio que a maioria dos policiais é machista. Eu já vivi isso. O policial mudou a escala e falou abertamente que não queria trabalhar com uma policial feminina. A princípio, ao ouvir isso, não gostei, mas, depois, pensei: 'se não quer trabalhar comigo, não faço questão também'.

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Mas também tem policial que prefere trabalhar com policial feminina. Porque eles falam que a gente é mais criteriosa para não fazer 'coisa errada'. De não tomar algumas atitudes agressivas, como dar tapa na orelha.

E também no sentido de que, hoje em dia, tudo é muito técnico, como preencher cartão de patrulhamento, pra onde a viatura de ronda precisa seguir, é um esquema que a própria Cia. da PM monta, baseada nos índices criminais. É seguido o Cartão de Prioridade de Patrulhamento (CPP).

Foto: Guilherme Santana/ VICE

Muitos policiais masculinos preferem trabalhar com mulheres, porque sabem que fazemos certinho essa parte de acompanhamento técnico das rondas. Ao contrário de muitos policiais masculinos que querem que se dane isso tudo. As mulheres costumam agir pensando em não prejudicar a equipe.

Outra coisa, por ser de quadros diferentes, não posso dizer como é a relação entre oficiais masculinos e femininos. Mas pelo pouco que vejo, o masculino respeita o feminino mais por uma questão de hierarquia, de disciplina. Já entre os praças, o machismo acontece independentemente da patente. Há soldados masculinos que não respeitam cabos femininas.

Outra coisa. Eu também já sofri assédio, de um sargento. Ele queria sair comigo e usava o fato de ser superior a mim (na hierarquia da PM) pra tentar sair comigo e eu não quis. Daí, ele ficava me perseguindo no serviço, sabe? Ficava procurando erros que eu poderia ter cometido no serviço pra me comunicar, sabe? Sempre que era para perguntar alguma coisa, era comigo. Eu sentia que era por conta do outro lado (de se negar a sair com o superior). Era como se fosse uma perseguição, porque eu não quis sair com a pessoa.

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Por fim eu pedi transferência, mas não por conta disso. Daí perdi o contato com ele, graças a Deus.

Essa foi a situação mais nítida que vivenciei, mas sempre acontecem brincadeiras com 'fundo de verdade'. Mas daí levo na brincadeira e o assunto morre aí.

Algumas policiais femininas acabam cedendo aos assédios por interesse próprio. Vi casos de mulheres que tiveram benefício na escala de trabalho por causa disso.

Por exemplo, existe o Registro Estatístico da PM que controla o ingresso de novos policiais na corporação. É um número que todo PM tem e que vai definir a sua ascensão hierárquica. Quem chega antes deveria ser promovido primeiro. Mas a partir do que estamos falando, algumas policiais que chegaram depois se tornam superiores antes do que policiais femininas mais antigas. Já vi outros casos de policiais femininas que tinham algum tipo de benefício porque cederam a algum homem que tinha uma graduação maior.

Me orgulho de ser policial militar, mesmo trabalhando em uma instituição em que o machismo é a maior desvantagem."

Investigadora plantonista da Polícia Civil

Foto: Lucas Dantas

"A mulher policial é bem guerreira. A maioria tem uma jornada dupla. E como o trabalho na Polícia Civil é burocrático, ajuda a mulher a se destacar. Somos mais práticas que os homens para mexer com papel e lidar com as pessoas. A mulher policial tem mais paciência, mais habilidade (para lidar com o público).

Percebo na delegacia que os homens não gostam de fazer os trabalhos considerados mais simples, como atender a um telefone e, aliás, às vezes, são bem mais grosseiros. Eles não se identificam, ou (quando o fazem) falam o nome de outras pessoas para se identificar. Isso causa aborrecimento, porque na verdade tudo em um trabalho, do simples ao complexo, precisa ser bem feito.

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Uma coisa que imagino que desmotive isso seja a questão do salário(um policial civil, em início de carreira, segundo as convocatórias de concursos públicos, conta com salário inicial de R$ 3,3 mil).Além disso, outra coisa que desmotiva é a aplicação do Código Penal. É muito triste você fazer um flagrante, uma correria, você prende a pessoa e, daqui a pouco, em alguns dias, ela está livre de novo. Daí você vê que os ladrões estão soltos e o cidadão de bem está preso, dentro de casa.

Voltando ao fato de ser mulher na polícia, há casos em que o acompanhamento de uma ocorrência, feita por uma mulher, faz com que vítimas fiquem mais tranquilas. Daí falam, 'nossa, a impressão é a de que policiais sempre são grossos, mas com você foi diferente, fui bem atendido aqui'. Isso porque as mulheres, geralmente, são mais gentis. Mas tem umas que são grossas também.

Foto: Lucas Dantas

Eu, pessoalmente, fico feliz em surpreender as pessoas com um tratamento que deveria ser feito por todos os policiais, não é? Já ouvi de pessoas que foram atendidas por policiais que nem deixaram elas falarem. Mas, em meu caso, estou sempre atenta no trabalho. Creio que, por isso, não tenha sofrido nenhum tipo sério de assédio. Eu já tive, assim, dificuldades com colegas homens que não queriam fazer o serviço deles, que seria o de ajudar e colaborar com um cidadão.

A polícia é machista, mas isso é um reflexo da sociedade que também pensa assim. Alguns indiciados (pessoas presas em flagrante) precisam ser interrogados. Daí você mostra sua presença feminina e eles olham pra você e falam: 'se até agora eu não falei, você acha que vou falar pra você (que é mulher)?'. Tem uns que dão risada, chamam a gente de vaca.

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Mas, mesmo assim, na maioria das vezes os suspeitos acabam respondendo, pois como mulher converso com eles, falo de outras coisas, descubro nomes de parentes em conversas sobre temas fora da ocorrência e, de repente, consigo a informação que ele nem percebeu que me passou 'sem querer'. Este é o fator de ser mulher de falar pro cara, se você não me fala (diretamente), eu descubro (indiretamente).

Daí, depois disso, chego com o nome do criminoso e os colegas perguntam como é que consegui o que eles não conseguiram? Os policiais homens ficam perguntando 'qual é o seu nome, qual é o seu nome' e acabou. Daí a mulher conversa e descobre, com paciência.

Foto: Lucas Dantas

Ser policial nunca foi meu sonho, mas com 25 anos eu trabalhava como secretária e um amigo me despertou a vontade de eu ser, por causa da minha observação das coisas, sabe? Daí ele me falou que polícia não era só tiro, arma, essas coisas. Falou que tinha bastante inteligência. Ele percebeu que eu usava bastante estratégia para organizar meu trabalho como secretária. Daí ele me convidou pra prestar concurso e eu gostei.

Ser policial é a única profissão em que você dá a vida pra quem critica você, mas eu não trocaria por nenhuma outra, independentemente dos problemas. Mas o perfil do policial brasileiro precisa mudar. O que precisa melhorar é isso, ter mais educação com as pessoas e não ter preguiça. Poucos são assim, mas é o suficiente para manchar o trabalho de quem leva a coisa a sério.

Até uma grosseria no atendimento ao público deveria ser punida, se começasse por aí eu acredito que não iriam fazer o que é feito pior ainda".

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