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Feminisme

O submundo ilegal das bailarinas do Irã

Conheça as professoras e alunas que realizam aulas secretas e silenciosas de balé no país que considera a dança um pecado, mas faz vista grossa se o suborno for bom.
Foto principal por Amanda Large via Stocksy

Essa matéria foi originalmente publicada no Broadly.

Conheci Ada* numa festa no topo de um prédio em Amsterdã. Estávamos em volta da mesa de petiscos e, relutantes em deixar nosso posto privilegiado perto das batatas fritas e com vista para turistas bêbados caindo no canal Prinsengracht, começamos a trocar ideia. Ada, uma web designer do Irã, falou sobre enganar a polícia da moralidade de Teerã quando adolescente, uma vez correndo para uma loja na esperança de que eles passassem — notando depois que eles tinham entrado atrás dela.

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"Eles costumavam verificar nosso esmalte para ver se não era muito brilhante ou sedutor", ela riu. "Cada policial tem uma ideia diferente do que pode excitar os homens e era difícil saber como eles iam reagir. Mas eu sabia que eles odiavam roxo e corri para a loja. O dono da loja me viu e abriu a porta dos fundos, então fugi pelo beco atrás da loja enquanto ele dizia para os policiais que não tinha me visto."

"Parece uma coisa saída da resistência francesa."

"Era resistência mesmo! Usávamos luvas para esconder as unhas pintadas e truques para se safar usando o máximo de maquiagem possível. É isso que o governo faz com a gente. Eles nos fazem pensar que pintar as unhas é uma coisa muito rebelde de se fazer. Eles fazem você se importar com essas pequenas coisas, aí você não tem energia para lutar pelo o que é realmente importante."

Seis meses depois da nossa conversa, Ada me enviou um e-mail de Teerã. Ela tinha ido a sua primeira aula de balé em anos e estava eufórica. Ela me disse que tinha procurado o "tipo de anúncio certo" no jornal local, acompanhado fóruns da internet, ligado para números misteriosos, contando com amigos para ter uma referência de caráter e, finalmente, ganhando acesso às aulas secretas.

Dançar é ilegal no Irã. Antes da Revolução Iraniana de 1979, a cena das artes fervia no país, especialmente programas de dança que combinavam elementos tradicionais com disciplinas ocidentais como o balé. Depois que o governo do xá foi derrubado, dançar foi considerado pecado. A Companhia Iraniana de Balé foi dissolvida em 1979, logo depois que todos os dançarinos estrangeiros fugiram do país.

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Para os colegas iranianos sobraram três escolhas: desistir do trabalho de uma vida inteira e achar outra forma de pagar o aluguel; fugir do Irã e reviver a companhia em outro lugar (Les Ballets Persans opera atualmente em Estocolmo), ou ficar no Irã e — através de uma combinação de subterfúgios, subornos e dificuldades — continuar dançando.

Sapatilhas numa aula secreta de balé. Foto cortesia de Ada.

Ada tinha 20 anos quando fez sua primeira aula de balé; agora ela tem 28. "Não gosto de me arriscar e nunca fui a festas ilegais na faculdade", ela diz, "mas aulas de dança pareciam valer o risco". Não é só a dança que é proibida no Irã; qualquer música que faça o corpo se mover espontaneamente é considerada pecaminosa. "É liberado desde que não te dê prazer", explicou Ada. "Se uma dança ou movimento te dá prazer, isso é pecado."

Vinda de uma cidade inglesa obcecada por crianças de três anos rodopiando de tutu rosa ao som de Lago do Cisnes, é difícil para mim visualizar balé como algo arriscado ou ilícito. Enquanto eu reclamava para minha mãe que queria sapatilhas vermelhas, não rosas, Ada tinha que manter suas aulas de dança em segredo até mesmo para os pais. Seus pais provavelmente a proibiriam de ir — a polícia costuma fazer batidas nessas aulas, especialmente se os professores não tiverem pago um bom suborno, e se Ada for pega, isso poderia levar a uma sentença de prisão e expulsão da faculdade.

"Faço sapatos de dança. Eles não podem proibir a fabricação de sapatos."

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Naquela época, as aulas aconteciam no porão de um hospital abandonado, em salas comerciais ou eram conduzidas discretamente na casa dos professores. Geralmente os professores contavam as batidas para os dançarinos, em vez de arriscar tocar música e alertar os vizinhos.

A antiga professora de dança de Ada, Azar*, refletiu sobre a ameaça constante da intervenção policial. "Sempre há a possibilidade da polícia chegar e nos prender", ela disse. "Sempre digo aos meus alunos que não posso garantir a segurança deles. Mas tento ser muito cuidadosa. Só aceito alunos que foram indicados por outros alunos. Não faço propaganda, como alguns professores que entregam seu cartão de visita nas ruas."

A divulgação das aulas é um equilíbrio delicado: pouca propaganda leva a aulas vazias, muita propaganda pode atrair o tipo errado de atenção. A professora Yassi*, lembra como sua antiga mentora fazia isso. "Ela sempre tinha muito cuidado, mas várias vezes recebeu telefonemas de pessoas do governo, de escritórios sob controle direto de Ali Khamenei [o Líder Supremo do Irã], a convidando para realizar dança folclórica iraniana no exterior, em algum evento internacional específico ou embaixadas do Irã em outros países", ela diz. "Eles ofereciam uma boa remuneração, mas ela não aceitava." A mentora de Yassi acabou saindo do Irã para ensinar no exterior e Yassi ficou com as turmas dela, se certificando de não aceitar convites polpudos do regime para dançar em público.

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A Revolução de 1979 acabou com a carreira de muitos dançarinos, mas também criou oportunidades incomuns para pessoas como Nassrin*, uma jovem dançarina que — quase por acaso — se tornou uma das únicas fornecedoras de sapatilhas de Teerã. Antes da Revolução, dançarinos profissionais e amadores podia comprar suas sapatilhas de vários lugares, escolhendo entre modelos básicos e baratos e sapatilhas de alta qualidade. Trinta e cinco anos depois, os fabricantes de sapatilha de Teerã se mudaram, morreram ou desistiram. Nassrin anuncia seu trabalho através do Instagram e é bastante filosófica sobre os riscos: "Faço sapatos de dança. Eles não podem proibir a fabricação de sapatos".

"Coloco fotos de sapatos no meu Instagram e isso tem um público bem específico, a maioria das pessoas não sabe o que esses calçados são. Quando alguns dos meus amigos viram isso, eles disseram que não sabiam que eram sapatos para dançar. Eles não reconheceram."

"O governo ainda diz que dançar é pecado, que você não deve dançar, a menos que pague suborno, aí você pode, mas em segredo…"

A atitude de Nassrin é um desenvolvimento recente na cena de dança em Teerã. Quando Ada começou a frequentar as aulas, as pessoas tinham muito mais medo de serem presas. Agora, segundo ela, um ritmo familiar se estabeleceu com a polícia. "O governo ainda diz que dançar é pecado, que você não deve dançar, a menos que pague suborno, aí você pode, mas em segredo… Porque é pecado…"

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As bailarinas continuam mantendo as aulas em segredo, os professores continuam contando a batida em salas silenciosas e os fabricantes de sapatilhas continuam poucos. Mas oportunidades de dançar em público estão aumentando, apesar de ainda ser ilegal que mulheres dancem na frente de homens — os eventos mais recentes são exclusivos para mulheres.

Yassi explica que as coisas mudaram com a eleição do presidente Hassan Rouhani em 2013. "Há muito mais chances de se apresentar, mas eles continuam pedindo muito dinheiro para isso. Cada apresentação custa cerca de 200 milhões de rials (mais de 20 mil reais no câmbio atual), o que é muito dinheiro."

Um acordo informal foi alcançado depois de décadas de empurra-empurra entre fundamentalistas islâmicos e a relutância do público iraniano em caracterizar dança como pecado: pague e você pode dançar. Quando retornou recentemente para Teerã, Ada me lembrou que o progresso continua dolorosamente lento.

"O novo esquema de pagar para dançar parece um bom desenvolvimento para os dançarinos iranianos, mas o regime ainda se beneficia por não deixar os limites claros entre o que é ilegal e o que é legal", ela disse. "Isso dificulta desafiá-los e a maioria das pessoas vivem ainda mais limitadas tentando ficar fora de perigo. Ambiguidade e medo são os jeitos mais fáceis de controlar as pessoas."

Há algo inerentemente absurdo em ver pecado numa sala cheia de meninas de sete anos praticando La Bayadère. Mas até que o governo iraniano reconheça isso, Ada e suas colegas de dança vão continuar a ver cada apresentação em público como um triunfo, na grande batalha para manter o balé vivo no Irã.

*Não são seus nomes verdadeiros.

Tradução: Marina Schnoor

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