FYI.

This story is over 5 years old.

Outros

O Último Bom Policial Norte-americano Tem Sangue nas Mãos

Charles Hoffacker é um policial que se juntou ao eternamente conturbado departamento de polícia de Nova Orleans, em 2004, porque queria fazer uma diferença positiva. Ele também é pintor conceitual.

Fotos e obras cortesia de Charles Hoffacker. 

Charles Hoffacker é um policial que se juntou ao eternamente conturbado departamento de polícia de Nova Orleans, em 2004, porque queria fazer uma diferença positiva. Ele também é pintor conceitual. Muitos de seus colegas o consideram um fresco – mesmo que os civis locais que conhecem o detetive de homicídios de 33 anos achem que o resto da polícia da cidade podia ser mais como ele.

Publicidade

Sua obra mais famosa, “The Ghost of Telly Hankton”, representa o famoso barão das drogas e assassino usando 14 mil cartuchos de balas calibre .40. Ele compra os cartazes de papelão dos mendigos nas ruas e pinta os retratos deles. Suas obras mais tradicionais a óleo e tinta acrílica retratam coisas como colares de Mardi Gras pendurados numa AK-47.

Mas, agora, o detetive Hoffacker está sendo acusado de deixar seu lado artístico interferir em seu profissionalismo. Numa noite particularmente violenta de março, Hoffacker visitou 19 cenas sangrentas de tiroteio. De acordo com a história de Naomi Martin para o NOLA.com, quando a cena de um assassinato estava prestes a ser lavada, “Hoffacker estava procurando fragmentos de bala no sangue coagulado da vítima, que tinha formado uma poça na rua. Uma fonte disse que Hoffacker estava limpando o sangue de suas mãos na calçada, e então pareceu começar a escrever a palavra 'Socorro'. Um policial próximo repreendeu Hoffacker, e ele parou”.

“Ter compaixão é uma qualidade nobre num ser humano normal, mas, para um detetive de homicídios, isso pode ser prejudicial”, Eric Hassler, da Associação de Polícia de Nova Orleans, explicou a Martin. “Você só consegue aguentar um tanto de sangue e um tanto violência, e aquele foi um final de semana particularmente perturbador em Nova Orleans. Particularmente para o Charlie.”

Hoffacker foi transferido para uma posição burocrática enquanto espera o resultado da investigação do seu caso – o que deu a ele mais tempo de trabalhar em suas pinturas. Falei com ele sobre como seu trabalho influencia sua arte, sua luta para ser um bom policial numa cidade famosa por policiais ruins e como foi passar pela recente onda de ódio à polícia inspirada por Ferguson.

Publicidade

Oi, Charles! Você sente que ninguém te entende quando está no trabalho?
Sim. É muito frustrante. Chego para trabalhar no departamento e sinto que todo mundo pensa: “Lá vai o cara estranho”. Mas acho que os outros é que são estranhos. Então não, não sinto que realmente me encaixo no trabalho. Eles fazem piada sobre fazer arte. Eles têm personalidades muito Tipo A. Tipo, esses caras eram os atletas da escola. Mas também não me encaixo no mundo da arte por causa do meu trabalho.

Os artistas não te aceitam melhor?
Não, aceitam bem menos, acho. Há um grande sentimento antipolícia. Literalmente perdi amigos que chegaram e disseram: “Você escolheu esse caminho, e não eu não quero ter nada a ver com isso”.

Você não conhece nenhum artista conservador?
Sim, claro. Mas poucos são artistas conceituais. Esses caras geralmente pintam paisagens, tipo um barco no rio. E estamos no sul, e o sul vai se levantar de novo! Mas na arte conceitual você precisa pensar fora da caixa.

Então que parte de você é atraída pelo trabalho na polícia?
Ajudar as pessoas, cara! Na minha primeira noite como policial, a primeira coisa que eu fiz foi achar um bando de mendigos e dar um dinheiro pra eles. Temos um problema com gente que fica bêbada demais no French Quarter, onde eu trabalhava no começo, e você precisa ir lá e acordar esses caras; e se eles estiverem muito bêbados para o próprio bem, você tem que levá-los para passar a noite na delegacia. E se está fazendo muito frio, sempre pergunto se alguém precisa de uma carona pro abrigo ou algum dinheiro.

Publicidade

Essa empatia foi desaparecendo com o tempo?
Ah, sim, fiquei cansado disso tudo uma época. Fui de democrata liberal para republicano conservador, tipo, “Você tem que trabalhar duro” e “Obedeça o Estado”. Mas agora sou mais liberal que nunca, mais mente aberta. Não sei o porquê.

Quantos outros policiais são como você?
Alguns estão mais nessa direção de ajudar. Algumas pessoas com quem trabalho são extremamente amigáveis. Tenho um amigo no departamento que vai a todas as minhas exposições e sempre faz questão de colocar a mão no meu ombro e dizer “Eu te apoio”.

O NODP tem tido problemas para recrutar policiais e supostamente estaria sangrando funcionários. É por isso que você ainda não foi demitido?
Na verdade, não acho que seja difícil ser demitido. Acho que o departamento não vai hesitar em limpar a casa. Se alguém fizer alguma merda, eles não vão manter essa pessoa por perto. Eles estão tentando reconstruir isso do jeito certo. Mas é complicado, há muitas alegações todo dia. Você para alguém e depois a pessoa diz: “Fui maltratado”. Pode não ser verdade, as pessoas só estão putas porque foram presas – e isso pode fazer a polícia retirar a acusação contra elas. Então é algo muito comum.

Você esteve trabalhando durante os problemas em Ferguson?
Fui transferido. Agora, fico no escritório da Homicídios, nem posso carregar uma arma. Não posso usar nada que diga NOPD. Não tenho distintivo, rádio, algemas – tiraram tudo de mim.

Publicidade

Mas Ferguson teve um efeito em você como policial?
Definitivamente me fez repensar a carreira. Estou muito nervoso com isso. Isso torna nosso trabalho ainda mais difícil. Sempre me considerei um cara legal. Não gosto do sentimento de prender pessoas. É horrível tirar a liberdade de alguém – mesmo quando a pessoa merece.

Mas você sente que entende por que essas pessoas fizeram tudo isso?
Nunca vou saber como é ser um jovem negro nos EUA, mas, pelo jeito que ouço as pessoas falando da polícia, eu diria que, de certa maneira, é algo próximo de ser um policial branco. Eu entro num café de uniforme e é como se eu tivesse lepra. Não é a mesma coisa – você não pode tirar sua pele –, mas é o mesmo olhar de nojo. O que eu fiz para merecer isso? Eu levaria um tiro por você de bom grado. Isso me faz querer abraçar minha carreira artística 100%.

O ódio se intensificou perceptivelmente nos últimos tempos?
Acho que não em Nova Orleans. Temos essa atitude laissez-faire sobre tudo – estou falando como cidadão agora. Parece que as pessoas não guardam o ódio. Bebês são baleados e mortos aqui em Nova Orleans – é a pior coisa de se ver. Isso fica nos jornais por um dia, os Saints jogam e todo mundo esquece. Mas se um bebê é baleado em Chicago ou Nova York, isso vira notícia nacional. Se eu me demitir [da NOPD], nunca mais vou voltar. Já vi muita merda, cara.

Qual foi a pior coisa que você já viu?
Uma autópsia num bebê de sete meses? Isso não sai da sua cabeça. Outros policiais não deixam isso atrapalhar seu trabalho. Você nunca pode chorar numa cena de crime. Quando você tem que bater na porta de alguém e dizer “Estou aqui para investigar o assassinato do seu filho”. Ou quando você não tem nenhuma resposta, é difícil. Você pensa: “Merda, sou uma pessoa horrível!”. Como não consegui resolver isso? Tenho que lidar com muita autoaversão. Tomo remédios para a depressão. Nunca me sinto bem comigo mesmo, exceto quando faço minha arte. Mas não posso simplesmente fazer arte sobre qualquer coisa – como o retrato de alguém –, isso não funciona para mim.

Publicidade

Sobre o que você vai pintar se não estiver mais no departamento de polícia?
Eu gostaria de trabalhar numa escala internacional. Há conflitos em todo lugar. Mas acho que sempre serei um detetive de homicídios de certa maneira. Mas tenho que dizer que, desde que fui transferido três meses atrás, meu nível de stress diminuiu muito. Minha arte está melhor. Minha vida social está melhor. É muito bom sair disso tudo por um tempo. E vou me aposentar dentro de um ano e meio, isso já está decidido. Vou ser investido. Isso significa que você pode se aposentar com 40% da sua pensão depois de 12 anos de serviço. Você pode conseguir o status de aposentado.

Quanto dinheiro você ganha como detetive de homicídios?
Cerca de US$ 35 mil por ano.

Jesus! É muito pouco para ter que assistir a autópsias de crianças, não? É menos do que um professor ganha. Quanto você ganhava quando começou dez anos atrás?
Acho que uns US$ 28 ou 30 mil. Professores de escola pública lidam com coisas piores do que a gente às vezes. Mas esse é o problema: muitos policiais estão saindo, porque o trabalho paga muito pouco. Em Austin, você começa com US$ 72 mil e, depois de cinco anos, vai para US$90 mil.

Há uma aura controversa em torno da sua arte sobre o crime. Seria porque ela tem uma conotação racial?
Minha arte reflete o que vejo no trabalho. Eu não vou trabalhar e vejo idosas brancas mortas nas ruas: são sempre homens jovens negros. Algumas pessoas veem racismo onde não tem. Não pinto ninguém sob uma luz ruim. Por exemplo, minha obra “Virgin Mary” é sobre uma mulher negra. Ela transporta drogas, mas não tem nada que mostre isso; ela mora num apartamento ruim, dirige um carro ruim, usa roupas baratas. Então descobrimos que ela está economizando para pagar a faculdade do filho. Nunca a prendemos.

Obrigado, Charles!

Veja mais da arte do Charles no site HYPH3N.com. Siga o Michael Pratrick Welch no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor