A sujeira e a negligência do governo definem Surat, uma cidade inchada na Índia, e as duas marcas registradas atingiram níveis extremos há 20 monções, quando um surto de peste pulmonar atingiu a metrópole, localizada no noroeste do estado de Guzerate. Bueiros regurgitaram enchentes, colidindo com as margens do rio Tapti, que disseca a cidade, lar de milhões de indianos, antes de desaguar no mar Arábico. As enchentes entulharam detritos nos bairros, acalentando ratos que hospedavam pulgas, que abrigavam bactérias e que geraram uma epidemia.
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Mais de 50 residentes de Surat morreram por conta da peste pulmonar que seguiu, e cerca de 500 mil foram embora da cidade durante dois dias caóticos. Médicos e farmacêuticos abandonaram o local e levaram consigo provisões de antibióticos, deixando pacientes indefesos para trás.Autoridades alegaram que a peste começou depois que chuvas de monções inundaram partes pobres da cidade, onde lixo, desperdício e gado morto jazem putrefatos na água, conclusão sustentada por relatos médicos que sugeriram que a peste apareceu em um dos piores bairros da cidade. Em um país em que a falta de saneamento básico é um problema onipresente, Surat tornou-se famosa por ser um lugar excepcionalmente imundo – tão sujo que até peste consegue florescer ali.Desde então, em quase duas décadas, autoridades locais e estaduais trabalham duro para limpar a cidade e sua imagem. Melhorias de infraestrutura ajudaram a reduzir enchentes. Pelo bem ou pelo mal, demoliram favelas. Varrem as ruas regularmente, e a sujeira coletada é coberta e recolhida por caminhões.Para o alívio de todos, os esforços parecem ter livrado a cidade da praga. Agora, outra doença bacteriana está se estabelecendo – uma enfermidade que também se alimenta de sujeira e é transmitida pelos ratos que nela festejam. Os sintomas estão evoluindo; algumas cepas se parecem com as cepas da antiga peste pulmonar, e o número de mortes está crescendo. E, apesar das melhorias de infraestrutura não beneficiarem as favelas da cidade, as autoridades não colocam a série de mortes na conta de uma nova epidemia, mas sim no sistema imunológico das vítimas, enfraquecido pela pobreza.
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Pior ainda, os sintomas – que podem incluir hemorragias generalizadas e falha fugaz dos órgãos – não estão atingindo apenas os habitantes de Guzerate. Especialistas acreditam que são resultado de uma leptospirose, que está matando pessoas ao longo da costa indiana, assim como numa longa lista de países do Sul e do Sudeste Asiático, e em ilhas do Pacífico. Surtos já tomaram conta de partes tropicais da América Central e da América do Sul, incluindo Equador, Peru e Nicarágua.A leptospirose é causada por uma bactéria do gênero Leptospira, que não costuma se propagar diretamente, de pessoa a pessoa. É uma doença zoonótica, isto é, provém de animais. Na maioria dos casos, espalha-se por meio de ratos, embora também possa infectar gado, cães, macacos e outros bichos. No entanto, diferente da peste, a doença não se transmite via pulgas que saboreiam ratos. Em vez disso, espalha-se por meio da urina dos roedores.A "lepto", como é informalmente chamada, às vezes é difícil de ser diagnosticada, com sintomas camuflados sobre um pano de fundo de doenças tropicais mais comuns e menos fatais, que também devastam países em desenvolvimento. E é difícil de estudar e identificar as bactérias em laboratórios subfinanciados.Por conta disso, não dá para saber quantas infecções ou mortes elas causam ao redor do mundo a cada ano. O que sabemos, de fato, é que é um problema enorme. Segundo a OMS, durante epidemias, o número de pessoas atingidas numa comunidade pode chegar a uma a cada mil, e pacientes sem tratamento padecem rapidamente em uma morte dolorosa. O problema piora depois de enchentes e chuvas de monções.
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"Quando há inundações, os ratos aparecem por toda parte, e a leptospirose não mata os ratos", disse Gyanendra Gongal, cientista da área de epidemiologia e vigilância de doenças da Organização Mundial de Saúde. "Eles fazem xixi em todo lugar. Quando há enchentes, as correntes carregam toda essa urina e os detritos. Então, quando alguém bebe ou nada na água, pega leptospirose. É um verdadeiro problema depois das inundações."As melhorias tão alardeadas em Surat, promovidas nos últimos 20 anos, são dignas de exageros – o governo afirma que a cidade, agora, está entre as mais limpas da Índia. A reconstrução pós-epidêmica de Surat, "é inspiradora, é como se a cidade fosse abençoada pela peste", o jornal India Today bradou quase uma década atrás.Mas qualquer declaração de limpeza suprema é falsa. Em visitas recentes a Surat, ficou claro que tais declarações são feitas por aqueles que não olham além das ruas arrumadinhas que alinham as partes mais ricas da cidade, e por aqueles que não prestam atenção no destino do lixo da cidade após ser removido do horizonte dos cidadãos ricos e influentes.
Caminhões de lixo despejam cargas em pilhas abandonadas, próximas a zonas úmidas e povoados, na periferia da cidade, onde são queimadas. Ratos circulam desenfreadamente. Nuvens de plástico queimado rasuram os olhos e pulmões dos moradores do povoado. A cidade não tem programas de reciclagem – uma usina de reciclagem fora de funcionamento continua enferrujada ao lado das pilhas de lixo em chamas. Os líderes de Surat se gabam para mim, porque, após a peste, policiais foram instruídos a multar quem joga lixo onde não deve, mas eu mesmo vi um policial jogar lixo na rua.
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Como em muitas outras partes da Índia e da Ásia, a água da cidade e as usinas de tratamento permanecem inadequadas. É lamentável. O esgoto de favelas e bairros pobres é despejado em lagos que fluem até o rio, contornando o tratamento de água. A usina de tratamento descarrega o lodo parcialmente tratado a poucos quilômetros do trecho do rio em que a corrente é sugada de volta para o abastecimento de água potável."A água potável está muito suja; às vezes, contém vermes", disse M. S. H. Sheikh, um trabalhador comunitário que reside em Surat. "Não há água de qualidade disponível. O saneamento não está em boas condições. Mas as pessoas não estão tomando medidas sérias contra o governo, pois o governo lhes oferece água barata."Quem pode pagar compra água engarrafada e filtros elétricos. Os pobres bebem direto das torneiras públicas. Fazendeiros e lavradores de baixa renda andam descalços sobre campos inundados, conduzindo bactérias à corrente sanguínea através de cortes e machucados.
No fim do ano passado, moradores de Kadarshah ni Naal, um bairro abarrotado de Surat, contam que seis pessoas morreram em uma semana, após uma enchente de monção, com água até a altura do peito. Os sintomas eram parecidos com aqueles de 1994, do surto da peste – vômito, febre e um pesadelo de horas rumo a uma morte agonizante, deixando algumas pessoas preocupadas com um possível retorno da peste. Testes de laboratório limitados, solicitados pelo governo, não foram capazes de identificar o agente patogênico responsável. A mídia reportou o caso com uma "doença misteriosa", pois as autoridades negaram que era leptospirose. Atestados de óbito descrevem os sintomas – febre hemorrágica – mas não a causa.
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Autoridades locais agora dizem que as vítimas morreram de enfermidades diversas, incluindo icterícia e febre tifoide. Sem contar os registros médicos e atestados de óbito obtidos pelo Motherboard, em que a causa de morte permanece desconhecida. Durante uma entrevista, algumas autoridades criticaram as vítimas por nadarem em enchentes, apesar de não haver outro caminho para entrar ou sair de casa. Dizem que o sistema imunológico das vítimas estava fraco porque eram pobres.Uma das vítimas fatais foi Wahed Khan, de 20 anos de idade, descrito por familiares como um homem saudável antes de ser repentinamente atingido por dores, febre e sintomas gástricos sanguinolentos. Khan foi levado por uma ambulância para uma unidade de tratamento intensivo, onde morreu no dia 8 de outubro. "Ele nadou na enchente – a água estava na altura do peito", contou o irmão, Jahir Khan, falando em gujarati quando o visitei no começo do ano. "Depois do aumento do nível da enchente, não houve limpeza por parte do governo."Pedi a Gongal, que trabalha com autoridades nacionais e locais para reduzir mortes relacionadas à leptospirose, para revisar quatro registros de óbito. Baseado nos sintomas, e no fato de que as mortes ocorreram após enchentes, Gongal estava convencido de que o surto foi apenas mais um capítulo da terrível história da leptospirose.
"Não dá para previnir ou controlar a doença, mas é possível minimizar o risco", disse Gongal. "É por causa das obras do homem que a doença aparece. No passado, a leptospirose era uma doença muito rara."
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A OMS está trabalhando com a Índia e outros países em desenvolvimento para ajudar oficiais de saúde a identificar e responder à leptospirose, assim como atualizar ou construir laboratórios para facilitar o diagnóstico da doença. Alguns governos distribuem antibióticos profiláticos, remédios que moradores em situação de risco, fazendeiros em especial, podem tomar durante as temporadas de chuva, como precaução. O problema dessa abordagem é que ela pode ajudar a leptospirose a desenvolver uma resistência ao remédio."A manifestação clínica da leptospirose está mudando na Índia", disse Gongal. "Há uma síndrome hemorrágica, depois os pacientes podem apresentar icterícia e febre. Perdem o apetite. Pode haver vermelhidão nos olhos. O corpo fica amarelado."O problema parece estar piorando, inclusive em Surat. Dados coletados por uma faculdade pública de medicina da cidade mostram que havia cerca de 400 casos suspeitos em Surat em 2005, e aproximadamente 270 no ano seguinte. Em 2010, havia 625 casos suspeitos, e mais que 850 em 2011.Melhorias de diagnóstico podem ser parcialmente responsáveis por essa tendência, mas problemas de saneamento persistem. E mesmo assim, o tratamento apropriado é uma ilusão para pessoas desfavorecidas, atingidas pela doença. Se os médicos flagram a doença a tempo, receitam doses de antibióticos aos pacientes. Se os órgãos falham – os rins e o fígado são alvos comuns –, uma diálise é a única opção, coisa que, para a pobreza do mundo, nem sempre é uma opção.Tradução: Stephanie Fernandes