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Edição de Confinamento

Os Estupros Fantasma da Bolívia

Durante algum tempo, os residentes da colônia de Manitoba acharam que demônios estavam estuprando as mulheres da cidade

Todas as fotos por Noah Friedman-Rudovsky. Noah Friedman-Rudovsky também contribuiu com informações para este artigo.

Durante algum tempo, os residentes da colônia de Manitoba acharam que demônios estavam estuprando as mulheres da cidade. Não havia outra explicação. Como explicar o fato de uma mulher acordar com manchas de sangue e sêmen nos lençóis e nenhuma lembrança da noite anterior? Como explicar o caso de outra residente, que foi dormir vestida e acordou nua, coberta de impressões digitais sujas por todo o corpo? Como explicar que, depois de ter um pesadelo que consistia num homem a possuindo à força num campo, outra das colonas acordara na manhã seguinte com grama em seus cabelos?

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O mistério de Sara Guenter era a corda. Às vezes, ela acordava em sua cama com pequenos pedaços de corda atados firmemente a seus pulsos e quadris, a pele embaixo deles azulada e dolorida. No começo do ano, visitei Sara em sua casa na colônia Manitoba, na Bolívia. Era uma construção simples de concreto pintado para se assemelhar a tijolos. Os menonitas são similares aos amish em sua rejeição à modernidade e tecnologia, e a colônia Manitoba, como todas as comunidade menonitas ultraconservadoras, é uma tentativa coletiva de se afastar o máximo possível do mundo dos não crentes. Uma leve brisa de soja e sorgo vinha dos campos próximos enquanto Sara me contava como, além das estranhas cordas, nas manhãs depois dos estupros ela também acordava com lençóis manchados, dores de cabeça arrasadoras e uma letargia paralisante.

Suas duas filhas, de 17 e 18 anos, estavam agachadas na parede atrás dela e me encaravam com seus ferozes olhares azuis. O demônio tinha penetrado na casa, disse Sara. Cinco anos atrás, suas filhas também começaram a acordar com lençóis sujos e reclamar de dores “lá embaixo”.

A família tentou trancar as portas. Em algumas noites, Sara fez de tudo para ficar acordada. Em outras ocasiões, um trabalhador boliviano da cidade vizinha de Santa Cruz chegou a montar guarda durante a noite. Mas, inevitavelmente, quando sua casa de um andar — afastada e isolada da estrada de terra — não estava sendo vigiada, os estupros aconteciam novamente (Manitoba não é ligada à rede de energia elétrica, então, a comunidade fica submersa na escuridão completa durante a noite). “Aconteceu tantas vezes que eu perdi a conta”, Sara me disse em seu baixo-alemão nativo, a única língua que ela fala, como a maioria das mulheres da comunidade.

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Crianças menonitas frequentam a escola da colônia Manitoba, Bolívia.

No início, a família não tinha a menor ideia de que não era a única a ser atacada, então, eles não disseram nada a ninguém. Mas Sara resolveu contar tudo para suas irmãs. Quando os rumores se espalharam “ninguém acreditou nela”, disse Peter Fehr, o vizinho de Sara na época dos incidentes. “Achamos que ela estava inventando isso para esconder um caso.” Os pedidos de ajuda da família ao conselho de pastores da igreja, o grupo de homens que governa a colônia de 2.500 membros, foram infrutíferos — mesmo com as histórias se multiplicando. Por toda a comunidade, as mulheres começaram a acordar com os mesmo sinais matinais: pijamas rasgados, sangue e sêmen nas camas, dores de cabeça e estupor. Algumas mulheres lembravam breves momentos de terror: o instante em que acordavam com um homem ou alguns homens em cima delas, sem ter forças para gritar ou lutar. Depois, tudo caia na escuridão.

Lá, alguns chamaram isso de “imaginação selvagem feminina”. Outros disseram que era uma praga de Deus. “Só sabíamos que alguma coisa estranha estava acontecendo durante a noite”, disse Abraham Wall Enns, o líder civil da colônia Manitoba na época. “Mas não sabíamos quem estava fazendo isso, então, como podíamos impedir?”

Ninguém sabia o que fazer, então ninguém fez nada. Depois de um tempo, Sara aceitou que aquelas noites de terror eram fatos horríveis que faziam parte de sua vida. Nas manhãs seguintes, a família se levantava, apesar das dores de cabeça, trocava os lençóis e seguia com seu dia a dia.

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Então, numa noite de junho de 2009, dois homens foram pegos tentando entrar numa casa da vizinhança. Os dois deduraram os amigos e, como um castelo de cartas, um grupo de nove homens de Manitoba, com idades entre 19 e 43 anos, finalmente confessaram que vinham estuprando as famílias da colônia desde 2005. Para incapacitar as vítimas e qualquer possível testemunha, os homens usavam um spray criado por um veterinário das redondezas, adaptado de um remédio usado para anestesiar vacas. De acordo com as confissões iniciais (que depois eles tentariam negar), os estupradores admitiram que — às vezes em grupo, às vezes sozinhos — se escondiam do lado de fora das janelas dos quartos à noite, borrifavam a substância através dos vãos das janelas para drogar famílias inteiras, e depois se esgueiravam para dentro.

Mas foi só durante o julgamento deles, que aconteceu quase dois anos mais tarde, em 2011, que o verdadeiro alcance de seus crimes veio à tona. As transcrições são um roteiro de filme de terror: as vítimas tinham idades entre 3 e 65 anos (a mais nova tinha um hímen rompido, supostamente por penetração com o dedo). As meninas e mulheres eram casadas, solteiras, residentes, visitantes e doentes mentais. Apesar de isso nunca ter sido discutido e não fazer parte do caso jurídico, residentes me contaram em particular que homens e meninos também foram estuprados.

Em agosto de 2011, o veterinário que fornecia o spray anestésico foi sentenciado a 12 anos de prisão e os estupradores receberam penas de 25 anos (cinco anos a menos do que a penalidade máxima boliviana). Oficialmente, foram 130 vítimas — pelo menos uma pessoa em mais da metade das casas da colônia Manitoba. Mas nem todos os estupros foram incluídos no caso legal e acredita-se que o número de vítimas seja muito, muito maior.

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Crianças menonitas jogam futebol na colônia Manitoba, Bolívia.

Após os crimes, as mulheres não receberam nenhum tipo de terapia ou aconselhamento. Houve poucas tentativas de investigar a fundo e ir além das confissões. E, nos anos seguintes à prisão dos homens, nunca houve uma discussão na colônia sobre os eventos. Em vez disso, uma lei do silêncio se estabeleceu depois dos vereditos.

“Isso ficou no passado”, disse-me Wall, o líder civil, durante minha viagem mais recente para lá. “Preferimos esquecer do que ter isso para sempre em nossas mentes.” Fora a interação com um ou outro jornalista ocasional, ninguém mais fala sobre o assunto.

No entanto, durante os nove meses de investigação, incluindo uma estada de 11 dias em Manitoba, descobri que os crimes estão longe de acabar. Além do persistente trauma psicológico, há evidências de abusos sexuais generalizados e contínuos, incluindo incesto. Há também evidências de que — apesar de os criminosos iniciais estarem na cadeia — os estupros com o uso de drogas continuam.

Parece que os demônios continuam por ali.

Oito homens menonitas cumprem pena pelo estupro de mais de 130 mulheres na colônia Manitoba. Um dos supostos estupradores fugiu e hoje vive no Paraguai.

À primeira vista, a vida dos residentes de Manitoba parece uma existência idílica invejável para new agers: as famílias vivem da terra; painéis solares iluminam as casas e moinhos alimentam poços de água potável. Quando um membro de uma família morre, os outros residentes se dividem em turnos cozinhando para os enlutados. As famílias mais ricas subsidiam a manutenção da escola e os salários dos professores. Os dias começam com pão caseiro, marmelada e leite ainda morno direto do estábulo. Ao anoitecer, as crianças brincam de pega-pega, enquanto os pais se sentam em cadeiras de balanço e assistem ao pôr do sol.

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Mas nem todos os menonitas vivem em mundos protegidos. São 1,7 milhões deles em 83 países diferentes. De comunidade para comunidade, a relação deles com o mundo moderno pode variar consideravelmente. Alguns evitam totalmente a modernidade; outros vivem em mundo insulares, mas permitem carros, televisores, celulares e vestimentas variadas. Muitos são virtualmente indistinguíveis do resto da sociedade.

A religião se formou num desdobramento da Reforma Protestante na década de 1520 na Europa, liderado por um padre católico chamado Menno Simons. Os líderes da igreja não apoiavam as visões de Simons quanto ao batismo de adultos, pacifismo e sua crença de que só se chegava ao paraíso levando uma vida simples. Ameaçados pela nova doutrina, as igrejas Protestante e Católica começaram a perseguir seus seguidores pela Europa Central e Ocidental. A maioria dos menonitas — como os seguidores de Simons ficariam conhecidos — se recusava a lutar por causa de seu voto de não violência, então, fugiu para a Rússia, onde recebeu assentamentos para viver sem ser perturbada pelo resto da sociedade.

No entanto, por volta de 1870, a perseguição chegou a Rússia, então, o grupo seguinte procurou refúgio no Canadá, sendo bem recebido pelo governo, que precisava de colonos pioneiros. Na chegada, muitos menonitas começaram a adotar o modo de vestir da época, a língua e outros aspectos da vida contemporânea. Um pequeno grupo, no entanto, continuou a acreditar que só poderia entrar no paraíso se vivesse da mesma maneira que seus antepassados, e ficou horrorizado ao ver seus colegas seguidores serem tão facilmente seduzidos pelo novo mundo. Esse grupo, conhecido como “Colonos Antigos”, abandonou o Canadá na década de 1920, em parte porque o governo exigia que as escolas dessem aulas em inglês e sugeriu a padronização do currículo para todo o país (até hoje, os colonos antigos ministram suas aulas em baixo-alemão, totalmente baseadas na Bíblia. A educação formal termina aos 13 anos para os meninos e aos 12 para as meninas).

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Os colonos antigos migraram para o Paraguai e o México, onde havia amplas terras cultiváveis, pouca tecnologia e, mais importante, a promessa dos respectivos governos de deixá-los viver de seu próprio modo. Mas nos anos 1960, quando o México introduziu uma reforma educacional que limitava a autonomia dos menonitas, outra migração teve início. Colônias Antigas brotaram nas partes mais remotas das Américas, com uma grande concentração na Bolívia e em Belize.

Meninos e meninas menonitas passeiam na colônia Manitoba, Bolívia.

Hoje, são cerca de 350 mil colonos antigos no mundo e a Bolívia é o lar de mais de 60 mil deles. A colônia Manitoba, que se formou em 1991, parece uma relíquia do mundo antigo no meio do mundo atual: uma ilha branca de olhos azuis de ordem, no meio do mar de caos dos países mais empobrecidos e indígenas da América do Sul. A colônia prospera economicamente graças à ética de trabalho de seus membros, grandes campos férteis e fabricação coletiva de leite.

Manitoba emergiu como um verdadeiro paraíso na Terra para os seguidores da Colônia Antiga. Outras colônias na Bolívia afrouxaram seus códigos, mas Manitoba rejeita fervorosamente carros e seus tratores têm rodas de aço, já que possuir qualquer veículo mecanizado com pneus de borracha é visto como pecado capital, pois permite contato fácil com o mundo externo. Os homens são proibidos de deixar crescer pelos faciais e usam sempre macacões jeans, exceto na igreja, onde usam calça social. Meninas e mulheres usam os cabelos trançados de maneira intrincada e idêntica, e a pressão é grande para achar um vestido com o comprimento das mangas variando apenas alguns milímetros do projeto predeterminado. Para os residentes de Manitoba, essas não são regras arbitrárias: elas formam o único caminho para a salvação e os colonos acreditam que suas almas dependem da obediência a elas.

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Como os antigos colonos desejavam, Manitoba foi deixada entregue à sua própria sorte. Exceto em caso de homicídio, o governo boliviano não exige que os líderes da comunidade reportem qualquer outro crime. A polícia não tem qualquer jurisdição dentro da comunidade, nem autoridades estaduais ou municipais. Os colonos mantêm a lei e a ordem por meio de um governo próprio de nove pastores e um bispo dirigente, todos eleitos para mandatos vitalícios. Fora a obrigatoriedade de garantir que todos os residentes tenham documento de identidade do estado, Manitoba funciona quase como uma nação soberana.

Abraham Wall Enns (centro) com sua família. Abraham era o líder civil de Manitoba na época dos estupros.

Cobri o julgamento do caso dos estupros de Manitoba em 2011 para a Time. Assombrada desde minha primeira visita à colônia, eu queria saber como as vítimas estavam vivendo agora. Também fiquei imaginando se esses crimes horríveis eram uma anomalia ou se expunham feridas mais profundas na comunidade. Seria possível que o mundo insular das Colônias Antigas, em vez de promover a coexistência pacífica desvinculada das armadilhas da sociedade moderna, estaria fomentando sua própria morte? Eu precisava voltar e descobrir.

Cheguei tarde, numa noite enluarada de uma sexta-feira do mês de janeiro. Fui recebida com sorrisos amistosos por Abraham e Margarita Wall Enns, que me esperavam na varanda de sua pequena casa, separada da estrada por um caminho cercado de árvores bem cuidadas. Embora notoriamente reclusos, os antigos colonos são gentis com estrangeiros que não ameacem seu modo de vida, e foi assim que cheguei até ali. Conheci Abraham, o sardento líder de 1,80m de altura da comunidade, em 2011, e ele disse que eu podia ficar com ele e sua família se algum dia voltasse a Manitoba. Agora, eu estava ali, esperando ver a vida na Colônia Antiga de perto enquanto entrevistava os residentes sobre os estupros e o que aconteceu depois.

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Dentro da casa impecável, Margarita me mostrou seu quarto ao lado de outros dois onde seus nove filhos já estavam dormindo. “Instalamos isso agora, por segurança”, ela disse, segurando a porta de ferro de três polegadas no final da escada. Alguns roubos tinham acontecido recentemente (atribuídos aos bolivianos). “Durma bem”, ela me disse, antes de aparafusar a porta que separava a mim e sua família do resto do mundo.

Na manhã seguinte, levantei antes do amanhecer com o resto da casa. Em qualquer dia da semana, as duas filhas mais velhas — Liz, 22 anos, e Gertrude, 18 — passam a maior parte do tempo lavando a louça e as roupas, preparando as refeições, ordenhando as vacas e mantendo a casa impecavelmente limpa. Dei o meu melhor e tentei não estragar tudo enquanto ajudava com as tarefas. Lá pela hora do almoço, eu já estava exausta.

Trabalhos domésticos estão fora dos domínios de Abraham e seu seis filhos homens; é possível que eles passem a vida inteira sem nunca limpar seus próprios pratos. Eles trabalham no campo, mas como estávamos no período da entressafra, os mais velhos montavam equipamentos de trator que o pai tinha importado da China, enquanto os mais jovens subiam pelos postes do celeiro e brincavam com periquitos de estimação. Abraham permite que os meninos chutem uma bola de futebol pela propriedade e pratiquem espanhol lendo o jornal de Santa Cruz entregue ocasionalmente; no entanto, qualquer outra atividade organizada, seja esporte competitivo, dança ou música, podem comprometer sua salvação eterna e são estritamente proibidos.

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Os Walls me contaram que, felizmente, ninguém de sua família foi vítima dos estupradores, mas como todo mundo na comunidade, eles ficaram sabendo tudo sobre o caso. Um dia, Liz concordou em me acompanhar nas entrevistas às vítimas de estupro da comunidade. Uma jovem curiosa e hábil, que aprendeu espanhol com a cozinheira boliviana da família, ela ficou feliz em ter uma desculpa para sair de casa e socializar.

Partimos numa pequena carroça puxada por um cavalo pelas estradas de terra. Durante o caminho, Liz me contou suas memórias sobre a época do escândalo. Até onde ela sabia, os estupradores nunca entraram em sua casa. Quando perguntei se ela tinha ficado com medo, ela disse que não. “Eu não acreditava”, ela me disse. “Então, só fiquei com medo depois que eles confessaram. Aí isso virou realidade.”

Quando perguntei a Liz se ela achava que os estupros podiam ter sido interrompidos antes, se essas mulheres tivessem sido levadas a sério, ela só franziu a testa. A colônia não deu aos estupradores a liberdade de atacar por quatro anos, em parte porque as pessoas culparam a “imaginação selvagem feminina”? Ela não respondeu, mas parecia perdida em pensamentos enquanto nos guiava pela estrada de terra.

Entramos por um pátio de pedrinhas numa casa grande e fui fazer a entrevista enquanto Liz esperava do lado de fora junto à carroça. Numa sala de estar escura, falei com Helena Martens, uma mulher de meia-idade e mãe de 11 filhos, e seu marido. Ela se sentou no sofá e deixou as cortinas da janela fechadas enquanto falávamos sobre o que aconteceu com ela há quase cinco anos.

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Em algum momento de 2008, Helena me contou, ela ouviu um chiado enquanto arrumava a cama. Ela sentiu um cheiro estranho também, mas depois que o marido se certificou de que o registro de gás da cozinha não estava vazando, eles foram dormir. Ela lembra vividamente de acordar no meio da noite com “um homem em cima de mim e outro no quarto, mas não consegui levantar meus braços para me defender”. Ela logo voltou a dormir profundamente. Na manhã seguinte, sua cabeça latejava e os lençóis estavam sujos.

Os estupradores a atacaram muitas vezes. Helena sofreu de várias complicações médicas durante esse período, inclusive uma operação relacionada ao útero (sexo e saúde reprodutiva são assuntos tão tabus para os menonitas conservadores que muitas mulheres nunca chegam a aprender os nomes corretos de suas partes do corpo, o que inibiu certas descrições do que acontecia durante os ataques e suas consequências). Uma manhã, ela acordou com tanta dor que “achei que ia morrer”, ela me disse.

Helena, como as outras vítimas em Manitoba, nunca teve a chance de falar com um terapeuta profissional, mesmo dizendo que iria se tivesse a oportunidade. “Por que elas precisam de aconselhamento se nem estavam acordadas quando tudo aconteceu?”, disse o bispo Johan Neurdorf, a maior autoridade de Manitoba, a um visitante em 2009, depois que os estupradores foram presos.

Outras vítimas que entrevistei — tanto as que acordaram durante os estupros como aquelas que não tinham nenhuma memória da noite — disseram que também gostariam de falar com um terapeuta sobre suas experiências, mas que isso também seria quase impossível, já que não há nenhum especialista na recuperação de vítimas de ataque sexual que fale baixo-alemão na Bolívia.

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Todas as mulheres com quem falei não sabiam que a comunidade menonita mundial, particularmente grupos mais progressistas do Canadá e Estados Unidos, se ofereceram para enviar conselheiros falantes de baixo-alemão para Manitoba. Claro, isso significa que elas não tinham a menor ideia que foram os homens da comunidade que rejeitaram essas ofertas. Depois de séculos de tensão com seus irmãos menos tradicionais, a liderança da Colônia Antiga bloqueia regularmente qualquer tentativa de contato direto entre seus membros e esses grupos. Eles viram a oferta de apoio psicológico como uma outra tentativa velada de encorajar o abandono do velho caminho.

Um líder da comunidade na colônia Manitoba.

É provável que a recusa da liderança tenha outros motivos, como não querer que o trauma emocional dessas mulheres agitasse as coisas ou chamasse muita atenção para a comunidade. Eu já sabia que o papel das mulheres na Colônia Antiga era obedecer e se submeter aos comandos de seus maridos. Um pastor local me disse que as meninas ficam um ano a menos na escola porque não precisam aprender matemática ou contabilidade, o que é ensinado durante o ano de educação adicional para os meninos. As mulheres também não podem ser ministras nem votar para elegê-los. Elas também não podem se representar legalmente, como o caso dos estupros deixou dolorosamente aparente. Os queixosos do julgamento foram cinco homens — um grupo selecionado de maridos ou pais das vítimas — e não as próprias mulheres.

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Mas ainda que estivesse preparada para aceitar os papéis em preto e branco dos gêneros em Manitoba, minha visita também revelou tons de cinza. Vi homens e mulheres compartilhando as tomadas de decisão nas casas. Nas reuniões de família estendidas nos domingos, as cozinhas ocupadas apenas pelas mulheres se enchiam de grandes personalidades e risadas altas, enquanto os homens se sentavam do lado de fora solenemente, discutindo a seca. Passei longas tardes com garotas confiantes como Liz e suas amigas, que, da mesma maneira que suas colegas no mundo todo, se encontram quando precisam falar sobre coisas irritantes que os pais fazem ou atualizar as novidades amorosas da semana anterior.

Tratando-se dos estupros, esses fortes laços femininos — e o espaço seguro fornecido por uma rotina tão segregada — gerou conforto. As vítimas disseram que contaram com o apoio de suas irmãs e primas, especialmente enquanto tentavam se ajustar de volta à vida normal depois do julgamento.

As menores de 18 anos nomeadas do processo foram levadas para fazer uma avaliação psicológica, como exigido pela lei boliviana, e os documentos do tribunal apontavam que cada uma delas mostrava sinais de estresse pós-traumático e que um longo aconselhamento era recomendado — mas nenhuma delas recebeu nenhuma forma de terapia desde a avaliação. Diferente das mulheres adultas, que ao menos acharam algum consolo em suas irmãs e primas, muitas das garotas mais jovens não tiveram sequer a chance de falar com alguém sobre suas experiências depois da avaliação exigida pelo governo.

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Em sua sala de estar, Helena me contou que sua filha também foi estuprada, mas que as duas nunca conversaram sobre isso, e que a garota, agora com 18 anos, não sabe que sua mãe também é uma sobrevivente de estupro. Nas Colônias Antigas, o estupro traz vergonha sobre as vítimas; as sobreviventes ficam marcadas. Por toda a comunidade, outros pais de vítimas mais jovens também me disseram que foi melhor deixar tudo em silêncio.

“Ela era muito jovem” para falar sobre isso, disse-me o pai de outra vítima, que tinha 11 quando foi estuprada. Ele e sua esposa nunca explicaram para a garota por que ela acordou com dor, uma certa manhã, sangrando tanto que teve que ser levada para o hospital. Ela passou por visitas médicas posteriores, com enfermeiras que não falavam sua língua e nunca soube que foi estuprada. “Foi melhor que ela não soubesse”, disse o pai.

Todas as vítimas que entrevistei disseram que os estupros passam por suas mentes praticamente todos os dias. Além de se abrir com amigas, elas têm lidado com a dor por meio da fé. Helena, por exemplo — apesar de seus braços fortemente cruzados e o balanço aflitivo do corpo que pareciam desmenti-la — me disse que encontrou a paz e insistiu: “Perdoei os homens que me estupraram”.

E não foi só ela. Ouvi a mesma coisa de vítimas, pais, irmãs e irmãos. Alguns até disseram que se os estupradores condenados tivessem admitido seus crimes — como fizeram inicialmente — e pedido o perdão de Deus, a colônia teria pedido ao juiz para retirar as sentenças.

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Fiquei perplexa. Como eles podiam aceitar unanimemente crimes tão flagrantes e premeditados?

Só quando falei com o pastor Juan Fehr, vestido como todos os pastores da comunidade, todo de preto e com botas pretas de cano alto, foi que entendi. “Deus escolheu Seu povo para provas de fogo”, ele disse. “Para chegar ao paraíso, você precisa perdoar aqueles que agiram mal com você.” O pastor disse que acreditava que a maioria das vítimas tinha perdoado por vontade própria. No entanto, se alguma das mulheres não quisesse perdoar, ele disse, ela receberia a vista do bispo Neurdorf, a mais alta autoridade de Manitoba, e “ele simplesmente explicaria que se ela não perdoasse, Deus não a perdoaria”.

Uma das vítimas mais jovens ouvida pela acusação tinha apenas 11 anos na época dos estupros. A maioria das vítimas não tiveram nenhum aconselhamento psicológico e, de acordo com especialistas, provavelmente sofrem de transtorno de estresse pós-traumático.

Os líderes de Manitoba também encorajaram os residentes a perdoar incestos — uma lição que Agnes Klasse aprendeu de forma dolorosa. Numa terça-feira abafada, a mãe de dois filhos me encontrou do lado de fora de sua casa de dois quartos, próxima a uma rodovia no leste da Bolívia, a aproximadamente 64 quilômetros de sua antiga casa em Manitoba. Agnes deixou a comunidade em 2009. Ela estava usando o cabelo preso num rabo de cavalo e suando num jeans e numa camiseta comuns.

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Eu não estava ali para falar sobre os estupros, mas, uma vez dentro de sua casa, o assunto surgiu inevitavelmente. “Certa manhã, acordei com dor de cabeça e havia sujeira na cama”, ela disse, se referindo a quando morava em Manitoba, como alguém se lembrando de um item esquecido de uma lista de compras. Ela nunca pensou muito naquela manhã desde então, e não foi incluída no processo, ela não viu razão para continuar depois que os criminosos foram presos.

Mas eu tinha ido até lá falar com Agnes sobre outra parte dolorosa de seu passado — o incesto — cujas origens não ficaram muito claras. “Tudo meio que se mistura”, ela disse sobre suas memórias mais antigas da infância, que incluem ser acariciada por muitos de seus oito irmãos mais velhos. “Não sei dizer quando [o incesto] começou.”

Uma entre 15 filhos, crescendo na Colônia Antiga de Riva Palacios (sua família se mudou para Manitoba quando ela tinha oito anos), Agnes disse que os abusos aconteciam no celeiro, nos campos ou nos quartos compartilhados com os irmãos. Ela não percebeu que aquilo era impróprio até completar 10 anos, quando levou uma surra severa depois que seu pai a encontrou sendo acariciada por um irmão. “Minha mãe nunca conseguiu me dizer que eu estava sendo injustiçada ou que aquilo não era minha culpa”, ela relembra.

Depois disso, o abuso continuou, mas Agnes tinha medo demais para pedir ajuda. Aos 13 anos, um de seus irmãos tentou estuprá-la e Agnes contou a mãe. Ela não apanhou dessa vez e, por um tempo, sua mãe fez o melhor que pode para manter os dois separados. Mas o irmão finalmente a encontrou sozinha e a estuprou.

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Os ataques dos irmãos se tornaram cada vez mais comuns, mas não havia para onde se voltar. Colônias Antigas não têm forças policiais. Os pastores lidam com irregularidades diretamente, mas, como os mais jovens não são tecnicamente membros da igreja até seu batismo (geralmente no começo dos 20 anos), o mau comportamento é tratado dentro de casa.

Procurar ajuda fora da colônia nunca passou pela cabeça de Agnes: desde seu primeiro dia na Terra, ela, como todas as crianças da Colônia Antiga, fora ensinada que o mundo exterior era dominado pelo mal. E mesmo se alguém consegue sair, não há como uma criança ou mulher contatar ou se comunicar com um mundo que não fala baixo-alemão.

“Aprendi a viver com aquilo”, disse Agnes pausadamente, desculpando-se pelas interrupções e pelas lágrimas. Era a primeira vez que ela contava toda sua história. Ela disse que o incesto parou quando outros garotos começaram a cortejá-la e ela arquivou isso em sua mente como uma coisa do passado.

Mas, então, ela se casou, mudou para sua própria casa em Manitoba e deu à luz duas meninas, mas os membros da família começaram a molestar as crianças durantes visitas. “Estava começando a acontecer com elas também”, ela disse, seus olhos seguindo as duas garotinhas loiras platinadas que passavam correndo em frente às janelas enquanto brincavam do lado de fora. Um dia, sua filha mais velha, que ainda não tinha completado 4 anos, disse a Agnes que o avô tinha pedido a ela para colocar suas mãos dentro da calça dele. Agnes disse que seu pai nunca molestou ela ou suas irmãs, mas que ele teria supostamente abusado das netas até que Agnes fugiu de Manitoba com as filhas (e supostamente ainda abusa de suas sobrinhas, que permanecem na colônia). Em outra ocasião, ela pegou o sobrinho acariciando sua filha mais nova. “Isso acontece o tempo todo”, ela disse. “Não só na minha família.”

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Na verdade, há muito tempo existe uma discussão abafada, porém, acalorada, na comunidade menonita internacional sobre se as Colônias Antigas têm um problema de incesto desenfreado. Alguns defendem os antigos colonos, dizendo que abuso sexual acontece em toda parte e que ocorrências assim em lugares como Manitoba só prova que qualquer sociedade, não importa o quão correta seja, é suscetível a problemas sociais.

Mas outros, como Erna Friessen, uma menonita canadense que me apresentou a Agnes, insiste: “O alcance da violência sexual dentro das Colônias Antigas é enorme”. Erna e seu marido ajudaram a fundar a Casa Mariposa, um abrigo para mulheres e garotas abusadas das Colônias Antigas. Localizada nas proximidades da cidade de Pailon, no coração do território das Colônias Antigas da Bolívia, eles têm um influxo contínuo de missionários falantes de baixo-alemão prontos para ajudar, mas o número de mulheres que conseguem chegar até a casa é pequeno. Além dos desafios em conscientizar as mulheres sobre esse espaço e convencê-las de que o melhor a fazer é procurar ajuda, Erna me disse que “vir para a Casa Mariposa frequentemente significa deixar para sempre suas famílias e o único mundo que elas conhecem”.

Erna admite que é impossível calcular o número exato devido à natureza insular dessas comunidades, mas que ela tem certeza de que as taxas de abuso sexual são maiores nas Colônias Antigas do que nos Estados Unidos, por exemplo, onde uma em cada quatro mulheres será abusada sexualmente antes dos 18 anos. Erna passou sua vida toda entre esses grupos — ela nasceu numa colônia menonita no Paraguai, foi criada no Canadá e passou os últimos oito anos na Bolívia. De todas as mulheres das Colônias Antigas que ela conheceu em todos esses anos “a maioria foi vítima de abuso”, segundo ela. Ela considera as colônias “um solo fértil para o abuso sexual”, em parte porque a maioria das mulheres das Colônias Antigas cresce acreditando que deve aceitar isso. “O primeiro passo é fazê-las sempre reconhecer que foram injustiçadas. Isso aconteceu com elas, aconteceu com as mães delas e aconteceu com suas avós, então, elas sempre ouviram que devem simplesmente lidar com isso.”

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Outros que trabalham com a questão do abuso nas Colônias Antigas também hesitam em apontar taxas de incidência, mas dizem que a maneira como o abuso acontece dentro das colônias torna isso um problema mais grave do que em outros lugares do mundo. “Essas garotas ou mulheres não têm uma saída”, diz Eve Isaak, clínica de saúde mental e conselheira de viciados e pessoas em luto que atende comunidades menonitas de Colônias Antigas no Canadá, Estados Unidos, Bolívia e México. “Em qualquer outra sociedade, crianças do primário sabem que podem, pelo menos em teoria, ir até a polícia, uma professora ou outra autoridade caso estejam sofrendo algum tipo de abuso. Mas a quem essas garotas podem recorrer?”

Embora não tenha acontecido de propósito, as igrejas da Colônia Antiga se tornaram o governo de fato. “A migração de antigos colonos pode ser entendida não só como um movimento para longe da sociedade, mas também em direção a países que permitam que eles vivam como escolheram”, Diz Helmut Isaak, marido de Eve, pastor e professor de história anabatista e de teologia no CEMTA, um seminário em Assunção, Paraguai. Ele explicou que antes dos antigos colonos migrarem para um novo país, eles mandam delegações para negociar os termos de autonomia com os governos locais, particularmente na área de aplicação de lei religiosa.

De fato, a série de estupros foi um dos únicos momentos nos quais a Colônia Antiga boliviana procurou por intervenção em uma questão interna. Os residentes de Manitoba me contaram que entregaram a gangue para os policiais em 2009 porque os maridos e pais das vítimas estavam tão enraivecidos que havia a possibilidade de os acusados serem linchados (um homem, que supostamente estava envolvido e foi pego numa colônia vizinha, foi realmente linchado e morreu depois devido aos ferimentos).

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Os líderes da Colônia Antiga com quem falei negaram que exista um problema de abuso sexual em suas comunidades e insistiram que esses incidentes são tratados internamente quando surgem. “[Incesto] quase nunca acontece aqui”, me disse o pastor Jacob Fehr enquanto conversávamos em sua varanda ao pôr do sol. Ele disse que em seus 19 anos como pastor, Manitoba teve apenas uma caso de estupro incestuoso (pai e filha). Outro pastor negou até que esse episódio tivesse acontecido.

“Eles perdoam muita coisa nojenta que acontece nas famílias o tempo todo”, disse Abraham Peters, pai de um dos estupradores mais jovens condenados, Abraham Peters Dyck, que está atualmente na Prisão Palmasola, nos arredores de Santa Cruz. “Irmãos com irmãs, pais com filhas.” Ele acredita que seu filho e os outros foram falsamente incriminados para encobrir o incesto generalizado em Manitoba. Abraham pai continua vivendo em Manitoba; ele pensou em sair imediatamente após a prisão do filho, por causa da hostilidade do resto da comunidade. Mas desenraizar sua família de 12 pessoas se mostrou muito difícil, então ele ficou. Ele disse que, com o passar dos anos e apesar de sua perspectiva sobre a prisão do filho, ele foi aceito novamente no rebanho da colônia.

Agnes acha que os dois crimes são dois lados da mesma moeda. “Os estupros, o abuso, tudo está interligado”, ela disse. “O que torna os estupros diferentes é que eles não vieram de dentro da família e por isso os pastores tomaram a ação que tomaram.”

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Claro, os líderes tentam corrigir o mau comportamento. Por exemplo, no caso do pai de Agnes: ele foi chamado em certo momento na presença dos líderes da igreja por causa das carícias às netas. Como manda o procedimento, ele ficou diante dos pastores e do bispo, que pediram que ele confessasse. Ele confessou e foi “excomungado”, ou temporariamente expulso da igreja por uma semana, depois foi oferecida a ele a chance de retornar, com base na promessa de que ele nunca mais faria isso novamente.

“Claro que tudo continuou depois disso”, disse Agnes sobre o pai. “Ele só aprendeu a esconder isso melhor.” Ela disse que não acreditava “em ninguém que, depois de apenas uma semana, diz que mudou sua vida”, antes de acrescentar “não tenho fé num sistema que permite isso”.

Criminosos mais jovens saem da situação ainda mais facilmente; de acordo com Agnes, o irmão que a estuprou admitiu seus pecados quando foi batizado e foi imediatamente expurgado aos olhos de Deus. Ele vive numa Colônia Antiga vizinha, Riva Palacios, com suas próprias filhas.

Uma vez que um perpetrador de abuso é excomungado e readmitido, a liderança da igreja assume que a questão está encerrada. Se o criminoso continua com o comportamento de forma flagrante e se recusar a se arrepender, ele é novamente excomungado e afastado permanentemente. Os líderes instruem o resto da colônia a isolar a família; o armazém vai se recusar a vender qualquer produto para a casa, as crianças serão expulsas da escola. A família não tem escolha a não ser partir. Isso, claro, também significa que as vítimas têm que ir embora com os agressores.

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Mas não foi o abuso que finalmente levou Agnes e sua família a abandonar Manitoba em 2009. Seu marido comprou uma moto e, depois disso, foi excomungado e sua família afastada. Quando o bebê do casal morreu afogado num cocho de vaca, os líderes da comunidade não permitiram seu marido fosse ao funeral do próprio filho. Foi aí que eles deixaram Manitoba para sempre. No final, dirigir uma moto foi uma afronta maior para a liderança da colônia do que qualquer coisa que Agnes, suas filhas, ou o resto das mulheres da comunidade sofreram.

Manter uma comunidade como Manitoba unida está cada vez mais difícil nos tempos moderno. Agnes e sua família não foram os únicos a sair. Na verdade, a cidade próxima de Santa Cruz é povoada por famílias menonitas que ficaram fartas do modo de vida das Colônias Antigas — e a situação pode estar perto de atingir um ponto crítico.

Johan Weiber, apoiado em sua picape, é o líder do grupo de menonitas dissidentes em Manitoba.

"Não queremos mais fazer parte disso”, um jovem pai chamado Johan Weiber me disse, enquanto eu visitava sua casa em Manitoba. Johan e sua família eram uma das 13 outras ainda vivendo na colônia depois de deixar oficialmente a igreja da Colônia Antiga. Eles vinham tentado sair há meses — até já tinham veículos —  mas os líderes da colônia se recusavam a compensá-los pela terra que estariam abandonando. Agora eles estavam decididos a construir sua própria igreja dissidente dentro de Manitoba.

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“Estamos [deixando a igreja da Colônia Antiga e começando nossa própria] porque temos lido a verdade”, Johan disse. Por “verdade”, ele queria dizer a Bíblia. “Eles nos dizem para não lermos a Bíblia porque se lermos vamos perceber coisas. Por exemplo, em parte alguma está escrito que o cabelo das mulheres tem que ser trançado daquele jeito”, ele disse, apoiando em sua picape enquanto sua filha de rabo de cavalo brincava no jardim.

Curiosa com as especificidades da instrução religiosa em Manitoba, num domingo, participei de um culto num dos prédios de tijolos indistinguíveis da colônia. Logo percebi que a cerimônia solene de 90 minutos não é uma prioridade. Chefes de família podem ir duas ou três vezes por mês, mas alguns vão até com menos frequência.

Para as crianças, o centro do currículo escolar é baseado em leituras selecionadas da Bíblia, mas fora uma oração silenciosa de 20 segundos antes de cada refeição, não há um tempo especificado ou exigido para orações e estudos da Bíblia no mundo adulto da Colônia Antiga.

“Muitos perderam o conhecimento bíblico”, disse Helmut Isaak, um historiador menonita. Ele explicou que, com o tempo, enquanto os menonitas paravam de ter que defender sua fé constantemente contra os perseguidores, preocupações mais práticas tiveram a preferência. “Para poderem sobreviver, eles precisavam passar o tempo trabalhando.”

Isso criou uma disparidade de poder crucial: um pequeno grupo de líderes da igreja se tornou o único interprete da Bíblia nas Colônias Antigas e, como a Bíblia é vista como a lei, os líderes usaram esse controle sobre as escrituras para incutir ordem e obediência.

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Os pastores negam: “Encorajamos todos os outros membros a saber o que está escrito no livro sagrado”, disse o pastor Jacob Fern numa noite. Mas os residentes admitiram discretamente que aulas de estudo bíblico são desencorajadas e que as Bíblias são escritas em alto-alemão, uma língua que muitos adultos mal conseguem lembrar depois de sua educação limitada e, além disso, às vezes as versões em baixo-alemão são proibidas. Em algumas Colônias Antigas, membros encaram a excomunhão por se aprofundar muito nas escrituras.

É por isso que Johan Weiber era uma presença tão ameaçadora: ele aterrorizou a liderança e a comunidade como um todo. Ele também lembrou a todos do passado conturbado das Colônias Antigas. “Foi exatamente isso o que aconteceu no México e é por isso que viemos [para a Bolívia]”, disse Peter Knelsen, um residente de Manitoba de 60 anos que chegou do México com os pais quando ainda era adolescente. Não era só o governo mexicano que ameaçava as Colônias Antigas com reformas, mas também houve um movimento evangélico interno que queria “mudar nosso modo de vida”, disse Peter, que explicou que os dissidentes de sua colônia no México também tentaram construir sua própria igreja.

Por mais de 40 anos, os antigos colonos bolivianos conseguiram escapar de fraturas internas como essa. Mas com Johan Weiber tentando construir sua própria igreja — e os dissidentes exigindo sua própria terra em Manitoba para plantar e construir uma escola independente — Peter e os outros falam em um “apocalipse” iminente. As tensões quase explodiram em junho, depois de minha visita, quando o grupo de Johan realmente começou a construir sua própria igreja. Logo depois da construção começar, mais de 100 homens de Manitoba foram até o local e a derrubaram, tijolo por tijolo. “Acho que vai ser muito difícil manter a colônia intacta”, Peter me disse.

Se essa fratura continuar a aumentar e a crise vier à tona, os colonos de Manitoba já sabem o que fazer. Séculos atrás, os menonitas originais da Europa tiveram duas escolhas ao enfrentar a perseguição: lutar ou fugir. Devido a seu voto de pacifismo, eles fugiram — e continuam fugindo desde então.

Os líderes de Manitoba esperam não ter que chegar a isso. Em parte porque a Bolívia é um dos últimos países que os deixam viver sob seus próprios termos. Por enquanto, o pastor Jacob Fehr disse estar orando. “Só queremos que [o grupo de Weber] deixe a colônia”, ele disse. “Só queremos ser deixados em paz."

Heinrich Knelsen Kalssen, um dos estupradores, é levado do tribunal pela polícia em Santa Cruz, Bolívia.

No meu último dia em Manitoba, tive um choque.

“Você sabe que continua acontecendo, certo?”, uma mulher me disse, enquanto bebíamos água gelada perto de sua casa. Não havia nenhum homem por perto. Achei que alguma coisa tinha se perdido na tradução, mas minha tradutora de baixo-alemão me garantiu que não. “Os estupros com o spray — eles continuam”, ela disse.

Eu a enchi de perguntas: isso tinha acontecido com ela? Ela sabia quem estava fazendo? Todo mundo sabia o que estava acontecendo?

Não, ela disse, eles não voltaram à sua casa, mas à de uma prima — recentemente. Ela disse ter seu palpite sobre quem era o responsável, mas não me deu nenhum nome. E ela acreditava que sim, a maioria das pessoas na colônia Manitoba sabia que a prisão dos estupradores originais não tinha colocado um fim nos crimes em série.

Como se eu estivesse num estranho túnel do tempo, depois de dezenas de entrevistas com pessoas me dizendo que tudo estava bem agora, eu não sabia se aquilo era apenas fofoca, rumores, mentiras ou — pior — a verdade. Passei o resto do dia tentando freneticamente conseguir uma confirmação. Visitei novamente muitas das famílias que tinha entrevistado antes e a maioria admitiu, um pouco envergonhada, que sim, tinham ouvido os rumores e achavam que provavelmente eram reais.

“Certamente, não é mais tão frequente”, disse, mais tarde naquele mesmo dia, um jovem cuja esposa foi estuprada na primeira série de incidentes antes de 2009. “[Os estupradores] estão sendo muito mais cuidadosos do que antes, mas ainda acontece.” Ele disse que também suspeitava de quem poderiam estar cometendo os crimes, mas não me deu mais nenhum detalhe.

Numa viagem subsequentes de Noah Friedman-Rudovsky, o fotógrafo desse artigo, cinco pessoas deixaram registrado — incluindo três colonos de Manitoba, um promotor de justiça e um jornalista local — que ouviram dizer que os estupros continuavam.

Aqueles com quem falei disseram que não tinham como impedir os supostos ataques. Ainda não há uma força de policiamento na área e nunca houve nenhum elemento proativo ou grupo de investigação que pudesse procurar pelos culpados pelos crimes. Todos na colônia são livres para acusar outra pessoa para os pastores, mas os crimes são abordados com o sistema da honra: se um perpetrador não está pronto para confessar seus pecados, a questão é se a vítima ou o acusador serão levados a sério… E as mulheres em Manitoba já sabem como isso termina.

A única defesa, segundo os residentes, é instalar fechaduras melhores, barras nas janelas ou grandes portas de ferro como aquela atrás da qual dormi durante minha visita. “Não podemos colocar iluminação nas ruas ou câmeras de segurança”, o marido de uma das vítimas me disse — as duas tecnologias não são permitidas. Para que isso pare, acredita-se que, como antes, é preciso pegar alguém em flagrante. “Então vamos ter que simplesmente esperar”, ele disse.

Naquele último dia, antes de deixar Manitoba, retornei para visitar Sara, a mulher que acordou com a corda ao redor dos pulsos quase cinco anos atrás. Ela disse que também tinha ouvido os rumores sobre os estupros continuarem e deu um suspiro sentido. Ela e sua família se mudaram para uma nova casa depois que a gangue foi presa em 2009. A casa antiga guardava muitos demônios. Ela disse que se sentia mal em saber que outras estavam vivendo seus horrores do passado, mas que não sabia o que podia ser feito. No final das contas, seu tempo na Terra, como o de todos os menonitas, é para ser de sofrimento mesmo. Antes que eu fosse embora, ela me ofereceu o que devia considerar palavras de consolo: “Talvez seja o plano de Deus”.

Nota do editor: Os nomes das vítimas de abuso e estupro foram mudados a pedido delas.

Para uma visão mais aprofundada sobre o escândalo na colônia Manitoba, assista ao nosso documentário: Os Estupros Fantasma na Bolívia, que entra no ar este mês aqui na VICE.com.

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