Pilotando pelos últimos autoramas de SP
Pista do autorama Speed Place. Foto por Hudson Rodrigues

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Pilotando pelos últimos autoramas de SP

Eles são poucos, mas muito loucos.

Toda quarta-feira à noite, o Julio Guerra Neto, de 57 anos, se reúne com alguns amigos, entre eles o Douglas e o Portuga, na garagem da sua casa, no bairro de Pirituba, em São Paulo. O ritual é de lei. Eles se encontram, pedem umas esfihas cheirosas e massudas e, enquanto conversam sobre amenidades, se preparam para uma das atividades que mais gostam de fazer: montar, manejar e acelerar carrinhos em enormes pistas de miniatura.

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A tradição se mantém há décadas. Douglas, que hoje já tem filho cursando a faculdade, era solteiro quando conheceu o Julio; este, por sua vez, viu os dois filhos do Portuga crescerem. As trajetórias dos três estão diretamente ligadas ao Octopus, um dos autoramas mais tradicionais da cidade paulistana. É lá que, com saudosismo e clubismo, assentam suas vidas corridas.

Os amigos das antigas reunidos no Octopus. Foto por Hudson Rodrigues

A rotina do trio resume este público ávido por competição e mini automóveis. Se você tem menos de 30 anos, é bem provável que pareça um hobby distante e meio maluco. Ainda assim, os aficionados pelo automodelismo, aqueles que aceleram seus carrinhos por lojas especializadas, são muitos. Em busca de entender o passado glorioso desse esporte, como este universo sobrevive e quem são esses aficcionados por velocidade, visitamos alguns dos picos mais conhecidos e tradicionais da modalidade na capital paulista.

Octopus. Foto por Hudson Rodrigues

"Quando eu compito, sinto como se estivesse pulando de paraquedas"

Competidores e voyeurs na mesma pista

É um sábado chuvoso quando chego com o fotógrafo Hudson Rodrigues para acompanhar uma etapa do campeonato brasileiro de slot car (nome original dado pra modalidade) na Parolu, na zona sul de São Paulo. Lá dentro, ninguém parece se importar muito com o frio desanimador. A euforia e correria dos competidores transforma o lugar num ambiente completamente aconchegante.

Foto por Hudson Rodrigues

Em dia de competição, existe toda uma logística montada e que demanda não só a habilidade em pilotar o brinquedo. Entre uma bateria e outra, cada competidor tem apenas três minutos para consertar qualquer problema com o carro. Assim que toca um alarme sinalizando que a corrida chegou ao fim, todos se agilizam para fazer os ajustes. Algumas equipes possuem até um preparador, o cara que exerce especificamente essa função. Quem não está na vez de pilotar faz a função de recolocar os carrinhos de volta para pista.

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Quando não estão na vez, os competidores viram os recolocadores. Foto por Hudson Rodrigues

Num canto, enquanto todos acompanham vidrados os movimentos que acontecem na pista, Lúcio Magno Junior, 47 anos, parece completamente imerso e compenetrado em sua maleta de ferramentas e peças automobilísticas. Ele percorreu cerca de 600 quilômetros só para participar do evento, que durou um fim de semana inteiro. "Eu saio lá de Uberlândia por duas coisas: primeiro para ver os amigos, e segundo para brincar. Ganhar ou perder não importa tanto", diz. Os laços firmados durante os vários anos como frequentador assíduo dos autoramas é comparado por Lúcio com o clubismo presente nas lojas maçônicas. "Você tem tanta amizade e às vezes precisa de um favor dum amigo lá de Brasília, aí você ligar pra ele e ele te serve", comenta.

Lúcio Magno Junior e seus troféus. Foto por Hudson Rodrigues

Amante de altas velocidades, o engenheiro mecânico Jairo Roberto Pinheiro Lima, 59 anos, iniciou sua história de paixão e dedicação pelos autoramas em 1971, quando ainda era moleque, e nunca mais parou. Ele também era um dos competidores presentes neste mesmo fim de semana. Vinha direto do Rio de Janeiro. "Eu acho que o cara tem que ter um hobby na vida", diz. "Esse é meu hobby principal há 45 anos. Fiz muitos amigos, já viajei, fui pra Europa pra correr. Minha esposa dá a maior força, ela sabe da importância." Ele, que também é fabricante de chassis para os carrinhos, acredita que a brincadeira não serve apenas como uma forma de entretenimento. É educacional. "Aqui é onde os mais jovens aprendem duas coisas importantes para a vida: pedir por favor e muito obrigado. Isso é fundamental pra formação de caráter de uma criança", pontua.

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O engenheiro Jairo Roberto Pinheiro Lima. Foto por Hudson Rodrigues

E o investimento não é baixo. O Lúcio, por exemplo, conta que gasta R$ 20 mil por ano em manutenção, competição etc. E esse valor, segundo ele, nem é tão alto comparado à quantia despendida por outros hobbystas. "Tem cara que gasta R$ 100 mil, R$ 150 mil por ano", ele me conta. No dia em que o conheci, ele mostrou uma caixa onde guardava alguns dos 60 motores que ele possui. No total, contabilizava cerca de R$ 7 mil.

O amor pelos carrinhos não se resume a quem gosta de competir. O voyeurismo é característica forte deste universo. "São pessoas que não gostam muito de convivência, mas gostam de ficar em casa com seus carrinhos e ficar olhando, têm coleção", conta o Júlio, que também diz ser um pouco assim. Já quem fica do lado dos loucos por adrenalina, não abre mão de competir e sentir a descarga de tensão da brincadeira. "Quando compito, sinto como se estivesse pulando de paraquedas, não tem nada melhor", diz Lúcio.

Foto por Hudson Rodrigues

"Na década de 1980 tinham garotos de 10 anos que vinham do ABC sozinhos para a pista"

Unidos pela tradição

Monza Automodelismo. Foto por Hudson Rodrigues

Para todas as pessoas que perguntei quais as lojas tradicionais e mais antigas da cidade, a Monza foi citada em todas as vezes. Há 35 anos no mercado, o estabelecimento abriu as portas pela primeira vez no bairro da Vila Mariana, mais precisamente na Rua Padre Machado. Antônio José Gomes, 60, um senhorzinho simpático e bom de prosa, é proprietário do espaço e conta que no começo trabalhava no ramo das bicicletas e mobiletes, embora o desejo de ter uma pista existisse desde seus 18 anos. Em 1981, ele ganhou uma pista de madeira profissional de 30 metros, presente de um amigo seu. Foi aí que resolveu mergulhar completamente neste universo e se tornou proprietário do autorama. Já no ano de 1992, ele mudou definitivamente para o espaço onde a Monza funciona até os dias de hoje, na zonal sul de São Paulo. "Era 99% a garotada entre 10 e 18 anos. Os adultos eram bem menos, a maioria homem."

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Antônio José Gomes, dono da Monza. Foto por Hudson Rodrigues

Assim como o Antônio, Júlio, citado no começo da matéria, também resolveu montar seu negócio no ano de 1992, o Octopus. Ávido por competição, ele conta que seu início na brincadeira foi cedo, quando tinha seis anos. "A Estrela lançou o seu autorama em 1964 e, em 1967, comecei já em pistas grandes de madeira que tinha perto de casa", relembra. Seu pai foi quem comprou o primeiro carrinho que manuseou na vida. E entre idas e vindas frequentando as lojas e brincando, no começo da década de 1990, ele voltou definitivamente e abriu espaço em sua própria garagem de casa. "Aproveitei a garagem pra economizar aluguel, pois é um público bem restrito, ainda mais agora. Estou aqui desde então."

Júlio Guerra Neto, dono da Octopus. Foto por Hudson Rodrigues

Se hoje a maior parte dos hobbystas do brinquedo não têm menos de 30 anos, em outros tempos a história era diferente. Era coisa de jovem. "Nos anos 1980 tinha garotos de 10 anos que vinham do ABC sozinhos para a pista, às vezes pegavam dois ônibus, chegavam lá e brincavam o dia inteiro nas férias", recorda Gomes. A violência, diz, fez com que a frequência das crianças caísse drasticamente durante os anos seguintes. "Da década de 1990 pra frente, às vezes chegava o menino com a malinha e 'cadê o tênis?', 'me roubaram'." Isso, de acordo com ele, foi minguando a segurança que os pais tinham em deixar suas crias circularem sozinhas pela cidade.

Bem naipe os carrinhos. Foto por Hudson Rodrigues

Foto por Hudson Rodrigues

Quanto às dificuldades internas da cena, uma questão era como conseguir as peças para montar os carros. A grande maioria só era fabricada no exterior. "Era bem difícil porque, na época de 1980, a importação não era permitida, tínhamos muito problema de material", conta o proprietário da Monza. Isso resultava num mercado enorme de usados. "Eu tinha cliente e não tinha produto pra vender pro cliente a não ser o material nacional. Hoje a gente tem a livre importação, mas falta cliente", lamenta.

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"A gente tá correndo por uma categoria que chama Fórmula Crise, que é tudo que existe de mais barato"

A renovação que nunca ocorreu

Os olhinhos vidrados mirando os carros coloridos que passeiam pelas pistas dos autoramas parecem os das crianças quando ganham um brinquedo novo. O curioso é que quase todos já passaram há muito tempo da infância. Nos quatro estabelecimentos visitados pela equipe da VICE, a maioria esmagadora dos competidores eram homens já passados dos seus 30 anos. "São os caras que brincavam naquela época, que hoje já têm filhos e vem brincar", justifica Antônio, do Monza Automodelismo.

Os competidores vidrados na Parolu. Foto por Hudson Rodrigues

A real é que os frequentadores dos autoramas não se renovaram. São os mesmos pilotos de 20, 30 anos atrás. Se antes era um hobby atrelado a uma molecada, hoje dificilmente se forma uma turma de novinhos que dediquem tanto tempo quanto o pessoal das antigas. E quando pergunto o porquê da estagnação do público, a resposta é unânime: o videogame. O Lúcio acredita que a dinâmica dos jogos virtuais diminuem as frustrações das crianças na hora de competir. "Se ela perde, ela deleta o jogo e começa de novo. Aqui você ganha de verdade e perde de verdade. E para você ganhar, demora", diz.

Jorge Luiz Mordaue, 47, é proprietário de um dos autoramas mais recentes da cidade, o Speed Place, no bairro da Vila Mariana. Na ativa desde 2009, o pico recebe seu fiel público para competir três vezes por semana. E sempre sem apostar absolutamente nada em dinheiro, apenas pela diversão de pilotar e, possivelmente, sair vitorioso entre os amigos. Ele explica que até mesmo em competições maiores, como o campeonato brasileiro, o maior prêmio é sempre um troféu. "Dinheiro não, senão vira jogo e começa a complicar". Antônio, da Monza, conta que houve uma época em que até rolava patrocínio para alguns atletas, principalmente quando a Estrela possuía seu mercado de autoramas e fazia mais propaganda do brinquedo. "Com a morte do [Ayrton] Senna, isso também deu uma esfriada, pois a Estrela não fez mais patrocínio, não fez mais nenhuma corrida", lamenta.

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Jorge Luiz Mordaue, dono da Speed Place. Foto por Hudson Rodrigues

Mesmo com menor apelo, o investimento para participar da brincadeira segue alto. Os carrinhos mais baratos e simples não saem por menos de R$ 200,00. "Eu tenho carrinho a partir de 220 reais. E vai até 1000, 1200, 1300 reais, depende da disponibilidade da pessoa", afirma Jorge. Isso é também um fator determinante para tornar a prática cada vez mais inserida num universo fechado e clubista. A produção das peças também não é alta, afirma Jorge, o que motiva os preços a subirem. "As fábricas não se dedicam a produzir itens de baixa produção."

Foto por Hudson Rodrigues

Sobre se sustentar com o dinheiro provindo dos autoramas, Júlio é enfático. "Viver bem não dá. Com essa crise, a primeira coisa que as pessoas largam é o lazer." Ele conta que teve um diminuição no movimento de pelo menos 40% de 2005 para cá. "A moçada tá sofrendo muito", diz. "Hoje mesmo a gente tá correndo por uma categoria que chama Fórmula Crise, que é tudo que existe de mais barato", se diverte. Ele diz que, nessa categoria, o motor custa cerca de R$40,00 "e dura uma eternidade". O carro inteiro sai na faixa de R$ 300,00.

A falta da presença feminina nas pistas também é uma parada que restringe o público a um grupo ainda mais seleto de competidores. O que grande parte da galera comentou é que, quando as minas colam no rolê, normalmente são as namoradas ou esposas dos hobbystas que participam para acompanhá-los. Dentre várias justificativas como "mulher não curte velocidade", "mulher é mais sensível", ninguém conseguiu explicar direito o porquê da pouca adesão feminina aos autoramas. "Mas a gente tem até uma promoção: mulher aqui não paga", diz, aos risos, Julio, da Octopus. "E se vier algum homem vestido de mulher, também não paga."

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Foto por Hudson Rodrigues

"Eu não acho que o autorama tem futuro tão longo para nós"

A desunião tira a força

Quando o assunto é o futuro que aguarda os autoramas e sua indústria, a galera se divide. Uns mais otimistas, outros nem tanto. "Eu não acho que o autorama tem futuro tão longo para nós. O pessoal que tá aqui é todo mundo acima de 37, 38, anos. As gerações pararam de vir atrás", diz Lúcio. Já Antônio pensa que a nova geração da molecada vai continuar a frequentar as lojas. "Principalmente aquele que o pai traz, ele vai gostar de praticar e continuar praticando. Essa é a geração que futuramente vai cobrir o pai."

Foto por Hudson Rodrigues

A questão não parte somente do público. A divulgação da prática é pequena. É difícil até encontrar informações na internet, já que poucos autoramas possuem, por exemplo, página do Facebook. "A gente não faz nenhuma propaganda na grande mídia para que isso apareça, não sei nem se seria boa a propagando em grande escala, se ia resolver os problemas das lojas", conta Antônio.

Ele acredita que a desunião das lojas também não ajuda nesse quesito. "Não tem uma classe, uma cooperativa para arrecadar dinheiro, acaba cada um por si."

Se tudo continuar como está, os autoramas serão, cada vez mais, relíquias esportivas.