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Pintura Chinesa, Realidade e “Streets of Rage”

Frequentemente, às vezes sem mesmo perceber, o pessoal que faz os joguinhos usa todo um conhecimento acumulado para melhorar suas criações.

Pense na fase como um rolo que vai se abrindo para o seu personagem. Tem uma vida extra naquele cantinho inferior da esquerda da tela, é só pegar.

O aspecto visual dos jogos eletrônicos sempre teve vários problemas práticos a serem resolvidos, isso é inegável. Infelizmente, a história da humanidade é um arcabouço imenso de diferentes formas de figurarem seres vivos, ambientes e paisagens. Frequentemente, às vezes sem mesmo perceber, o pessoal que faz os joguinhos usa todo esse conhecimento acumulado para melhorar suas criações. Recentemente, joguei com um amigo um dos jogos do saudoso Mega Drive que eu mais zerei na minha infância: Streets of Rage 2. Ao observar a arte do game, que eu não jogava há anos, eu reparei algo bem curioso. Ele me pareceu muito com a extensa tradição de pintura chinesa em vários aspectos, mas especialmente pelo andar da narrativa e pela forma de se representar os cenários e personagens.

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Call of Duty segue a perspectiva linear de Brunelleschi. Streets of Rage segue a perspectiva reversa dos chineses.

Em 1988, ano de lançamento do Mega Drive (no Japão), de Altered Beast e dos Mario 2 e 3, o pintor inglês David Hockney gravou um documentário no qual estudava dois rolos de pintura chinesa com o mesmo tema: a viagem de inspeção das províncias do sul que o imperador fazia sistematicamente para ver se estava correndo tudo certinho em seu vasto império. O rolo mais antigo, de 1698, mostra a viagem de inspeção do imperador Kangxi; com quase setenta centímetros de altura e dois metros e vinte de comprimento, ele utiliza-se da perspectiva chamada de perspectiva reversa. O segundo rolo, de 1770, mostra a viagem de inspeção do neto de Kangxi, Qianlong, quando a moda da perspectiva linear, vinda do ocidente, já havia contaminado os artistas chineses. O jogo Streets of Rage 2 não é exatamente a mesma coisa que a primeira pintura mostrada por Hockney, mas o caminhar pela fase, como podemos ver nessa maravilhosa imagem do primeiro nível, é muito semelhante à maneira como desenrolamos o rolo da pintura e acompanhamos todas as cenas e ações dos bonequinhos nela. Outra semelhança é que os personagens do jogo, assim como as figuras na pintura do século XVII, não ficam menores de acordo com a distância da parte de baixo da tela, o que deveria ocorrer se seguissem as regras da perspectiva linear. A solução visual para resolver a confusão de "Que altura, afinal de contas, está o meu bonequinho que está pulando???" é a sombra que acompanha o seu personagem o tempo todo, não apresentada como uma figura idêntica ao personagem, e sim como uma mancha preta embaixo dele, como se a luz viesse sempre de cima. Neste trecho do documentário disponível no youtube, Hockney mostra como funcionam os dois tipos diferentes de perspectiva, cada um usado em um dos pergaminhos.

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Esse vídeo e um pack de cerveja gelada compõem uma ótima noite de sexta-feira para mim.

É claro que nem todos os jogos 2D seguem a perspectiva apresentada na pintura chinesa tradicional. Podemos ver a diferença entre os níveis do Streets of Rage 2 (a partir de agora abreviado como SoR 2) e de um clássico um pouco posterior, Castlevania: Symphony of The Night. Vejamos o primeiro nível, quando o vampirão Alucard entra no castelo do papai Drácula. A solução da série Castlevania para representar o mundo em duas dimensões é diferente da de SoR 2. Em um jogo de beat 'em up como é o SoR 2, a mudança de nível, para baixo e para cima, é muito importante: por isso, o chão tem de ser mostrado. Em games de plataforma como o Super Mario Bros. e o Castlevania, não. É por isso que os cenários se parecem muito mais com um desenho de recorte, como o utilizado na arquitetura e engenharia, do que nos jogos beat 'em up. Além disso, é um jeito de se figurar o mundo em três dimensões cujos vários problemas visuais que isso acarretaria não apareçam. Outro jogo que usa o desenho em recorte da arquitetura e engenharia é o mais recente Hotline Miami, mas nele a visão é de cima para baixo, bem parecido com aquelas plantas de folheto imobiliário.

Nunca achei que um jogo baseado em plantas de casas pudesse ser tão violento.

A perspectiva linear, sistematizada por Filippo Brunelleschi nos primeiros anos da década de 1440, estabeleceu de fato o jeito ocidental de representar o mundo. É um mecanismo tão potente que nos faz confundir esse jeito de figurar o mundo, muito próximo da maneira que enxergamos, com a realidade. É o paradigma visual sob o qual inventamos as câmeras fotográficas. É exatamente esse jeito de se figurar que está presente nos jogos 3D, nos quais, sob a ótica do personagem em primeira dimensão, interagimos com o que nos cerca, geralmente dando tiro em todo mundo. A palavra realista é usada a torto e a direito quando se quer defender as qualidades visuais de um jogo. Geralmente, ela só quer dizer que o game tem um gráfico irado, valor refém dos padrões de gráfico irado de sua própria época, como podemos constatar nesse maravilhoso exemplo do lançamento de Unreal em 1997. O termo realista costuma se referir à maneira como nós, humanos que têm dois olhos na frente da cabeça, enxergamos o mundo, e não há nada mais muito distante disso. Se você acredita que o mundo existe mesmo que nenhum ser humano o esteja olhando, então realismo pode significar outras maneiras de se representar o que existe. De qualquer forma, se você colocar um capacete de realidade virtual em um adolescente, ele, com certeza, irá dizer que aquela foi a experiência radical mais realista que já teve, justamente porque jogos 3D trabalham dentro dessa perspectiva que associamos com a melhor maneira de representar fielmente o mundo: a perspectiva linear. Mas, da mesma maneira que não vão parar de fazer games 3D cada vez mais imersivos, também não vão parar de fazer jogos que utilizam outros modos de se mostrar o mundo.

Outra curiosidade entre as pinturas chinesas em rolo e os jogos de videogame é que observamos uma pintura e a desenrolamos da direita para a esquerda, da mesma forma que se lê os caracteres orientais, e no jogo é o contrário. Não sei quem estabeleceu essa convenção de direção – da esquerda para a direita, como os bárbaros ocidentais escrevem e leem –, mas deve ter sido bem confuso para o primeiro japonesinho incauto que jogou Super Mario.

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