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Por que Yasiin Bey foi preso ao usar um “passaporte mundial” e o que diabos é esse tal passaporte?

Passaportes mundiais e as pessoas tentando criar um mundo sem fronteiras.

Foto via Wikimedia Commons.

Em 14 de janeiro, o rapper, ator e ativista Yasiin Bey, anteriormente conhecido como Mos Def, estava tentando embarcar num avião para a Etiópia quando foi detido pelas autoridades de imigração sul-africanas. O Departamento de Assuntos Internos da África do Sul acusou Bey de desobedecer as leis locais de imigração, incluindo exceder o período de estada autorizado pelo seu visto de turista, e, o mais notável, apresentar um "passaporte mundial" como documentação de viagem.

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Os meios de comunicação pularam para a conclusão de que o passaporte de Bey era fraudulento (ou, como o NY Daily News colocou, "Mos Definitely not valid"). Ele está sendo acusado de usar uma identidade falsa e um "documento de viagem não-reconhecido". Mas o que exatamente é um "passaporte mundial" e por que ele estava usando um?

A história do passaporte mundial começa em 1954, quando Garry Davis — um piloto da Segunda Guerra Mundial que se tornou ativista pela paz e que anos antes havia renunciado à cidadania americana — fundou a World Service Authority (WSA). Ele imaginava um mundo sem fronteiras, e que a WSA seria a agência administrativa que agiria como um governo internacional, emitindo passaportes e reconhecendo a "cidadania mundial".

Logo de cara eles tiveram problemas com reconhecimento: Davis foi preso várias vezes por usar o passaporte mundial como documento de viagem. Arthur Kanegis, um cineasta filmando atualmente num documentário sobre Davis, contou o causo de quando Davis foi acusado pelas autoridades francesas de criar passaportes falsos em 1987. "Gary respondeu: 'Você está dizendo que essa é uma cópia falsa de um passaporte mundial real?'", disse Kanegis. "E eles disseram 'Isso não existe'. E ele disse 'Então estou sendo acusado de criar uma cópia falsa de um documento que não existe?" Ele foi liberado depois disso.

Hoje, o WSA não garante que nenhum país vai aceitar seus passaportes como documento de viagem. A agência opera como uma pequena organização sem fins lucrativos em Washington, DC, empregando voluntários e financiada pelas taxas de processamento dos documentos requisitados, além de doações.

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Nas contas da organização, a WSA já emitiu 750 mil passaportes até hoje, entre 4 milhões de documentos no total que validam desde identidades, nascimentos até casamentos "mundiais". Segundo o presidente atual da WSA David Gallup, advogado de direitos humanos, cada uma dessas formas de certificação pretendem "afirmar os direitos humanos para qualquer um, independente de status econômico, social, religioso ou orientação sexual".

A WSA emitiu a maior parte desses passaportes entre 1988 e 1995, quando a União Soviética se dissolveu em vários estados independentes. Gallup diz que o grupo está emitindo bem menos documentos agora — entre 5 mil e 10 mil, incluindo passaportes, por ano. Mas Gallup acredita que essa demanda estável é um sinal de que os documentos ainda se mantém uteis de alguma forma.

Quando são aceitos, os titulares dos passaportes, cartões e certificados mundiais usam esses documentos para abrir contas em banco, se inscrever para licenças e empregos, e cumprir muitas das exigências burocráticas da sociedade, justamente aquelas que os portadores de documentos normais consideram corriqueiras. Por exemplo, a WSA emitiu passaportes mundiais para refugiados afegãos e iraquianos na Noruega, que usaram os documentos para conseguir identidades que permitissem que eles viajassem para outros países escandinavos para achar trabalho. Gallup também me contou sobre uma criança nascida na Rússia de pais não-russos, que não tinham documentos de seu países de origem e que usaram a certidão de nascimento da WSA para conseguir atendimento médico para o bebê. Segundo um representante, Bey estava usando o passaporte mundial porque isso era "mais representativo de suas ideias e filosofias pessoais" do que o passaporte americano.

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A agência exige que os passaportes mundiais sejam renovados periodicamente, assim como passaportes normais, e a WSA escaneia cada página de entrada e saída e carimbos de visto, arquivando exemplos online. A organização usa isso como prova de que os passaportes mundiais estão sendo aceitos por mais de 170 países e territórios do globo, apesar de serem reconhecidos oficialmente apenas por seis (Burkina Faso, Equador, Mauritânia, Tanzânia, Togo e Zâmbia).

Ao ser preso, Bey apontou que o governo sul-africano já tinha reconhecido passaportes mundiais "em várias ocasiões… em portos de Joanesburgo e Cidade do Cabo, primeiro em 1996 e por último em 2015". Gallup diz que esse tipo de reconhecimento do passaporte mundial pode minar as acusações contra Bey, apesar de especialistas legais parecerem divididos quanto a isso.

Richard Boswell, professor de lei de imigração da UC Hastings, diz que não vê como um "reconhecimento não-oficial" no passado obrigaria um país a reconhecer esses documentos no futuro. "Nos EUA, isso seria considerado um erro", me disse Boswell. "Não vejo como um funcionário de baixo escalão da fronteira pode obrigar toda uma nação a reconhecer esses passaportes."

Por outro lado, quando um país tem histórico de não exercer certas leis e de repente faz isso contra um indivíduo, isso pode ser considerado uso da lei como pretexto, segundo Holly Cooper, vice-diretora da Immigration Law Clinic da UC Davis. "Aqui, como Yasiin Bey tem posições políticas controversas, é muito provável que a África do Sul esteja usando sua lei de imigração para puni-lo por suas opiniões — se for verdade que no passado [a África do Sul] aceitou os passaportes da WSA."

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Gallup, por sua parte, diz que a WSA enviou ao advogado de Bey "carimbos recentes da África do Sul — um dos mais recentes, de agosto, era de uma autorização de trabalho e residência fornecida pelo escritório de Assuntos Internos num passaporte mundial. Também temos carimbos de 2014, 2013 e 2012, então, se eles dizem que não reconhecem isso, essa é uma deturpação da verdade".

Gallup também escreveu uma "carta de validação legal" para o governo sul-africano em favor de Bey, para fazer valer a obrigação do Estado de respeitar a liberdade de viajar do rapper. Gallup apontou que isso é considerado um direito inato e inalienável pela maioria dos governos e pela Declaração Universal de Direitos Humanos.

Gallup diz que a WSA garante esse tipo de apoio (mas não representação legal) para qualquer um que peça ajuda para garantir seus direitos de viagem, identificação e reconhecimento — independente da pessoa ter ou não documentos da WSA. Eles também fornecem aconselhamento sobre as limitações legais dos documentos mundiais e sobre as melhores práticas para convencer as autoridades a aceitá-los.

Surgiram acusações de que esse apoio incondicional poderia permitir que os titulares de passaportes mundiais usassem os documentos para propósitos escusos: Em 2006, um terrorista nascido nos EUA usou um desses para viajar para a América do Sul, onde planejava realizar um atentado à bomba a dois hotéis; em 1996, o sequestrador de um navio de cruzeiro usou um passaporte mundial para fugir da Itália para a Espanha, onde foi recapturado. Mas considerando os 750 mil passaportes emitidos desde 1954, a taxa de abuso parece bem baixa.

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Gallup enfatizou que a WSA está estritamente em conformidade com as leis nacionais de segurança dos EUA: Eles não trabalham com pessoas de países sob sanções como Síria, Irã, Sudão e Coreia do Norte (apesar dos péssimos direitos humanos desses países), ou apoiam qualquer um que apareça na lista de terroristas do FBI, e dizem pesquisar profundamente a origem e a identidade de todos os candidatos.

Mesmo que o feito prático da defesa da WSA não seja sempre tão aparente, como no caso de Bey, sua lógica filosófica quanto aos direitos humanos internacionais é sólida — ou seja, "o Passaporte Mundial representa o direito humano inalienável de liberdade de viajar pelo planeta Terra".

Bey deve ir a julgamento na África do Sul em 8 de março.

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Tradução: Marina Schnoor