'Elas estavam preparando suas almas para morrer': quando suas filhas entram pro ISIS
Um fuzil peshmerga numa posição na linha de frente com o ISIS no norte do Iraque. Foto por John Moore/Getty Images

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Broadly DK

'Elas estavam preparando suas almas para morrer': quando suas filhas entram pro ISIS

No começo, Olfa Hamrouni ficou feliz quando as filhas redescobriram o Islã. Aí elas fugiram de casa para um campo de treinamento jihadista.

Olfa Hamrouni enxuga as lágrimas com o canto de seu hijab florido. Ela aponta as fotos colocadas na frente dela na mesa. Dois rostos jovens olham de volta para ela – suas filhas, atualmente sob custódia de uma milícia lutando contra o Estado Islâmico em Trípoli, Líbia, depois de serem radicalizadas por extremistas violentos.

"Ninguém da vizinhança fala comigo", ela diz, olhando as duas filhas fotografadas em sua cozinha na modesta casa de um bairro suburbano de Túnis, Tunísia. "Outras famílias não deixam seus filhos brincarem com as minhas meninas. Eles dizem que somos terroristas."

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A Tunísia é o maior exportador de militantes da jihadi do mundo. Segundo a ONU, mais de 5.500 tunisianos de idades entre 18 e 35 anos se juntaram a organizações militantes violentas, incluindo o ISIS e a afiliada da Al-Qaeda Al-Nusra, na Síria, Iraque e Líbia. Desse número, 700 são mulheres.

Os motivos para mulheres se juntarem a grupos extremistas violentos geralmente são mais escrutinados do que os dos homens. Mas a Dra. Erin Saltman, pesquisadora sênior de contraextremismo do Institute for Strategic Dialogue (ISD) em Londres, considera essa uma resposta ingênua e sexista.

"Desde sempre as mulheres são parte de movimentos violentos, da extrema-direita à esquerda radical, seja como combatentes, membros da logística ou responsáveis pela comunicação", disse Saltman. "Não entendemos por que mulheres de várias origens e idades se juntam a movimentos islâmicos extremistas porque pensamos neles como opressivos para com as mulheres."

"Mas, na verdade, a propaganda sendo disseminada entre as mulheres é muito empoderadora e aborda narrativas que falam de irmandade, pertencimento, empoderamento e realização espiritual, algo com que o público ocidental tem dificuldade em se identificar. É mais uma narrativa poderosa de construção de uma utopia, como as táticas soviéticas e nazistas."

Saltman explica que as razões para a radicalização de homens e mulheres variam. "Quando observamos mulheres que se juntaram [a grupos extremistas], vemos uma grande variação de idade, mulheres entre 13 e 45 anos. Algumas com os maridos, algumas sozinhas, algumas com amigos. Algumas com namorados, algumas esperando se casar ao chegar lá, outras indo porque acham que podem lutar como combatentes", ela diz. "É como escolher um pouco de tudo, e o que os recrutadores e propagandistas fazem e pegar queixas muito pessoais e localizadas e manifestá-las em sua ideologia."

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As filhas de Hamrouni se tornaram vulneráveis ao recrutamento pelos extremistas do Estado Islâmico em 2012, um ano depois da Revolução de Jasmim na Tunísia, que derrubou o ditador Zine el-Abidine Ben Ali e seu regime secular. A dinâmica do país norte-africano mudou dramaticamente, e agora os extremistas religiosos podiam fazer proselitismo abertamente. Pregadores salafistas montaram barracas de educação islâmica, as dawah, nas ruas de todo o país, onde davam seus sermões.

Na época, o lar de Hamrouni estava passando por problemas. Hamrouni se divorciou do marido em 2011 e estava lutando para manter o controle sobre as quatro filhas sozinha. A mais velha, Ghofran, agora com 18 anos, desafiava a mãe cortando o cabelo e usando maquiagem, e Rahma, um ano mais nova, foi expulsa da escola por discutir com os professores.

Em 2012, uma barraca apareceu na frente da casa delas e Ghofran entrou para saber mais. Ela saiu de lá usando um nicabe e logo Rahma seguiu o exemplo. Elas destruíram seus amados CDs de rock, e Rahma jogou fora sua guitarra. Música ocidental era um tabu no mundo que agora as consumia.

"Elas estavam preparando suas almas para morrer."

Hamrouni diz que inicialmente ficou feliz que as filhas tivessem achado um tipo de propósito na vida, mas a coisa rapidamente degringolou quando elas começaram a criticar a família por serem infiéis. As garotas começaram a radicalizar as irmãs mais novas, Taysin, de 11, e Aya, de 13, e as impediram de ir à escola. Elas falavam sobre jihad e a Síria, e a pregação perturbou tanto Aya que ela parou de comer.

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"Elas estavam preparando suas almas para morrer", disse Hamrouni, arrumando as fotos na mesa. "Quando elas ouviam sobre [um combatente do ISIS] morrendo na Síria, elas iam até a casa da pessoa e parabenizavam a mãe dele."

O dinheiro andava curto, então Hamrouni levou a família para a Líbia em 2014 para trabalhar como faxineira. Semanas depois, Ghofran viajou para um campo de treinamento militar jihadista em Sirte, uma área controlada pelo ISIS na Líbia. Hamrouni trouxe a família de volta para a Tunísia, mas Rahma logo fugiu para se juntar à irmã.

Hamrouni esfrega os olhos, cansada, lembrando os angustiantes acontecimentos recentes. Taysin a observa de perto, em silêncio, como uma mãe observaria a filha. Seu olhar permanece imóvel enquanto Hamrouni continua sua história – Ghofran casou com um combatente do ISIS e engravidou. Rahma se casou com Nourenddine Chouchane, supostamente um dos autores intelectuais do ataque a um resort turístico perto de Sousse, Tunísia, em 2015.

Ataques aéreos norte-americanos a Sabrata, Líbia, em fevereiro mataram o marido de Rahma e ela mandou para a mãe uma mensagem de texto preocupante: "A situação é perigosa e posso morrer. Reze para que eu seja uma mártir". Hamrouni ligou para a filha, mas Rahma se recusou a voltar para casa. O marido de Ghofran também foi morto num ataque aéreo e as irmãs, junto com o bebê de Ghofran, foram capturadas e estão sob custódia de uma milícia anti-ISIS em Trípoli.

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Hamrouni está desesperada para trazer suas filhas e o neto de volta para a Tunísia. Ela entrou em contato com as autoridades sobre sua situação e falou para a televisão nacional, mas isso só alienou ainda mais sua família da comunidade, dado o estigma de estar associado a terroristas – especialmente para as mulheres. "Nosso país não se importa com as crianças", ela diz. "Minhas filhas se foram e perderam seu futuro."

Mas um homem tem apoiado incansavelmente Hamrouni, além de outras famílias que também perderam os filhos para grupos extremistas: Mohammed Iqbal Ben Rejeb. Ele comanda a organização RATTA (Rescue Association of Tunisians Trapped Abroad), que faz lobby no governo para facilitar o retorno de cidadãos tunisianos para que eles, pelo menos, sejam julgados em seu próprio país. Ele também defende programas de reabilitação para pessoas radicalizadas pelos extremistas do Estado Islâmico.

Ben Rejeb fundou o RATTA em 2012, depois que seu irmão foi radicalizado e acabou partindo para a Síria. Ele voltou uma semana depois quando percebeu que tinha cometido um erro. Ben Rejeb diz que ver as lágrimas da mãe o incentivou a lançar a RATTA e fornecer apoio para outros pais sofrendo com as mesmas circunstâncias.

Apesar de trabalhar duro para manter a RATTA em funcionamento, Ben Rejeb deve fechar a organização este ano devido à falta de apoio. Um golpe duro para aqueles que confiam nele para ajudar a lutar contra a aparente intransigência do governo tunisiano, que se recusa se abrir um diálogo com essas famílias. Ele também está desapontado com a falta de investimento em antirradicalização e programas de reabilitação, que diz serem extremamente necessários na Tunísia.

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"Apenas um diálogo já mostrou plantar a semente da dúvida com grande eficiência."

Em vez disso, o governo tunisiano lançou uma lei antiterrorismo em resposta aos ataques ao Museu Bardo em Túnis, em março de 2015, tentando policiar melhor as mesquitas controladas por extremistas. Mas muitos tunisianos têm reclamado de abuso policial, o que deixa as pessoas ainda mais vulneráveis a recrutadores.

"Acredito que comunicação e diálogo são cruciais nesse espaço", diz Saltman. "Você só ouve o que quer ouvir, e quando está sendo radicalizado, uma das primeiras coisas que eles dizem é para não ouvir a mídia mainstream ou falar com outras pessoas sobre isso. Apenas um diálogo já mostrou plantar a semente da dúvida com grande eficiência."

Em seu trabalho, Saltman comanda a Youth Civil Activism Network (YouthCAN) do ISD, que lançou laboratórios de inovação para a juventude que juntam ativistas jovens e pensadores para desenvolver narrativas contra o discurso de ódio e o extremismo. "Essas iniciativas podem se tornar uma tendência mais eficiente que um abordagem de cima para baixo, que diz aos jovens para não se tornarem terroristas", ela diz. "É muito mais fácil que os jovens digam aos outros jovens para serem parte de uma contracultura positiva. Esses projetos dão mais esperança ao mundo."

O ISD também está trabalhando com o Extreme Dialogue, um programa antirradicalização para escolas lançado no Canadá e Reino Unido, e que logo será expandido para a Alemanha e Hungria. Uma das estratégias é discutir o extremismo violento em lugares seguros como a sala de aula, usando histórias de ex-extremistas e sobreviventes de ataques para criar um contexto emocional.

No entanto, em países como a Tunísia, onde muitas pessoas não têm acesso nem a serviços básicos, é muito mais difícil implementar esse tipo de programa.

Para Hamrouni, o objetivo agora é viver um dia de cada vez e tentar manter sua família unida. Ela teme que as filhas mais velhas tenham tornado Aya e Taysir vulneráveis. Ela acha que perder as outras duas seria demais para suportar. "Gosto da minha religião", ela diz, "somos todos muçulmanos no final das contas. Eu queria que minhas filhas rezassem, mas não queria que elas se tornassem extremistas".

Tradução do inglês por Marina Schnoor

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