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Quase Morri Viajando da Somália Para Lampedusa

Hassan Ali, um somali de 23 anos, fala sobre sua vida difícil antes da viagem de barco e os horrores que experimentou na rota para a Europa.

Migrantes chegam à ilha italiana de Lampedusa em 2007. Foto via Noborder Network

Hassan Ali, um somali de 23 anos, sobreviveu a confrontos armados e à pobreza em seu país antes de decidir embarcar na Tahrib, a perigosa jornada da África até a ilha italiana de Lampedusa em 2009. Milhares de somalis fazem essa viagem todos os anos. Este mês, a história ganhou atenção depois que um barco pegou fogo e afundou no dia 3 de outubro, matando mais de 300 imigrantes. Oito dias depois, outro navio naufragou num acidente que deixou pelo menos 34 mortos. Aqui, Hassan fala sobre sua vida difícil antes da viagem e dos horrores que ele experimentou na rota para a Europa.

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O canibalismo só começou no segundo dia da jornada da Líbia para Lampedusa. Estávamos viajando há dez dias; as pessoas estavam morrendo e não tínhamos comida. Eu realmente vi um cara cortando um pedaço de carne do corpo de outro homem.

Eu fui um dos poucos que teve sorte.

Cresci em Beled Hawo, uma cidade da Somália próxima da fronteira com o Quênia. Amo minha cidade, mas a vida lá não foi muito feliz para mim. Eu vivia num apartamento com meus pais, uma irmã mais nova e dois irmãos mais velhos. Quando eu tinha dez anos, a luta entre os clãs começou. Uma tarde, enquanto eu estava na mesquita, um tiroteio começou do lado de fora. As balas voavam por toda parte. Eu estava sozinho e não sabia o que fazer, fiquei procurando uma maneira de sair de lá, com os tiros ecoando por todos os lados da mesquita. Consegui achar um caminho livre e corri para casa, mas quando estava quase chegando na porta, homens com AKs-47 começara a disparar em minha direção. Eu me abaixei, corri para dentro e cai nos braços dos meus pais. Depois de cinco horas, o tiroteio finalmente terminou. Naquele dia, que eu soube que meu futuro não era em Beled Hawo.

Eu sempre quis ser astronauta. Eu gostava de ficar observando as estrelas e a lua, e sonhava um dia poder estar entre elas. Esse tipo de sonho nunca pode se realizar na Somália.

Ouvi falar sobra a Tahrib pela primeira vez no rádio, quando tinha 19 anos. As pessoas estavam contando sobre suas novas vidas na Europa e como elas viajaram da Somália até lá de navio. Parecia uma boa ideia. Depois de algum tempo, contei aos meus pais que planejava ir embora. Eles ficaram chocados. “Vocês está louco?”, minha mãe disse. “Você é só um menino, o que deu na sua cabeça?” Eu disse a eles que achava que a Tahrib era a única chance de conseguir alguma coisa, que eu podia encontrar uma vida melhor na Europa. Eles acharam que eu estava brincando. Quando liguei para eles do primeiro barco meses depois, eles ficaram horrorizados.

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Mukhalas são as pessoas que fazem a ligação entre você e negócios ilegais. Eles são considerados algumas das piores pessoas da Somália. O cara que me iniciou na Tahrib não era diferente. Ele era um cara muito, muito nojento, um bandido conhecido na cidade. Por meio dele, achei outras pessoas que queriam fazer a jornada. Todos tinham medo dele e me contaram histórias horríveis. Tentei tirar tudo isso da cabeça. Eu devia ter desistido aí, mas, em vez, paguei $800 (mais de R$1.700) a ele pela Tahrib, dinheiro doado por amigos e familiares que não sabiam o que eu planejava fazer.

Nossa primeira viagem foi de Beled Hawo para Bosaso, uma cidade portuária no norte da Somália. Não foi a pior jornada, mas tínhamos pouca comida e as pessoas no comando do barco eram muito cruéis, gritando conosco e batendo nas pessoas. Eu era só um menino – já estava com saudades de casa e todos estavam tristes, apesar de estarem a caminho de uma nova vida.

Quando chegamos a Bosaso, um lugar muito quente, as pessoas que estavam nos levando insistiram que o resto da jornada seria confortável e que viajaríamos num barco bom e espaçoso. Mas quando a embarcação apareceu alguns dias depois, ficamos aterrorizados: o barco era um ferro velho dilapidado, pequeno demais para levar dezenas de pessoas. Por dois dias inteiros, ficamos espremidos dentro daquele barco, dormindo um por cima do outro. Algumas pessoas quase sufocaram no compartimento abaixo do convés, mas o capitão e a tripulação, que estavam armados, diziam para calarmos a boca ou eles nos jogariam no mar.

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Em certo momento, liguei para meu irmão e contei que estava na Tahrib. Ele ficou tão chocado que não conseguia dizer nada. Pelo resto da jornada, minha família continuou ligando para meu celular, para ter certeza de que eu ainda estava vivo. Naquele momento, todas as histórias terríveis que eu tinha ouvido antes de partir ficavam voltando na minha cabeça. Eu mal conseguia respirar.

Quando desembarcamos na Líbia, as coisas só pioraram. Cruzei a fronteira com quatro homens e cinco mulheres, todos estavam muito abatidos depois de vários dias de viagem horrível sem nada para comer. Eles nos disseram para chegar nessa pequena cidade do deserto, mas, no caminho, 15 ou 20 homens armados nos capturaram. Achamos que eles eram guardas da fronteira. Mas quando a tortura começou, percebemos que eles eram foras da lei.

Os homens ficaram amarrados juntos debaixo do sol por sete dias. Os caras que nos capturaram não nos deram quase nada para comer e disseram que as mulheres estavam sendo espancadas e estupradas ali perto. Quando conseguimos escapar, depois que nossos parentes pagaram um resgate de $300 (por volta de R$650) por cada pessoa, descobrimos que essas alegações eram verdade. Tudo que eu queria era voltar para Beled Hawo, para os meus pais. Eu não ligava mais para chegar a Europa. Mesmo se sobrevivêssemos à jornada, como os europeus nos tratariam? Será que eu conseguiria um visto? Será que eles iriam me jogar na cadeia? Eu estava apavorado.

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Demorou mais dez dias para encontrar um barco que fosse da Líbia para Lampedusa. Foi então que o horror real começou. Só havia pão e biscoitos a bordo e o calor era insuportável. As pessoas estavam caindo mortas e o capitão não fazia nada. As pessoas começaram a comer umas às outras, era como um filme de terror acontecendo bem diante dos meus olhos. Esse trecho da jornada levou três dias. Três dias que pareceram anos.

Todo mundo sabe que os políticos na Europa e na África não fazem nada a respeito dos perigos da Tahrib. Se fosse diferente, todas aquelas pessoas não teriam morrido perto de Lampedusa este mês. Ninguém se importa com os verdadeiros problemas – a violência, a pobreza – que me fizeram deixar a Somália.

As pessoas me dizem que Lampedusa é linda. Não faço a menor ideia. Não me lembro da paisagem, tudo era simplesmente assustador. Mas, Alhamdulillah [graças a Deus], consegui chegar vivo e, surpreendentemente, consegui um visto italiano depois de ficar três meses num campo de refugiados. Algumas das pessoas que fizeram a travessia esperaram por anos, outras nunca receberam um visto. Mas eu amo a Itália. Morei lá por três anos e consegui ganhar a vida trabalhando em vários empregos. Posso nunca vir a ser um astronauta, mas a Itália me permitiu reconstruir minha vida. Agora estou de volta à Somália – não em Beled Hawo, mas outra cidade. Espero conseguir visitar a Itália novamente algum dia. Mas o que eu queria mesmo é que ninguém nunca mais tivesse que embarcar na Tahrib.

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