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Quem Secou Detroit?

Cheia de casas, arranha-céus e fábricas vazias, e confrontada com um desemprego de quase 15%, Detroit foi economicamente enxaguada e centrifugada e a ameaça de ter a água cortada continua sobre quase 300 mil moradores, incluindo crianças, idosos e...

Manifestantes protestam contra os cortes de água no centro de Detroit, 18 de julho de 2014. 

George Boukas se abanou com um aviso de desligamento que recebeu alguns dias antes do Departamento de Água e Esgoto de Detroit. O total devido, US$340,32 (cerca de R$755), estava destacado em vermelho. “Acabei de pagar isso aqui”, ele disse com um sorriso.

Era uma tarde de quinta-feira quente e abafada no Temple Bar, um estabelecimento na Cass Avenue, centro de Detroit. Cercado por casas atrofiadas com grama alta e edifícios vazios, entrei no bar de George porque era a única estrutura com sinais de vida num raio de três quarteirões. O buldogue dele, Jameson, não está acostumado a clientes. Ele veio rosnando até o vidro da porta da frente assim que coloquei a mão na maçaneta. Depois que Jameson foi distraído com um brinquedo de morder, George, que viveu a vida inteira em Detroit, conversou comigo em seu bar.

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“A conta de água era algo que você podia deixar acumular até ter dinheiro suficiente para pagar tudo”, ele me disso. “Hoje não é mais assim.”

George Boukas aponta para uma propriedade abandonada atrás de seu bar. 

Quatro dias antes, no dia 14 de julho, Valerie Blakely estava preparando o café da manhã dos filhos quando olhou pela janela e viu um caminhão parado em frente à sua casa em North End. A dona de casa de 55 anos saiu e se sentou na calçada, bloqueando o acesso à válvula subterrânea que fornece água para sua casa, onde ela vive com os quatro filhos – com idades entre 5 e 14 anos.

“Pode chamar a polícia, não vou sair daqui”, ela disse aos dois homens do Projeto Coletores da Água de Detroit. Os homens eram funcionários da Homrich Wrecking, uma empresa particular que conseguiu um contrato de US$5,6 milhões do departamento de água de Detroit para fechar as torneiras de milhares de moradores da cidade, alguns com somente dois meses de contas atrasadas.

Recuando com a presença de Valerie, os funcionários da Homrich Wrecking decidiram continuar sua ronda. Valerie acompanhou com os olhos o caminhão descendo a rua, cortando a água de aproximadamente 25 casas em seu quarteirão. Desde então, Valerie transformou seu jardim num centro de emergência, o tipo de coisa que as pessoas montam depois de furacões. Ela está trabalhando com ONGs locais para distribuir água e mantém um caldeirão com cozido de vegetais fervendo o tempo todo. “Meus vizinhos não estão podendo cozinhar nem tomar banho. Eles não têm nada para beber”, ela me disse. “Meu bairro virou uma área de desastre.”

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A ativista pelo bem-estar social Maureen Taylor conversa com outro morador de Detroit, no caminho para pagar a fiança de colegas ativistas. 

Cheia de casas, arranha-céus e fábricas vazias, e confrontada com um desemprego de quase 15%, Detroit foi economicamente enxaguada e centrifugada. Muitos dos antigos moradores deixaram a cidade nas últimas décadas e os que ficaram têm que dar duro para sobreviver. Ao mesmo tempo, a elite empresarial continuou por aqui, comprando terrenos por centavos e criando ondas poderosas de gentrificação que pairam sobre toda a cidade – isso se ela conseguir sobreviver à última crise.

Centenas de milhares de pessoas que vivem às margens da maior fonte de água doce do planeta, os Grandes Lagos, não podem nem beber de suas próprias torneiras. Em 1º de julho, 141.137, ou 48%, das contas de água residenciais de Detroit estavam pelo menos 60 dias atrasadas – o limite para corte definido pelo Departamento de Água e Esgoto da cidade. Cinquenta e quatro por cento das contas comerciais e 47% das contas industriais também estão com dois meses ou mais de atraso. Quase metade da Cidade dos Motores está sob ameaça de ter sua água cortada, e o preço do serviço aumentou 110% na última década.

Na segunda-feira, o departamento de água da cidade anunciou que estava suspendendo os cortes por 15 dias, para permitir que os moradores arrumassem dinheiro para pagar as contas, mas os cortes já afetaram milhares de casas e a ameaça de ter a água cortada continua sobre quase 300 mil moradores, incluindo crianças, idosos e doentes.

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Os enfermeiros dos EUA declararam a cidade “uma zona de emergência de saúde pública” num comunicado distribuído à imprensa semana passada, por meio do sindicato de 180 mil membros, a União Nacional dos Enfermeiros. O Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU condenou os cortes em junho, e disse que ia abordar a Administração Obama para evitar mais violações aos direitos da população à água. Localmente, recriminações mútuas voam para todos os lados. O Departamento de Água e Esgoto afirmou que alguns residentes podiam pagar se quisessem, mas que estavam simplesmente se aproveitando da cidade.

Essa visão era compartilhada pelo taxista mal-humorado que me levou do aeroporto até o centro da cidade. A cidade estava “indo à merda”, ele disse, depois assobiou, fazendo o barulho de uma bomba caindo. Os cidadãos de Detroit são uns idiotas preguiçosos – o tipo de gente que fica voltando à loja de conveniência para buscar outra lata de cerveja em vez de comprar o engradado com seis, ele explicou. O taxista disse que morava em Detroit há 35 anos e que tinha vindo do Iraque, mas que hoje em dia, “Detroit está pior do que Bagdá!”

E algumas estatísticas apoiam essa impressão dele. Atualmente, Bagdá tem taxas de desemprego e assassinato menores que Detroit.

Passamos pelo terreno onde ficava o antigo estádio dos Tigers, e onde fileiras de bares decadentes que contavam com os torcedores que o time trazia, ainda permanecem. Eu me hospedei no Corktown Inn, o tipo de lugar onde as pessoas alugam quartos por hora. Uma máquina de venda automática na recepção vendia calcinhas por dois dólares. Havia uma placa de uma corretora de imóveis no gramado da frente, mas não parecia haver muitos compradores ansiosos. Era como se o Arrebatamento tivesse acontecido ali, uma impressão reforçada pelo sinistro outdoor na esquina da Trumbull com Michigan, patrocinado por evangelistas, que perguntava “O que há depois da morte?”.

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Calcinhas e outros itens numa máquina automática no Corktown Inn. 

Se Detroit já estava morrendo por negligência e má conduta há décadas, agora a cidade está morrendo de sede.

Os cortes de água começaram quando o prefeito de emergência de Detroit, Kevyn Orr, apontado pelo governador Rick Snyder em 2012, declarou a falência da cidade no ano passado, uma tentativa de se livrar da dívida municipal de aproximadamente $18 bilhões.

Boa parte das obrigações da cidade é resultado de um empréstimo de 2005, conduzido pelo ex-prefeito Kwame Kilpatrick, condenado por acusações federais de corrupção no ano passado. Para cobrir o déficit orçamentário, Kwame emitiu US$3,7 bilhões em títulos com swaps de taxas de juros complicadas com nomes como UBS, Chase e Bank of America. Quando o mercado de ações despencou em 2008, as taxas de juro dispararam. Mais tarde, os passivos sobre o empréstimo pularam para US$15 bilhões, mais de quatro vezes o valor original do empréstimo. Para tentar sair dessa, o Departamento de Água e Esgoto da cidade emprestou US$300 milhões em 2012.

“Tudo faz sentido agora”, disse Vanessa Fluker, uma advogada de habitação que apesar de seus 60 e poucos anos, poderia facilmente se passar por uma boxeadora peso leve. Passeando comigo pelo prédio da Chase no centro da cidade, ela contou como os mesmos bancos que sugaram a cidade num vórtex de juros criaram uma crise na habitação por meio de empréstimos subprime. Esses empréstimos foram agrupados e vendidos para investidores com classificações de crédito triplo A fajutas. Quando os proprietários não conseguiam pagar a hipoteca e foram jogados no meio da rua, isso fez os mercados globais despencarem e fez os swaps de taxa de juros da cidade irem parar no teto.

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A automatização e a globalização já tinham encolhido gradualmente a força de trabalho das gigantes automotivas e a população de Detroit, que chegou a alcançar 1,85 milhões de pessoas nos anos 1950, agora conta com aproximadamente 700 mil pessoas. Mas a crise financeira de 2008 foi o golpe de nocaute para os empregadores básicos da Cidade dos Motores. A Chrysler e a General Motors (atualmente enterrada num processo judicial envolvendo chaves de ignição defeituosas, que causaram pelo menos 16 mortes) entraram em falência, e uma nova rodada de demissões se seguiu. O governo federal socorreu as empresas automotivas e os grande bancos, mas Detroit e seus cidadãos “economicamente abusados”, como Vanessa os chama, não ganharam colher de chá.

Em abril, o Bank of America e o UBS concordaram em aceitar US$85 milhões da cidade para cobrir obrigações adicionais de débito ligadas aos swaps, num acordo assinado pelo juiz responsável pela falência de Detroit. Mas, para cobrir os déficits orçamentários causados pela negociação com Wall Street, o Departamento de Água e Esgoto ainda está torcendo o braço dos moradores e dos negócios locais, que já estavam sentindo o aperto da Grande Recessão.

“Vou dizer o mesmo que milhares de pessoas de Detroit vão dizer”, me disse Valerie Blakely. “Meu marido perdeu o emprego na Lapeer Metal Stamping em 2008 e vem consertando carros aqui e ali desde então.” E além de tudo isso, Detroit está saindo de um inverno brutal, disse Valerie, o que fez “as contas dos serviços públicos literalmente quadruplicarem”. Ela estima que deve à cidade hoje cerca de mil dólares em pagamentos atrasados. E ela não é a única.

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“Hoje temos cerca de US$89 milhões lá fora em inadimplência”, Greg Eno, porta-voz do departamento de água, me disse por telefone. “Foi por isso que decidimos aumentar nossos esforços.” Em agosto passado, 2.752 contas foram fechadas; 3.487 em setembro. Em junho deste ano, o número de cortes subiu para 7.210. “Está funcionando”, disse Greg. “Estamos chamando a atenção das pessoas. Coletamos quase US$2 milhões desde fevereiro.”

Greg ficou na defensiva quando perguntei sobre a situação de Valerie e de milhares de outros residentes que estão no mesmo barco. Mas não dá para culpar o cara. Lá, dizer que você trabalha no departamento de água hoje em dia, dá quase no mesmo que assumir que molesta crianças.

No dia 7 de julho, segundo ele, o departamento ativou um programa para ajudar residentes de baixo orçamento a continuar conectados ao suprimento de água da cidade, um programa financiado por doações de milhares de dólares coletadas por meio de contribuições voluntárias de outros clientes. Por que o departamento não pausou a campanha de cortes até que pudesse garantir que os mais pobres pudessem pagar? Greg disse que o escritório de direitos humanos da cidade deveria estar administrando essa conta, mas que “eles fecharam por causa da falência”. O departamento teve que se esforçar para encontrar alguém que administrasse as doações.

Agora, o dinheiro está sendo gerenciado pela organização sem fins lucrativos THAW, a Heating and Warmth Fund. A representante da THAW, Jill Brunett, disse ao Detroit Free Press semana passada que as doações vão ajudar cerca de mil clientes, bem menos que os dez mil afetados pelos cortes. De acordo com Jill, a THAW está recebendo centenas de ligações por dia.

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A necessidade é grande, mas é a falta de pessoal que está causando todo o problema. Greg me disse que vazamentos em propriedades desocupadas formam uma porção “significativa” dos custos totais do departamento, apesar de não poder dar um número exato. O prefeito de emergência Kevyn Orr considerou publicamente privatizar o suprimento de água de Detroit, mas enquanto isso, o departamento de água ainda está tentando drenar fundos de uma piscina de clientes cada vez mais vazia.

“Não podemos esperar que 700 mil pessoas façam o que 2 milhões costumavam fazer”, disse Maureen Taylor, presidente da Organização Michigan Welfare Rights. “Quando todo mundo tinha um emprego fixo numa fábrica, todo mundo tinha dinheiro. Agora os empregos aqui pagam US$7, 8, 9 por hora.”

Conheci Maureen num protesto contra os cortes ao lado do Rio Detroit, perto do Centro Municipal no dia 18 de julho. Avó determinada, com um senso de humor rápido e irônico, Maureen estava indo pagar a fiança de nove ativistas presos por bloquear caminhões da Homrich Wrecking mais cedo naquele dia. Ela acusou os administradores municipais de serem “tricks”. “Trick é uma pessoa que se prostitui. Esses tricks estão vendendo Detroit.”

Aqueles que continuaram em Detroit estão enfrentando uma bela briga para conseguir sobreviver. A cidade se tornou um exemplo de tudo o que o capitalismo tem de errado. Desemprego, salários estagnados, o aumento no custo da água e um abismo cada vez maior entre ricos e pobres – problemas que o país inteiro vem enfrentando desde o início da Grande Recessão, mas que são mais visíveis em Detroit.

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Moradores de Detroit marcham contra os cortes de água. Mark Ruffalo, o Incrível Hulk, apareceu para dar seu apoio aos manifestantes. Ele está embaixo do cartaz que diz “Onde vocês esperam que a gente cague?”. 

Os ossos de dinossauro do passado industrial da cidade são pontilhados por exemplos de gentrificação. Greek Town, um dos poucos bairros de Detroit onde os postes de luz realmente acendem quando o sol se põe, está cheio de gente rindo como hienas sob as luzes brilhantes dos bares e cassinos. Todos esses lugares são braços do Comerica Park, o novo estádio do Tigers, construído nos anos 2000 pela família Ilitch, do império da pizza Little Cesaers. Christopher Ilitch, o CEO da empresa, tem alardeado planos de construir mais um estádio a pouca distância dali, dessa vez, para a franquia de hóquei Red Wings. Ele é o dono dos dois times, juntamente com o cassino MotorCity e diversas outras atrações que brilham no centro, enquanto o resto da cidade fica na escuridão.

Fundos públicos que totalizam US$284 milhões irão para a construção da nova casa de US$650 milhões do Red Wings, que já tem um estádio a alguns quarteirões de distância dali – o Joe Louis Arena, também propriedade dos Ilitch. E essa é uma situação na qual a família Ilitch só tem a ganhar, já que os US$284 milhões virão de um fundo administrado pela Autoridade de Desenvolvimento de Detroit, baseado em impostos coletados das propriedades do centro da cidade. Como a Ilitch Holdings já possui muitas dessas propriedades, eles estarão essencialmente reinvestindo em si mesmos quando pagarem os impostos.

Muita gente se pergunta por que uma cidade que mal consegue manter a água fluindo por seus canos e seus postes acesos ajudaria um barão imobiliário como Christopher Ilitch a construir uma nova arena, quando ele já tem outra perfeitamente boa ali mesmo. Outros esperam conseguir uma fatia do bolo.

“Se você sair pela porta de trás do meu bar e bater punheta no beco, você vai gozar no novo estádio que eles vão construir”, disse George Boukas, cujo bar na Cass Avenue fica bem ao lado de onde os Ilitch planejam erguer seu próximo empreendimento, que vai incluir uma série de construções auxiliares – restaurantes, apartamentos de luxo e cassinos. George planeja derrubar seu prédio, construído em 1858, para erguer um bar de esportes de dois andares. Ele continuou ali apesar do declínio da área, e agora está sentado numa mina de ouro. Mas a maioria não teve tanta sorte. Os Red Wings devem estrear seu novo estádio em 2017, mas muitos se perguntam quantos moradores de Detroit restarão para vê-los jogar.

George apontou para um prédio residencial de seis andares atrás de seu bar, me dizendo que ele estava ocupado apenas 18 meses atrás. Para mim, o lugar parecia abandonado há anos. “Pessoas com necessidades especiais, que raramente se aventuravam fora de casa, costumavam morar ali”, ele disse. “Alguns tiveram que deixar suas vidas inteiras dentro dessa porcaria.”

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Tradução: Marina Schnoor