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Religião e um Assassinato sem Culpado em Iowa

Qual o real efeito dos sermões de fanáticos que colocam anjos e demônios como criaturas reais que habitam nosso cotidiano?

Tom Barlas Jr. Foto cortesia da polícia do Condado de Cerro Gordo. 

Na noite de 18 de julho de 2013, Kathy Barlas voltou para casa em Mason City, Iowa, e encontrou seu filho de 43 anos esperando na garagem, de cueca e pingando sangue. “Mãe, matei Satanás”, disse Tom Barlas Jr. Ele queria dizer que tinha machucado o cachorro? “Não, mãe, matei Satanás”, ele repetiu. Kathy entrou em casa e foi a seu quarto, onde encontrou o marido, Tom Barlas, sangrando com vários ferimentos a faca. Ele já estava morto.

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Quando voltou à garagem, seu filho tinha sumido. Kathy disse ao atendente do 911 que ele poderia ter ido à Igreja Ortodoxa Grega da Transfiguração. A polícia encontrou Barlas Jr., que resistiu à prisão, repetindo “Deus e Jesus Cristo” sem parar. Os policiais usaram tasers para dominá-lo e finalmente o prenderam pelo assassinato em primeiro grau do pai.

Na quinta-feira passada, pouco mais de um ano depois do crime, dirigi até Mason City – que, juntamente com a vizinha Clear Lake (a cidade que matou Buddy Holly), continua sendo minha cidade natal. Eu tinha acabado de chegar de Denver e estava prestes a começar minha semana de férias, quando ouvi no rádio a notícia de que Tom Barlas Jr. tinha sido inocentado do assassinato de seu pai, já que estava sofrendo de um “surto psicótico” que o impedia de entender as consequências de seus atos.

Era uma tarde úmida e cinzenta, fria demais para o mês de agosto.

Tentando sintonizar o rádio, acabei caindo num sermão evangélico, na voz do que parecia ser um leiloeiro. Eu quase podia ver as gotas de suor se evaporando pelos alto-falantes enquanto ele falava com a urgência de quem estava sendo queimado vivo. “Estamos presos numa GUERRA ESPIRITUAL!”, ele gritava no instante em que eu dirigia por plantações de milho infinitas. “As forças das trevas estão à nossa volta o tempo todo, querendo nos tentar, nos enganar, nos prender nos braços de Satanás. Mas a infantaria do Senhor estará ao seu redor nesses momentos. Você só precisa estender a mão!”

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Colocando essas duas coisas juntas, não pude deixar de pensar: se essa é uma comunidade de cristãos que acredita na Bíblia (como eu sei que é), que acredita que “O Céu É Real” e que demônios andam entre nós o tempo todo, será que eles não teriam pelo menos considerado a possibilidade de que Tom Barlas, o pai, estava possuído por Satanás, e que seu filho tenha sacrificado o velho para salvar heroicamente a humanidade do Príncipe das Trevas?

Como alguém que morou na área por 22 anos, estou ultrafamiliarizado com o uso que os pregadores fazem do termo “guerra espiritual”. Pergunte a qualquer refugiado do movimento evangélico, e a pessoa vai te contar como foi crescer acreditando que anjos e demônios estão literalmente entre nós, mesmo habitando um reino espiritual que não podemos ver. Normalmente, asseguramos às crianças que seus armários não abrigam nenhum monstro e a sombra na parede do quarto não é uma bruxa. Mas nós, crianças das Cruzadas de Billy Graham, não só somos estimuladas a acreditar que monstros são reais, mas recebemos instruções de como perceber que o Diabo está tentando (inevitavelmente) se infiltrar nos nossos pensamentos.

“Satanás se disfarça de anjo de luz”, li em Coríntios quando era criança, me convencendo de que não se pode confiar nem em anjos. Muitos dos milagres de Jesus nos evangelhos foram exorcismos, e Efésios 6:12 diz: “Nossa luta não é de carne e sangue, mas contra… forças espirituais do mal nas regiões celestiais”.

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Como um campo de batalha cobiçado de qualquer luta política, Iowa definitivamente balança entre os dois lados. Mesmo sendo o único Estado do Meio-Oeste americano a legalizar o casamento gay, aqui também é o umbigo do Cinturão da Bíblia, com afiliações religiosas acima da média. Em 1957, Meredith Wilson, também de Mason City, escreveu um musical sobre a cidade chamado The Music Man. Essa é a história de um vigarista que vende um produto invisível; quando pego, é defendido por uma mulher dizendo que tudo podia ser mentira, mas que isso deixou todo mundo feliz e otimista sobre o futuro. Em outras palavras, quem se importa se isso não é real?

Apesar de não ter nenhuma evidência histórica para apoiar isso, sempre tive a teoria de que The Music Man era um longo comentário sobre religião.

Não são poucas as minhas memórias sombrias associadas ao Estado e à sua comunidade cristã. Então me pareceu estranho que um tribunal da minha cidade tenha considerado Tom Barlas Jr. inocente mesmo mediante o fato universalmente aceito de que ele cometeu o crime, pelo menos fisicamente. Esse tipo de coisa é rara em Iowa, assim como no resto da nação. De acordo com a American Academy of Psychiatry, menos de 1% de todos os julgamentos acaba com o réu inocentado num veredito de insanidade.

Mas com Barlas o processo para estabelecer a insanidade foi extremamente fácil. Não houve nem a presença de um júri, mas apenas um “julgamento por minutas”, em que uma coleção de relatórios e testemunhos foi apresentada ao juiz, que decidiu o que fazer baseado nessas informações.

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“Assim que o psiquiatra da acusação concordou com as condições do nosso psiquiatra sobre Barlas Jr., eles não podiam razoavelmente continuar a processá-lo por assassinato em primeiro grau”, me explicou o advogado, Aaron Hamrock, por telefone. “Na época, Barlas Jr. não podia distinguir entre certo e errado. Na mente dele, ele achou que estava matando Satanás.”

Louco, não? Achar que um demônio etéreo pode habitar o corpo de uma pessoa? Quem pode acreditar numa coisa dessas?

Mas o comportamento de Barlas Jr. não está em desacordo com ações de celebrados personagens da Bíblia. Em Gênesis, Abraão ouve a voz de Deus o instruindo a matar o próprio filho (spoiler: no último minuto, Deus enfia a cabeça entre as nuvens e diz: “Brincadeirinha”). Mais tarde, o neto de Abraão, Jacó, luta fisicamente com um anjo.

Quando o profeta João estava viajando na ilha de Patmos, suas visões o fizeram escrever o seguinte trecho em Apocalipse 19:18:

“Para que coma a carne dos reis, e a carne dos comandantes, e a carne dos homens poderosos, e a carne dos cavalos, e dos que sobre eles se assentam, e a carne de todos os homens, livres e escravos, pequenos e grandes. E vi a besta, e os reis na Terra, e seus exércitos reunidos, para guerrear contra Ele que se assenta no cavalo e contra Seu exército.”

Certamente há uma análise mais complexa de Barlas nos relatórios psiquiátricos apresentados ao juiz num envelope selado, possivelmente algo sobre esquizofrenia ou epilepsia do lobo temporal (que se acredita ser a causa das visões de Joana d'Arc), levando a alucinações visuais e auditivas de natureza religiosa. Mas os relatórios médicos particulares não estão disponíveis ao público em julgamentos como esse.

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A única coisa que as pessoas de Mason City sabem é que Tom Barlas Jr. era um bem-sucedido dono de restaurante de 43 anos que destruiu seu pai em nome da guerra espiritual, e que ele não é oficialmente responsável pelo assassinato – porque qualquer pessoa a acreditar que o diabo pode possuir o corpo de uma pessoa é claramente insana. E pelo que ouvi até agora, os moradores de Iowa não têm nenhuma objeção quanto a isso.

“Ele tem recebido muito apoio”, disse Hamrock sobre seu cliente. “Tom e seu pai eram melhores amigos. Eles jogavam cartas juntos, trabalhavam no restaurante juntos. A família deles vive aqui há muito tempo e é conhecida na área de Mason City.”

Hamrock explicou que seria uma situação diferente se houvesse uma família ou um grupo exigindo justiça pelo assassinato. Se fosse esse o caso, Barlas Jr. teria ido a julgamento por seu crime. Mas, aqui, as famílias da vítima e do acusado estão do mesmo lado – e, de acordo com o advogado do réu, eles decidiram apoiar a defesa.

“O resultado desse caso foi um grande passo para as pessoas que sofrem de doenças mentais nos EUA”, sentenciou. “O Estado e o governo precisam ajudar essas pessoas e evitar que coisas assim aconteçam no futuro.”

Não discordo do advogado nisso. O sistema penitenciário americano é uma vergonha para o mundo, em parte por causa de uma justiça que trata prisões como instalações de saúde mental – com poucas doenças diagnosticadas e pouco ou nenhum tratamento fornecido. Ainda de acordo com a American Academy of Psychiatry, mais de 90% dos réus que declaram insanidade têm uma doença mental diagnosticada, mas só 25% conseguem ajuda.

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Depois de retornar a Denver, meu primeiro passo foi ligar para o repórter criminal Alan Prendergast, que dá aulas de jornalismo na Colorado College e vem relatando os dilemas éticos envolvendo doenças mentais e o sistema judiciário desde o meio dos anos 90 (e que também era meu colega no semanário alternativo Westword em Denver). Sem entender por que mais réus não recebem o mesmo tratamento – já que isso funcionou tão perfeitamente para Barlas Jr., mas nossas cadeias continuam lotadas de loucos –, perguntei sobre a definição legal de insanidade.

“Há todo tipo de pessoa que pode ser observada como psicótica ou demente, mas elas não entram necessariamente na definição legal de insanidade”, explicou Prendergast. Essa definição é geralmente apresentada nas frases “não distinguir entre o certo e o errado” e “incapaz de distinguir entre realidade e fantasia”, uma definição que fica confusa quando colocada num contexto de religião e assassinato.

“Claro, pessoas em delírio, alguém que mata os filhos e diz que foi Deus quem mandou, têm uma chance de alegar insanidade”, ele continuou. “Em estranhas tragédias familiares, onde há um histórico de comportamento bizarro, afirmações de possessão demoníaca ou alguém que pensa que seus filhos são Satanás, é mais difícil para a acusação estabelecer se o réu estava num estado mental culpável.”

Em última instância, devemos tirar algum conforto do veredito de Tom Barlas Jr. Uma tragédia ocorreu, mas o tribunal tomou uma decisão proativa ao tentar ajudar uma pessoa doente, evitando uma perseguição cega da justiça. Tecnicamente, ele ainda será preso na Oakdale Prison, mas estará na ala psiquiátrica, onde será tratado até que não seja mais considerado um perigo para si ou para os outros. E então ele poderá ganhar a liberdade.

Ainda assim, não consigo deixar de ficar frustrado com esse veredito. Os EUA são um país constantemente envolvido em batalhas sobre se é certo ou não colocar um monumento dos Dez Mandamentos (uma coleção de leis que se referem a uma nação cristã) em gramados de tribunais e, mesmo assim, muitos de nós nos recusamos a considerar, mesmo que por um instante, a perspectiva de que a guerra espiritual em que acreditamos tão profundamente possa vazar para o reino físico.

Há muito tempo eu “deixei as coisas de menino”, como acreditar em anjos e demônios, e gostaria que os líderes espirituais da nossa nação tomassem uma decisão: parem de atormentar crianças e doentes mentais com suas histórias sobre um plano sobrenatural de duendes e gnomos, ou comecem a defender aqueles que levam os ensinamentos bíblicos a suas verdadeiras conclusões. Se você acredita que a Bíblia é literalmente a Palavra de Deus, então deve pelo menos aceitar a possibilidade de Charles Manson realmente ser Jesus Cristo, de que os membros da Heaven's Gate realmente alcançaram a espaçonave atrás do cometa Hale-Boop e de que Tom Barlas Jr. seja um herói que conseguiu matar Satanás tirando a vida do próprio pai.

Josiah Hesse é um jornalista que vive em Denver, Colorado, onde cobre música, comédia, maconha e políticas locais. Siga-o no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor