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Do Cultivo à Prisão: As Histórias Escabrosas dos Growers Brasileiros

Com os avanços nos EUA, a regulamentação dos múltiplos usos da maconha a nível mundial é uma realidade num futuro breve. Será o Brasil a vanguarda do atraso?

"Se você sobe o morro pra buscar e leva porrada, se liga, sangue-bom, tem alguma coisa errada." Com esses versos, o Planet Hemp abria o clássico noventista Usuário. A música se chamava "Não Compre, Plante!". O resto da história todo mundo conhece: perseguição, prisão, liberdade, sucesso.

Vinte anos depois do slogan ser lançado no ar, ele ainda reverbera. O rapper Cert, da ConeCrew, grupo de rap carioca assumidamente influenciado pelo Planet, foi preso justamente por plantar pra não comprar. Na quinta-feira passada, ele teve o pedido de relaxamento de prisão e liberdade provisória negado. O rapper foi transferido para o presídio de Bangu 10, onde optou por ficar na ala religiosa, isolado de facções criminosas. Não é um caso isolado.

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Caso o art. 28º, § 1º (cultivo para uso próprio), da lei de drogas fosse respeitado, ninguém deveria ir preso por simplesmente plantar maconha. Ainda assim, mesmo quando acusados de tráfico, os cultivadores deveriam ser beneficiados pela decisão de 2012 do STF que torna inconstitucional o art .44 da mesma lei garantindo a liberdade provisória para pequenos traficantes de menor potencial ofensivo. Mas, na prática, não é o que acontece: o sistema judiciário brasileiro é lento e cruel; assim, pessoas aguardam encarceradas semanas ou meses até terem a chance de provar que eram reles cultivadores de flores.

Militantes do Growroom na Marcha da Maconha de 2014 no Rio de Janeiro.

Plantar maconha não é difícil – tampouco caro. Mas a proibição complica tudo, e é muito arriscado cultivar em exterior, pois denúncias de vizinhos, transeuntes ou desafetos são a maior causa de encarceramentos por se plantar maconha. Então, na maioria das vezes, os cultivadores têm de literalmente entrar no armário, utilizando lâmpadas e timers para simular a ação do sol sobre as plantinhas. Desde 2002, vários desses "fazendeiros de apartamento" se organizam no fórum online Growroom, em que, além de informações sobre técnicas de cultivo, discutem legislação e, infelizmente, colecionam casos lamentáveis de cultivadores presos. Vamos a alguns deles.

O candango Gabriel já fumava desde 2002, quando tinha 13 anos, mas só começou a ensaiar seus cultivos três anos depois, após ter conhecido o Growroom, e adotou o nickname de Sativa Lover. A princípio, plantava apenas para conseguir alguma coisa de qualidade para fumar, mas, aos poucos, o cultivo foi se tornando paixão. De 2009 a 2011, ele praticamente se dedicou a isso, estudando o assunto de 5h a 6h por dia. "Eu não só cultivava, mas buscava também fazer melhoramentos genéticos. Mas esses melhoramentos não vêm de nenhum processo químico pra aumentar a potência da droga em laboratório, como dizem. É a simples arte de observar. Nada muito diferente do que é feito em um canil."

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Flores de maconha recém-colhidas.

Sativa Lover foi preso no dia 4 de junho de 2011, um dia após participar da "Marcha da Pamonha", nome dado à manifestação que ocorreu em Brasília no lugar da Marcha da Maconha, que foi proibida em cima da hora. Na época, SL ele cultivava as variedades AK-47, Blackberry Kush, Peyote Purple e Cinderella 99 em substrato inerte fertirrigado. Ele tinha um growbox com duas lâmpadas de 400 watts para o período vegetativo e um armário com 260 watts, onde eram mantidas matrizes e clones. A floração era feita em outdoor. Embora possa impressionar leigos, a configuração de sativa era apenas o suficiente para manter sua autossuficiência herbífuma, com direito a variedades de fumo. No entanto, a polícia e a mídia não economizaram palavras como "geneticamente modificada" e "maconha aditivada".

Apenas a flor (ou "bud") da canábis é fumada. O caule pode ser utilizado para confecção de fibras e outros materiais; das folhas pequenas próximas às flores pode-se extrair haxixe, enquanto as flores grandes, devido à quantidade pequena de canabinóides e normamente, são descartadas.

Gabriel foi acusado segundo o art. 33 com dois agravantes: o parágrafo 1º I e o III com 35. Pois, segundo a promotoria, ele e sua mãe estavam associados para o tráfico. Para livrar a mãe da prisão, ele acabou assumindo e assinando a confissão do crime segundo o art. 33. A promotora queria condená-lo à pena máxima: 15 anos. Mas o juiz acabou lhe dando sete anos em regime fechado. Perguntei-lhe como foi a recepção no cárcere, uma vez que, injustamente acusado de tráfico, ele não tinha nenhuma conexão com o crime organizado. "Fui muito bem recebido, diga-se de passagem. Não por parte dos agentes, é óbvio. Mas como quase todo mundo na cadeia fuma maconha, já viu, né? Virei atração. Cada cela nova [em] que eu chegava era um festival de perguntas – e, claro, muita fumaça." Depois de cumprir dois anos no fechado no presídio PDF I e mais um ano no semiaberto no CPP, hoje Sativa se encontra em prisão domiciliar. "O próximo passo é a liberdade condicional. No fim de 2016, termino de cumprir minha sentença, mas totalmente livre só serei no dia em que puder fazer o que eu amo, que é cultivar."

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De uma maneira ou de outra, Sativa Lover já está do lado de fora, mas outros membros do fórum presos por plantar não têm a mesma sorte. Rafael, conhecido como Rasta, é cantor do grupo Ganjah Team Revolucionário. Ele já havia cumprido pena de seis meses após ter sido preso comprando maconha de um traficante que já estava grampeado e monitorado pela polícia. Por conta desse episódio, ele começou a cultivar num sítio na região de Caçapava, Vale do Paraíba. No dia 15/11/2012, após denúncia, a polícia invadiu o sítio, que estava vazio, e apreendeu 58 plantas. Através de uma correspondência encontrada no local, chegaram ao Rafael, que foi condenado a sete anos e dois meses. E ele continua preso.

Deputado Federal Jean Wyllys.

Enquanto casos de prisões injustas não param de pipocar, resolvi conversar com o Deputado Federal Jean Wyllys, que protocolou há quase um ano um projeto que regulamenta o cultivo e o comércio da maconha. Com o final de seu mandato, o projeto foi automaticamente arquivado, mas, como ele foi reeleito, já solicitou o desarquivamento, que também é automático. "Agora, o projeto deve ser debatido nas comissões, e eu pretendo, ao longo dessa legislatura, convocar audiências públicas e continuar a discussão dentro e fora do parlamento. Com uma Câmara dominada pelos conservadores, é muito importante que a sociedade civil se mobilize para garantir que esse tipo de temas seja tratado com seriedade." O projeto de lei legaliza, com determinadas limitações de quantidade, o cultivo caseiro para consumo pessoal e habilita a formação e o registro dos clubes de cultivadores para consumo coletivo. Ele também habilita a comercialização via mercado em condições semelhantes e com limitações similares às que existem no caso do álcool e do tabaco. Durante mais de um mês, Jean e sua equipe estudaram a lei uruguaia, as emendas de Colorado e Washington, um projeto de lei de deputadas argentinas, uma sentença da Corte Suprema do mesmo país e os modelos de alguns países europeus, como Espanha, Portugal e Holanda. Também estudaram os projetos elaborados pela rede Pense Livre, pelo Growroom e pelo pesquisador André Kiepper, que abordavam a questão de diferentes maneiras. "Tudo isso serviu como fonte. Aproveitamos muitas contribuições de todos eles, que agradecemos, mas meu projeto também tem muitos aspectos originais, que não estavam em nenhum desses lugares. São mais de 60 páginas: é um projeto bem amplo que trata da legalização da produção, [da] comercialização e [do] consumo da maconha e [de] seus produtos e derivados; da descriminalização do consumo de qualquer outra droga ilícita; da mudança dos critérios para definir quais drogas são lícitas ou ilícitas (abrindo a porta para a legalização de outras, que hoje são ilegais); da anistia para aqueles que estão presos pela comercialização de maconha sem ter cometido qualquer crime violento, e, em determinadas circunstâncias, de outras drogas ilícitas; das políticas de redução de danos; das políticas de assistência aos dependentes químicos que solicitarem tratamento; da proibição da internação compulsória; da criação de um conselho de políticas de drogas; do investimento em pesquisa sobre drogas e políticas públicas. Ou seja, é um projeto que trata de muitos aspectos da política de drogas para mudá-la. Porque a política atual é um fracasso e é absolutamente imoral."

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Obviamente, a aprovação do projeto não será fácil. "Os opositores a esse projeto são os mesmos que se opõem aos direitos das mulheres, dos homossexuais, dos negros e [das] negras, do povo de santo, dos povos indígenas. São os mesmos que querem já não reduzir, mas acabar com a idade de maioridade penal, para poder encarcerar até crianças. São os que, nesta semana, aprovaram regalias para pagar o apoio de algumas bancadas à eleição de Eduardo Cunha, como as passagens aéreas para os/as cônjuges dos/as parlamentares. São os deputados das bancadas da bala, da bíblia e da bola (esse é o verdadeiro BBB do Congresso!), que trabalham em defesa dos próprios interesses e das empreiteiras, dos bancos e das corporações, que pagam suas campanhas. São os reacionários e fascistas que querem uma legislação autoritária e excludente, um país sem direitos para muita gente e com mais privilégios para uma minoria. E, para esconder esses desvios morais, fazem propaganda de uma falsa moral hipócrita, que condena 'homossexuais, abortistas e maconheiros', como Eduardo Cunha falou. É a velha política que devemos enfrentar."

Outro caso emblemático, que se arrasta desde 2012, é o do ambientalista, diretor de TV e líder espiritual Ras Geraldinho, vítima de uma conspiração da Prefeitura de Americana, interior de São Paulo. Após várias incursões à Primeira Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil, a guarda municipal finalmente conseguiu, em agosto de 2012, encarcerá-lo sob a acusação de tráfico de drogas após encontrar pés de maconha nos jardins da igreja. Ainda que o uso religioso seja previsto na lei de drogas, Ras foi condenado a 14 anos e 20 dias no regime fechado, pena maior que a de Fernandinho Beira-Mar, o traficante mais notório do Brasil. Numa sequência de injustiças, sua companheira e outros frequentadores da igreja, que testemunharam em seu favor no julgamento, estão respondendo processo por associação para o tráfico.

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Como se não bastassem as recentes prisões de cultivadores vindo à tona em todo o país, o centro-oeste paulista vive uma quixotesca cruzada particular contra os maconheiros. Em janeiro, a cidade de Marília, com pouco mais de 200 mil habitantes, registrou três aberrações jurídicas. Primeiro, duas meninas de 16 anos foram detidas por apologia ao crime de tráfico de drogas por vestirem camisetas com folhas de maconha; como eram menores de idade, foram liberadas em seguida. No dia seguinte, um rapaz, que havia sido intimado a depor na delegacia sobre um roubo, foi preso por estar usando um boné com uma folha de maconha e o código "4:20". Como ele já tinha passagens na polícia, acabou ficando agarrado. Ainda na mesma semana, um lojista foi detido por vender roupas estampadas com a folha no camelódromo de Marília: foram apreendidas 35 camisetas, sete calças e uma bermuda . Um mês depois, mais especificamente ontem, houve mais um caso a 100km dali, na cidade de Ourinhos, com a população beirando os 100 mil habitantes. Dessa vez, um adolescente foi detido por dirigir uma motocicleta usando uma camiseta com a folha. Ele foi liberado, mas a camiseta e a moto foram apreendidas, claro.

Para Jean Wyllys, "essa história de alguém ser preso por ter um boné ou uma camisa com o desenho de uma folha de maconha é absolutamente ilegal. Meu projeto não fala nisso, porque a lei atual não diz nada a respeito. Não há crime, são prisões arbitrárias e sem fundamento legal". A situação ainda fica mais surreal se analisarmos o voto do Ministro do STF Celso de Melo na ADPF187, aquela que julgou constitucional a Marcha da Maconha afim de que não se façam mais Marchas da Pamonha. Em seu voto, ele é bem claro: "Defender a descriminalização de certas condutas previstas em lei como crime não é fazer apologia de fato criminoso ou de autor de crime. Igualmente, não configura o crime deste art. 287 a conduta daquele que usa camiseta com a estampa da folha da maconha, por ser inócua a caracterizar o crime e por estar abrangida na garantia constitucional da liberdade de manifestação do pensamento".

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Delegado Orlando Zaccone, membro fundador da filial brasileira da ONG americana LEAP (Law Enforcement Against Prohibition).

Mas ignorar ou desconhecer leis já é de praxe. No entanto, quando tais prisões arbitrárias são homologadas por um delegado, um sujeito que obrigatoriamente estudou as leis para cumprir seu cargo, a coisa toda fica mais complicada. Questionei isso com o Dr. Orlando Zaccone, delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro e membro fundador da LEAP- Brasil (Agentes da Lei contra a Proibição). "O problema é que a grande maioria dos delegados de polícia não cumpre a sua missão de controlar juridicamente os atos de polícia. O que surpreende não é a condução abusiva de pessoas que usam uma camisa com o desenho de uma folha de maconha ou com dizeres a favor da legalização. Afinal, a polícia trabalha o tempo todo decidindo através do princípio da autoridade. Quem deve relaxar essas prisões ilegais é o delegado. Delegado de polícia que tem medo de soltar tem de fazer concurso para carcereiro."

Uma estufa para cultivo de canábis.

Os músicos Rafael Rasta e Cert, o ativista Cabelo e o líder espiritual Ras Geraldinho são apenas a ponta do iceberg duma política de drogas fracassada. Ainda segundo Jean Wyllys, "as principais vítimas são os jovens pobres das periferias e das favelas, em sua grande maioria negros, que trabalham no varejo de drogas ilícitas, porque é sua única fonte de renda, e que são mortos, assassinados a sangue frio pelas guerras de facções ou pelas polícias, ou são encarcerados e têm suas vidas marcadas para sempre pelo aparelho penal". Assim como Jean, políticos do mundo inteiro dizem que essa política perversa tem de acabar; e, hoje, temos leis avançadas não só na Espanha e Holanda, mas também aqui do lado, no Uruguai, e em cada vez mais Estados norte-americanos.

Não é à toa que, em sua primeira reunião de organização, ficou decidido que a faixa que vai puxar a Marcha da Maconha do Rio de Janeiro de 2015 será "Liberdade aos cultivadores e a todas as vítimas da guerra às drogas". A marcha está marcada para 9 de maio, e para iniciar as atividades do movimento foi marcado para a segunda-feira dia 9 um ato em solidariedade aos cultivadores, que contará com uma "queima de fragrantes", aonde as camisetas da Marcha do ano passado serão liquidadas a preços promocionais.

Com os avanços nos EUA, a regulamentação dos múltiplos usos da maconha a nível mundial será uma realidade num futuro breve. Fica a dúvida: qual será a do Brasil? A vanguarda do atraso?