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Revisitando 'Black Macho', o Texto Feminista Negro Essencial de Michele Wallace

O texto mostrou como o patriarcado negro ignorou as mulheres negras desde o movimento de direitos civis e é uma influência indispensável até hoje para jovens feministas e militantes.

Michele Wallace na capa da revista Ms., 1979. Todas as fotos cortesia de Michele Wallace.

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Em 1979, o rosto de Michele Wallace foi estampado na capa da Ms., a publicação feminista histórica de Gloria Steinem. A manchete em negrito, posicionada sobre o afro de Wallace, na época com 27 anos, aclamava a primeira publicação feminista dela, Black Macho and the Myth of the Superwoman , como "o livro que vai moldar os anos 80".

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Mais de 35 anos depois da declaração bombástica da revista, vi Wallace pela primeira vez no Malcolm X & Betty Shabazz Memorial and Educational Center, em Nova York. Eu estava lá para a comemoração do relançamento do texto seminal pela Verso, assim como as 50 e poucas outras mulheres negras, um punhado de homens negros e exatamente dois caras brancos. Todas as garotas negras na sala usavam o cabelo natural em efeito total, e, feliz, me vi imersa naquele mar de cachos. Wallace tinha nos convocado ali pela força da crítica duradoura de Black Macho and the Myth of the Superwoman bem depois dos anos 80. Muito do que a autora eviscerou no livro – o tropo de mulher negra forte e/ou atrevida que negava a própria narrativa dela, a invisibilidade da mulher negra nos movimentos dominados por homens negros, a invisibilidade da mulher negra no geral – só começou a ceder agora, em 2015.

Como uma representação física da ponte entre as gerações presentes, Michele Wallace, agora com 63 anos, subiu ao palco com a editora sênior da Ebony, Jamilah Lemieux, que começou a hashtag #BlackPowerIsForBlackMen. O momento mais marcante da noite, na minha cabeça, estava logo ali: quando Wallace subiu ao palco usando um macacão colado, sentou num banco em frente ao microfone e abriu as pernas (bastante) para manter o equilíbrio. Fiquei impressionada com a confiança dela. Logo ficou claro que ela herdou isso da mãe, a artista Faith Ringgold, 84 anos, que se levantou de sua cadeira no público no meio da seção de Perguntas e Respostas, falou sobre o próprio livro de memórias e deu um discurso de improviso para fechar a noite.

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Wallace arrasando em 1979.

Black Macho foi o texto que tocou pela primeira vez no assunto do patriarcado negro. Isso deu nome ao fardo nunca discutido que as mulheres negras vinham suportando nos EUA desde o movimento pelos direitos civis, que não cumpriu sua promessa de liberar as mulheres negras depois que os homens negros retificaram sua masculinidade (" Sou Um Homem!") aos olhos da sociedade branca. Na primeira metade do livro, Wallace argumenta que a retórica do "macho negro" do movimento dos direitos civis serviu para marginalizar ainda mais as mulheres negras, posicionando-a de forma "independente" como um obstáculo para a masculinidade do homem negro. A segunda parte é uma crítica à imagem da feminilidade negra isenta de fraqueza e dor – a mulher negra como uma supermulher, com uma força incomum que supera a das mulheres brancas e até a dos homens. Não é necessariamente uma leitura divertida, mas é essencial e, infelizmente, relevante.

A publicação do livro em 1978 causou uma tempestade: muitos acadêmicos negros se recusaram a acreditar "que a significância das mulheres negras, como uma categoria distinta, é rotineiramente apagada pela maneira como o Movimento das Mulheres e o Movimento Negro escolhem definir seus objetivos e relembrar suas histórias". Um ano depois de publicação de Black Macho, um dos jornais acadêmicos afro-americanos mais antigos dos EUA, The Black Scholar, publicou a edição "Black Sexism Debate". Nele, o crítico Robert Staples escreveu " uma respostas às feministas furiosas ", negando a existência do sexismo para mulheres negras. Comecei minha entrevista por telefone com Wallace com a mesma pergunta que muitos de seus críticos, que descartavam seu trabalho como "divisivo", faziam nos anos 70 e 80. Com um suspiro cansado, substituí "o movimento dos direitos civis" por "Black Lives Matter": "Falar sobre o patriarcado negro, ou misogynoir, distrai da questão 'maior' de se lutar contra a supremacia branca?".

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A resposta ainda é "claro que não". Agora professora do City College of New York, Wallace tenta deixar isso claro para seus alunos sempre que outro homem negro se torna notícia da pior maneira possível.

"Há sempre a preocupação sobre brutalidade policial e homens negros sendo assassinados ou espancados pela polícia", ela me explica. "Mas você tem de deixar claro que essas mesmas coisas acontecem com mulheres. As mulheres também são espancadas pela polícia, elas também acabam presas. Tento falar sobre isso como meus alunos."

"A maioria das pessoas mortas em Charleston eram mulheres", ela continua. "Sinto uma certa hesitação em pular na cara de alguém que quer interpretar isso como um problema predominantemente masculino. Sei que as pessoas estão tristes e com raiva. Elas têm direito de estar por causa das coisas que aconteceram com esses homens, mas não demonstram isso com o que aconteceu com mulheres." No momento, por exemplo, ativistas estão tuitando para manter visível o nome de

Sandra Bland, a texana presa por causa de uma infração simples de trânsito e depois encontrada morta em sua cela em circunstâncias misteriosas. Wallace com Cornel West, 1979. Eles namoraram!

Mesmo antes que Black Macho fosse publicado, já havia controvérsia. Com uma mulher negra publicando simultaneamente um texto pessoal e acadêmico no final da segunda onda do feminismo, Wallace estava envolvida na luta contra o sexismo e o racismo implícitos nesse movimento. Seus editores na Dial Press (que também publicou The Fire Next Time, de James Baldwin) hesitavam em chamar o livro de feminista.

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"Havia esse pensamento de que o feminismo não era viável", lembra Wallace sobre os meses anteriores ao lançamento de Black Macho. "Quando chegou a hora de promover o livro, meus editores da Dial Press disseram que – apesar de o conteúdo do livro ser feminista – isso, que eu, não deveria ser descrita como feminista, porque isso condenaria o livro financeiramente."

O que poderia ser pior que uma feminista? Uma feminista negra, claro. "Meus editores insistiram que o feminismo estava morto, que não havia leitores negros e que o leitor ideal é a senhora idosa de Pasadena. Eles não estavam dispostos a admitir que havia um público leitor negro ou que poderia haver um. Eles achavam que ninguém compraria o livro se eu fosse descrita como uma feminista negra. Tive de insistir nisso."

Wallace e West numa festa em Reno, Nevada, 1979.

Os editores de Wallace também a aconselharam a encobrir as anedotas menos "respeitáveis". Na versão original de Black Macho, a autora mantém seu status como mulher negra de classe média, que frequentou uma escola particular no Harlem e era filha de uma artista – ela não mencionava o tempo que passou num abrigo juvenil e o fato de que seu pai, um músico, morreu de overdose, não num acidente de carro. Na introdução atualizada do livro de 1990, "Como eu via isso na época e como vejo isso agora", Wallace escreve que seus editores a "alertaram" de que era "arriscado" contar essas histórias e que ela cedeu a esse pedido. Quando lhe pergunto sobre o caso, ela fala com um tom apaixonado sobre ter sido injustiçada, sobre ter sido limitada pela ameaça de vergonha. Apesar da confiança que Wallace mostrou no evento da Verso, essa palavra de oito letras foi central no resto da nossa entrevista. Mas, quando essa autora diz isso, é mais como se ela gritasse: VERGONHA.

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"O fato de eu ter ido ao México, me juntado a uma comuna, não ter voltado para casa e acabado num abrigo juvenil era MUITO VERGONHOSO", ela frisa. "Meu agente e várias outras pessoas disseram: 'Você pode contar essa história depois, quando tiver mais sucesso. Você não pode se dar ao luxo de contar isso agora'. Isso retoma a VERGONHA. Vergonha é uma emoção poderosa e amiga do patriarcado."

"Lá estava eu, com 27 anos, formada na faculdade, ensinando numa faculdade. Eu trabalhava na Newsweek – quem pensaria que isso me tocaria? Havia uma discussão entre as mulheres à minha volta, quando escrevi o livro, de que não era seguro liberar esse tipo de informação sobre mim. Isso iria me condenar e me seguir até o final dos tempos. O sentimento era: 'Coloque uma transgressão no livro – e está tudo acabado'."

No mesmo livro em que Wallace argumenta o direito a suas falhas, isso lhe foi negado. Aponto a ironia disso ("Hum… parece que essa é quase a tese do Mito da Supermulher Negra"), e rimos tristemente. Ficou claro que o grito de guerra do feminismo branco ("O pessoal é político") não se aplicava às mulheres negras da época, mas Wallace continua uma otimista. "Agora, há muitas jovens feministas negras desafiando [a política da respeitabilidade]", comenta Wallace, citando Mikki Kendal, que criou a hashtag #SolidarityIsForWhiteWomen e inspirou uma avalanche de artigos de opinião sobre a inclusão do feminismo digital. Ela também mencionou Shonda Rhimes e sua missão de colocar mulheres negras multifacetadas na tela. "Espero que o resultado disso seja que mais mulheres negras sejam capazes de transgredir as fronteiras, apontando isso e chamando isso pelo nome", ela continua. "Temos de falar sobre nossa própria vergonha. A questão é que a vergonha não consegue sobreviver na luz. Ela cresce nos cantos escuros. Quando você joga luz sobre isso, ela parece muito menor."

Gabby Bess é repórter da redação do Broadly. Siga-a no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor