Documentos da década de 1980 ligam Romero Jucá à maior maldição dos índios brasileiros

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Documentos da década de 1980 ligam Romero Jucá à maior maldição dos índios brasileiros

A VICE conseguiu quatro contratos — entre agosto e outubro de 1987 — em que Jucá autoriza oficialmente o desmatamento de 86.322 metros cúbicos de árvores em terras indígenas.

Senador Romero Jucá. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O pernambucano Romero Jucá, do PMDB, está em seu terceiro mandato como senador por Roraima, estado do qual já foi governador. Dia 12 de maio deste ano foi nomeado como ministro do planejamento do Brasil, cargo que durou apenas 11 dias. Jucá renunciou após ter áudios vazados numa articulação política para frear a Operação Lava Jato. Vale ressaltar que o peemedebista foi Ministro da Previdência Social de março a julho de 2005, no primeiro mandato do governo Lula. De maio de 1986 a setembro de 1988, quando o presidente era José Sarney, o político foi presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai). Este período levanta algumas acusações e muitas suspeitas de indigenistas e líderes indígenas. A VICE conseguiu, com exclusividade, quatro contratos — entre agosto e outubro de 1987 — em que Jucá autoriza oficialmente o desmatamento de 86.322 metros cúbicos de árvores em terras indígenas. A ação contraria o artigo 18 da Lei Nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. "As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas."

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As empresas Comércio de Madeiras Cometa LTDA, Madeireira Várzea Grandense - Vilson Piovesan Pompermayer, Indústria Madeireira Altoé LTDA e Indústrias Mehl Florestal da Amazônia LTDA (clique para ver os contratos originais) firmaram acordos assinados por Jucá para a retirada de ipê, mogno, angelim, cedro e cerejeira e outras árvores nobres da floresta amazônica. Duas dessas empresas, Indústria e Comércio de Madeiras Cometa LTDA, Várzea Grandense - Vilson Piovezan Pompermayer, estão no levantamento da exploração de madeireiras ilegais nas áreas indígenas (clique para ver o documento). Esta lista foi feita pelo governo de Rondônia no ano de 1991.

Os contatos da Comércio de Madeiras Cometa LTDA, da Indústria Madeireira Altoé LTDA e da Indústrias Mehl Florestal da Amazônia LTDA não estão disponíveis, bem como o de seus responsáveis. Em todos os sites em que constam seus nomes, os telefones não existem ou não pertencem às empresas.

O responsável pela Várzea Grandense, Vilson Piovesan Pompermayer, foi prefeito de Comodoro, no Mato Grosso, de 1993 a 1996, de 2001 a 2004 e vice-prefeito de 2009 a 2012. Ele puxa na memória informações sobre o contrato de setembro de 1987. "Rapaz, eu nem lembro direito mais disso. A empresa já não existe mais, eu só me lembro que o Romero Jucá era o presidente da Funai na época, mas foi feito o contrato normal, tudo legal. Não teve nada não", e na sequência se recorda da nulidade do contrato. "Não sei se foi desmatamento não. Não deu segmento ao contrato não. Legalmente podia ser feito, como outras empresas fizeram, mas não teve segmento." A indigenista e historiadora Ivaneide Bandeira Cardozo, a Neidinha, que convive, estuda e pesquisa tribos há mais de 30 anos, desconfia da afirmação do madeireiro. "A gente nunca ouviu falar que foi anulado. Se foi, apresenta as provas." O empresário, porém, desconversa. Afirma que seu advogado já faleceu e não possui tais documentos. Tentamos entrar em contato com o ex-prefeito repetidas vezes, mas ele não mais nos atendeu. "Ele [Romero Jucá] jogou os indígenas na ilegalidade. O que ocorre hoje de roubo de madeira é porque a Funai iniciou isso. A Funai introduziu a ilegalidade no seio do povo indígena", comenta Neidinha. O prejuízo real, porém, pode ser infinitamente maior, afinal as retiradas eram feitas sem plano de manejo ou qualquer controle. Isso sem falar nos danos à saúde, cultura e sociedade indígena. Juntando todos esses aspectos, o estrago é, pode-se dizer, incalculável e irreversível. O senador Romero Jucá, em nota, afirmou que "foi presidente da Funai por dois anos e, em sua gestão, houve a regulamentação da demarcação de terras indígenas, dispositivo previsto na Constituição de 1988 [que por sinal ainda na época dos contratos nem estava em vigor]. Em sua gestão, foi aprovada a área indígena ianomâmi que supriu diversas carências deste povo. Além disso, em 1995, o senador foi autor do projeto de lei que prevê a regulamentação de mineração em terras indígenas, com controle e acompanhamento, matéria esta aprovada por unanimidade em 1996 pelo Senado Federal. A partir daí, o projeto seguiu para tramitação na Câmara dos Deputados". No entanto, ao ser questionado — novamente — a respeito dos contratos assinados com as madeireiras e no estrago que isso causou nas condições humanas dos povos indígenas, Romero Jucá não se pronunciou. Procuramos também a Fundação Nacional do Índio (Funai), que também não se manifestou até o fechamento desta reportagem. Para destrinchar melhor cada uma das tretas que os povos indígenas enfrentam hoje, separamos as desgraças por tópicos:

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Tretas sociais e conflitos internos
"O povo olha pros indígenas como se eles não fossem humanos, eles são seres humanos com ambição e com um monte de coisa", explica Neidinha. Tal afirmação serve para explicar as tretas que o dinheiro (como na maioria das relações humanas) trouxe aos povos. As tribos, quase todas, se dividiram em dois lados: os índios que fecharam com os madeireiros e lucraram um pouquinho e os que foram contra a invasão e o desmatamento de suas terras. Neidinha é mais contundente."Ele [Romero Jucá] jogou os indígenas na ilegalidade. O que ocorre hoje de roubo de madeira é porque a Funai iniciou isso. A Funai introduziu a ilegalidade no seio do povo indígena. Você tem meia dúzia que se envolve com o ilícito e ganha e o resto da comunidade não. Tu desorganiza, desagrega toda a situação social do povo indígena. Isso sem falar nos problemas que eles levaram para as tribos como alcoolismo, prostituição e doenças e todas as coisas ruins do nosso mundo de não-índio" Almir Suruí acende o holofote em outras duas questões: "Os índios Suruís se envolveram, por muito tempo, com bebida alcoólica e tem muitas mulheres Suruís se prostituindo com madeireiros, e agora com garimpeiros", sim os Suruís, há dois anos, enfrentam a extração ilegal de minérios." O líder indígena, inclusive, lida com um incontável número de ameaças de morte tanto dos que lucram com os garimpos e madeiras quanto dos índios corruptos. "Não me sinto seguro. Eu sei que minha vida passa muito risco, mas eu não tenho para onde fugir. Minha vida é aqui, meu povo tá aqui, o futuro que eu quero tá aqui no meu território. Deus me protege, o espírito da floresta me protege. eu não tenho maldade dentro de mim. Eu tenho dó das pessoas que me ameaçam."

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O líder indígena Almir Suruí. Foto: Gabriel Uchida

Prejuízo ambiental
Líder do povo Suruí, localizado no centro-sul de Rondônia e noroeste de Mato Grosso, Almir Suruí é uma das linhas de frente contra os desmandos iniciados há três décadas. Ele afirma. "Isso foi muito triste para nós. Isso aconteceu na década de 1980. Em 83, 84, eu era jovem, adolescente. Desde aquele tempo os Suruís vêm se envolvendo com retirada ilegal de madeira". Só em suas terras, cerca de 248 mil hectares (fazendo aquela clássica e enfadonha comparação com campos de futebol chegamos a 248 mil estádios) já foi desmatado aproximadamente 25% do terreno. Neidinha complementa. "Isso é um roubo incalculável, porque quando eles entram não tiram só o que está no contrato. Não tem plano de manejo. Como é que tu vai tirar madeira sem plano de manejo? Se tu tira madeira sem esse planejamento, tu tira de qualquer forma."

Neidinha levanta ainda a dúvida sobre outra questão: o empobrecimento o bioma. "Você não sabe o quanto foi tirado de mogno, você não sabe o quanto foi tirado de cerejeira, você não sabe o quanto foi tirado de angelim, que são madeiras nobres. E uma coisa é certa, na questão da biodiversidade há um empobrecimento da floresta, porque tu tira as espécies nobres. Tu empobrece a floresta. É um impacto imenso na biodiversidade."

Capitalismo e ganância
Como é de se esperar numa ação como essas, os acordos não são os melhores, principalmente para o lado mais fraco. As contrapartidas para os documentos assinados por Romero Jucá, em 1988, eram de valor monetário muito inferior ao material retirado das terras. Em uma delas o acordo incluía a abertura de 45 quilômetros de uma estrada, uma Toyota com carroceria (não fica especificado o modelo nem as condições do veículo), a construção de uma enfermaria, equipamentos médicos, material permanente e de consumo para a enfermagem, mantimentos e quase sete milhões de cruzados ( o equivalente a quase dois milhões de reais). O investimento que parece alto, mas é um salvo conduto para explorar as terras pagando pouquíssimo. O contrato, com desmatamento planejado em 9.322 m³ das mais variadas árvores previa 7.444 m³ de cerejeiras, 1.191 m³ de ipê. Para se ter uma ideia só essas duas demandas são o equivalente a quase 11 milhões e meio de reais. "O prejuízo foi enorme. Se o metro cúbico custa 800, eles dão 30 reais. A relação é essa", relata Neidinha.

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A indigenista e historiadora Ivaneide Bandeira Cardozo, Neidinha. Foto: Gabriel Uchida

Pobreza cultural
Tais processos ambientais, sociais e econômicos geram uma inevitável perda das raízes e tradições. Não é surpresa nenhuma. Mesmo com a batalha cotidiana, Almir Suruí reconhece que o espólio dos contratos é catastrófico. "O legado que o Jucá deixou com esse projeto, e a luta que ele vive travando no Senado, é para destruir o território indígena. Destruir uma cultura e um povo. Esse é o resultado que os Suruís têm hoje", ele comenta. Neidinha cita como uma dessas catástrofes, a população Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. "Eles quase foram dizimados com o contato e você ainda introduz o roubo de madeira. Você condena essa comunidade, esse povo."

"Eles aprenderam processos de individualismo, tudo isso prejudica o sistema de governança do povo Suruí, a cultura do povo Suruí. O legado do Jucá é esse: incentivar e apoiar os índios em sua destruição. Sem noção, sem visão do futuro ou dos direitos", comenta Almir.

Neidinha ainda faz as últimas considerações sobre o legado deixado por Romero Jucá em sua breve, mas desastrosa, passagem à frente da Fundação Nacional do Índio. "Se o cara é presidente da Funai, a obrigação dele é defender os interesses dos indígenas. A partir do momento que ele assina um contrato pra roubar madeira na terra indígena, ele atenta contra os direitos desse povo". E completa: "Ele é responsável por toda a degradação ambiental dessas áreas. Mesmo que ele tenha ficado só um período a frente da Funai, ele iniciou isso. Ele deu abertura para o ilícito. Pra mim a raiz do problema tá com ele". Para finalizar ainda faz uma pergunta — replicada a quem lê este texto. "Tu confiaria num órgão presidido por uma pessoa que faz contrato ilegal?"

E ela mesma responde: "Eu não confiaria".

Saque os contratos assinados por Romero Jucá:

Madeireira Várzea Grandense - Vilson Piovesan
Comércio de Madeiras Cometa LTDA
Indústria Madeireira Altoé LTDA
Indústrias Mehl Florestal da Amazônia LTDA

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