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Edição Uganda

Salvando as Crianças-Soldados de Mianmar

As crianças que foram forçadas a servir com soldados estão lentamente retornando para suas famílias que já tinham perdido a esperança de reencontrá-las com vida.

O sol está se pondo no Yangon, uma das principais artérias fluviais de Mianmar. O rio está pontilhado de pequenos barcos a caminho do ancoradouro. Arkar Min, 21 anos, está num táxi aquático com mais sete homens, todos em silêncio. Eles passaram o dia carregando peixes em caminhões. Agora, eles descansam encostados uns nos outros, ninados pelo barulho rítmico do motor.

Arkar Min trabalha nas docas do Yangon desde que foi libertado do Tatmadaw, as forças armadas de Mianmar, seis anos atrás. Ele largou a escola aos oito anos para ajudar a família pobre. No caminho para casa do trabalho numa fábrica, um homem o abordou, perguntando se ele não queria ganhar mais como motorista. "Fiquei tão feliz, porque ia aprender a dirigir", ele disse, os olhos treinados sobre a brasa do cigarro. Seu pai, TinWin, queria que ele fosse fazendeiro, mas "a única coisa que me empolgava naquela época era dirigir rápido".

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O homem e Arkar Min partiram imediatamente. Eles pararam para comer alguma coisa, dois salgados com geleia idênticos. Arkar Min não notou que o seu já tinha sido aberto. Ele provavelmente foi drogado e só acordou na tarde seguinte. O homem, um recrutador civil do exército, recebeu US$ 80 por entregar um novo recruta e já tinha ido embora fazia tempo.

Vivendo sob vigilância armada, Arkar Min recebia uma refeição por dia: uma tigela de arroz com um pouco de óleo e sal. Ele dormia no chão de concreto, usando seu lungi como travesseiro. Com ele, estavam seis outros recrutas, a maioria de 15 anos – o mais velho tinha 17. Nenhum deles tinha se alistado voluntariamente – eles foram enganados com promessas de trabalho, sequestrados e vendidos como soldados.

O pai de Arkar Min, TinWin, tinha se aposentado do exército – ele foi sargento a maior parte da vida – e logo percebeu o que tinha acontecido. Ele sabia para onde os novos recrutas eram mandados: para uma base perto do Pagode Shwedagon, o templo budista central de Yangon. Ele procurou a polícia, que não fez nada. "A polícia não queria ajudar até meu pai mencionar a Organização Internacional do Trabalho", explica Arkar Min. A OIT é um grupo que trabalha com a ONU para libertar soldados menores de idade.

Hoje, Arkar Min está sentado no chão da cabana de bambu de Thein Myint em sua aldeia natal, Dine Su, com as pernas encostadas no peito. Ele está cercado por aldeões desesperados para reaver seus filhos roubados. Eles se aglomeram num pequeno espaço entre as cabanas nos arredores do Yangon, os homens cuspindo suco de bétel no chão de terra, as mulheres se abanando com leques para afastar o calor. Thein Myint trabalha para a Child Protection Organization, uma ONG que coloca famílias em contato com grupos internacionais maiores, como a OIT. Ela também procura garotos sequestrados em 12 campos de treinamento de Mianmar. Se a localização deles é desconhecida, Thein Myint procura por eles a pé. Ela paga subornos para entrar em cada base, dando carne ou peixe aos guardas desnutridos, esperando encontrar as crianças.

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Ela é baixinha, curvada e "velha o suficiente para se aposentar", ela me conta. De cabelo preto curto, com as bochechas pintadas de branco com a pasta thanaka tradicional e os olhos calmos, ela tem um temperamento severo e carinhoso ao mesmo tempo. Doze anos atrás, ela se mudou para Dine Su depois que o governo destruiu sua fazenda de 12 acres para dar lugar a um luxuoso campo de golfe. "É da minha natureza ajudar pessoas necessitadas e com problemas", ela frisa. "Esse trabalho exige muito amor e sacrifício.

"Os tempos mudaram", destaca Thein Myint. Existe uma pressão para que o Exército de Mianmar e outras milícias se alinhem a convenções da Associação das Nações do Sudeste Asiático, recomendações de direitos humanos e diretrizes da OIT. Os exércitos têm feito pequenos atos de compromisso de pacificação e, nos últimos meses de 2014, aumentaram as libertações. "Há pressão internacional agora sobre trabalho forçado infantil e trabalho infantil", Thein Myint diz com firmeza. "Eles não podem continuar fazendo isso."

Em 2012, com apoio da UNICEF, a OIT, a Save the Children, o governo mianmarense e a ONU assinaram um plano conjunto de ação, definindo termos para a libertação gradual dos soldados-crianças do Tatmadaw, incluindo combatentes maiores de 18 anos recrutados quando ainda eram menores de idade. O documento também descreve medidas de responsabilização para oficiais e recrutadores criminosos.

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Em novembro, o Exército de Mianmar libertou 80 soldados-crianças do serviço ativo, atingindo o número de 845 menores liberados desde 2007. Lentamente, soldados que foram recrutados à força quando crianças estão retornando a suas aldeias para famílias que achavam que eles estavam mortos.

Há uma base militar em Dine Su, um porto e fábricas. É uma paisagem de bambu, lama, mato e campos de futebol de terra igual a muitos assentamentos pobres pelo país. As trilhas entre as cabanas são pavimentadas com tijolos quebrados, pedras para atravessar poças ou sacos de cimento. Muitos de seus moradores vêm de lugares distantes, vítimas da grilagem de terras realizada pelo governo. Um assentamento ilegal aos olhos da lei, Dine Su é especialmente suscetível à exploração pelas autoridades. "No passado, resgatei três garotos dessa aldeia dos militares", conta Thein Myint. "A maioria está tendo problemas financeiros."

A polícia tipicamente prende garotos da aldeia por estarem fora de casa tarde da noite ou por cometerem pequenos delitos. Às vezes, recrutadores civis oferecem trabalho para atrair os meninos, como no caso de Arkar Min. Intimidação é a norma, e os garotos são física e psicologicamente pressionados a se alistar. Identidades nacionais falsas são emitidas dizendo que eles têm 18 anos, a idade mínima para se alistar. Se os recrutas pesam menos de 45 quilos, eles são alimentados à força com banana e água até atingirem o peso exigido. Depois de quatro meses de treinamento, eles são mandados para algum posto distante, geralmente nas linhas de frente.

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A Convenção do Trabalho Forçado da OIT de 1930, assinada por Mianmar, define recrutamento de menores como uma forma de trabalho forçado. Isso permite que a OIT ajude aqueles que foram recrutados quando crianças, "retroativamente, ou aqueles ainda considerados soldados-mirins", diz Steve Marshall, um advogado da OIT. Em 1991, Mianmar também ratificou a Convenção dos Direitos da Criança, concordando em impedir menores de participar de guerras. E, em 2007, a OIT e o governo birmanês concordaram com o Mecanismo de Queixa de Trabalho Forçado, um sistema designado para oferecer às vítimas de trabalho forçado uma plataforma de libertação sem medo de retaliação.

Desde 2007, a OIT já recebeu 1.260 relatórios de recrutamento de menores pelo Tatmadaw. "Os números de queixa aumentaram exponencialmente com o tempo, enquanto a conscientização e a confiança do público aumentavam", continua Marshall. Quatrocentos e oitenta e cinco desses recrutas menores foram dispensados. Sete morreram antes de sua libertação. Sob o plano de ação conjunta de 2012, foram 472 dispensas, que incluíam 112 dos casos da OIT mencionados acima.

Apesar desses desenvolvimentos, o recrutamento de menores ainda é comum. O Tatmadaw foi formalmente criado logo depois da independência de Myanmar da Inglaterra, em janeiro de 1948. A Campanha de Burma, uma das ofensivas mais sangrentas da Segunda Guerra Mundial, destruiu a terra e a economia da nação, o que pode explicar por que o país não quis se juntar à Commonwealth, uma organização voluntária de 53 países, a maioria territórios do antigo Império Britânico, unidos por uma história compartilhada e ideias de democracia e direitos humanos. Foi uma independência frágil e de vida curta: em 1962, o general Ne Win deu um golpe; desde então, o país nunca viu paz. O regime de Ne Win teve de enfrentar o descontentamento de seus cidadãos, o que culminou na Revolta 8888, em 8 de agosto de 1988. Depois de protestos de estudantes do Instituto de Tecnologia de Yangon, Ne Win fechou as universidades, e as fileiras de manifestantes incharam com minorias étnicas, budistas, muçulmanos, estudantes e trabalhadores. Os militares mataram milhares de civis. Logo depois, a junta militar decidiu riscar as associações coloniais do nome do país, rebatizando-o em 1989 como República Socialista da União de Burmacomo União de Mianmar. Em 1997, a junta mudou seu próprio nome de Conselho de Estado para Restauração da Lei e da Ordem para Conselho de Estado para Paz e Desenvolvimento. O Ciclone Nargis atingiu o país em 2008, deixando 1 milhão de pessoas sem teto. Durante tudo isso, o Tatmadaw estava combatendo pelo menos 20 grupos de resistência armados. Lentamente, acordos de cessar-fogo vêm sendo fechados e os exércitos não estatais estão começando a se desmantelar completamente.

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Antes de 1988, a maioria dos recrutas do exército mianmarense era de voluntários maiores de 18 anos. Mas, depois da revolta, os militares se tornaram mais impopulares do que nunca. O Tatmadaw contava agora, principalmente, com mão de obra coagida – ou com os pequenos corpos dos garotos sequestrados – para atingir seus fins, já que armamento moderno é difícil de obter devido a sanções internacionais.

Em 2013 e 2014, a OIT recebeu queixas de 69 casos de recrutamento de menores. Frequentemente, soldados têm a dispensa negada a menos que tragam um ou dois novos recrutas. Outros soldados e recrutadores civis são incentivados com dinheiro ou recompensas em espécie. A taxa atual é de US$ 80 por recruta – o equivalente a quatro meses do salário de um sargento. Às vezes, recrutas são trocados por sacos de arroz ou óleo.

Quando uma criança entra no Exército, sua educação para. Quando é dispensada, ela tem de começar praticamente do zero. Com educação limitada e quase sempre sem habilidades vocacionais, ex-soldados sofrem para se reintegrar à força de trabalho. "Os soldados voltam para casa desempregados", diz Thein Myint. "Eles pegam qualquer trabalho que conseguem, geralmente trabalho braçal. As famílias que podem pagar começam um negócio para eles."

Quando trabalhadores de assistência social perguntam aos soldados que tipo de trabalho eles querem, a privação que passaram significa que eles geralmente não têm uma resposta. Então, os funcionários decidem por eles, que recebem alguns porcos se seus pais criavam porcos ou um ciclo-riquixá, porque era assim que eles ganhavam dinheiro quando eram mais novos. A Save the Children costumava oferecer um investimento de cerca de US$ 100 para os veteranos (apesar de a organização negar isso oficialmente). Mas, com os financiamentos secando, isso tem acontecido menos. Programas de reintegração do governo também existem, oferecendo meios para os ex-soldados voltarem ao sistema educacional, mas, para os veteranos raquíticos de Mianmar, as exigências básicas para participar frequentemente são altas demais.

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Saindo de Dine Su, outra das histórias de sucesso de Thein Myint, Kyaw Thura, voltou para sua mãe. Kyaw Thura serve chá adoçado com leite condensado enquanto descreve a luta de guerrilha que viu nas linhas de frente e sua rendição para o inimigo, a União Nacional Karen (KNU). Conta sobre como ele fingiu a própria morte num crucifixo de madeira, com sangue e entranhas de animais, e como viveu escondido do Exército de Mianmar. Ele fala num tom uniforme, mas suas pausas são raras. Ele se lembra de ser mandado para o Estado de Mon para quatro meses de treinamento. "A sopa tinha pedras e o arroz tinha areia", ele conta. "Eu sentia muita falta de casa." Mobilizado para a floresta, ele e seu esquadrão acampavam em barracas e caçavam macacos e porcos para completar a ração insuficiente.

Temendo por sua vida, ele desertou com dois amigos. Sem armas nem dinheiro, eles se entregaram ao KNU, e os líderes do grupo deram a eles uma escolha: se juntar aos rebeldes por dinheiro e rações ou ir embora e tentar chegar à fronteira com a Tailândia. Eles optaram por seguir em direção à fronteira.

Na Tailândia, Kyaw Thura explica que "não podia me mexer. Havia pessoas procurando por mim em toda parte". O tempo passou, e ele finalmente encontrou trabalho em Mae Sot como soldador, conheceu uma garota, se casou e teve Thant Zin, seu filho de quatro anos.

Ele voltou a Yangon para encontrar a mãe. Apesar de a OIT ter lhe dado uma carta de proteção, ele foi preso pelo Exército, sentenciado a dois anos e seis meses por deserção e preso em Hpa'an. "As condições lá eram melhores do que no exército", ele revela. "A comida era melhor. Podíamos nos exercitar. Nós plantávamos e fazíamos tijolos."

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Vivendo na casa da mãe com o filho, ele busca agora uma indenização por prisão injusta. O pequeno Thant Zin sobe no colo dele e brinca com uma moto de plásticos. Kyaw Thura ficou tanto tempo fora que seu filho o chama de "tio".

Tun Tun Win tem 30 anos. Aos 14, ele foi vendido ao Tatmadaw. Mas ele não deu a aos oficiais seu nome completo. "Eu queria manter uma parte da minha identidade só para mim", ele explica, "então, disse que me chamava apenas Tun Tun". Num acampamento na floresta perto de Mandalay, ele tatuou a última parte de seu nome no braço usando uma agulha cega, fuligem e suco de bétel. "Win" ficava dentro de um coração com duas espadas cruzadas atrás. Ele passou a maior parte do tempo consertando tanques ou fazendo segurança, indo de base em base. "Aprendi a dirigir, atirar, fazer segurança, só isso." Ele recebia US$ 4,50 por mês.

Treze anos depois, ele aluga uma pequena casa do irmão na aldeia onde cresceu. Ele vive com a filha de dois anos, que sofre de desnutrição, e o filho de cinco. Um ano atrás, sua mulher o deixou com as crianças. "Ela tinha problema com jogo", ele conta. "E não era muito boa com as crianças."

Com US$ 100 da Save the Children, ele montou uma pequena biblioteca na frente de casa, alugando livros e revistas aos aldeões por dez centavos por dia. "Quero ser meu próprio chefe agora", ele diz. Seu pai emprestou dinheiro para que ele comprasse uma pequena moto, que ele espera usar como táxi. "Não tenho nenhum sentimento ruim contra os recrutadores do Exército. O carma vai ser o juiz deles. Tenho liberdade agora. No Exército, eu estava alugando meu corpo."

Essa história foi possível com financiamento do Pulitzer Center on Crisis Reporting.

Tradução: Marina Schnoor