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Sangue e o Islã: Entre o Eid e a Ashura

Neste exato momento no calendário islâmico, estamos entre dois dias santos em que a fé é demonstrada com o derramamento de sangue: o Eid al-Adha, celebrado na semana passada, e a Ashura, que acontece no final de novembro.

Neste exato momento no calendário islâmico, estamos entre dois dias santos em que a fé é demonstrada com o derramamento de sangue: o Eid al-Adha, celebrado na semana passada, e a Ashura, que acontece no final de novembro. Nos dois casos, as festividades anuais são acompanhadas pelo debate sobre o significado do sangue e como a “religião” deveria ser.

Semana passada, muçulmanos do mundo todo observaram o Eid al-Adha, que marca a conclusão do hajj. O personagem central na história do hajj não é Maomé, e sim Abraão, cuja disposição de sacrificar aquilo que mais amava no mundo – seu próprio filho – é imitada pelos peregrinos que jogam pedras num muro que representa o mal. Em honra à submissão absoluta de Abraão a Deus, os muçulmanos celebram o Eid al-Adha com o sacrifício de uma cabra ou ovelha.

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No final de novembro, os muçulmanos xiitas vão comemorar outro sacrifício: o martírio de Hussein, neto de Maomé, no dia da Ashura. Hussein deu sua vida numa guerra impossível contra os poderes injustos de seu tempo. Numa prática controversa, muitos dos observadores da Ashura vão marcar o amor de Hussein em seus próprios corpos, chicoteando suas costas com lâminas e fazendo cortes no topo de suas cabeças. Mesmo dentro da comunidade xiita, a adequação dessa prática islâmica é debatida. A imagem de homens marchando pelas ruas, cobertos pelo próprio sangue, se tornou munição pra mais de uma agenda polêmica: os sunitas usam essa prática pra afirmar que os xiitas não são muçulmanos legítimos, e islamófobos veem isso como uma evidência de que o Islã é, em sua maioria, fanático e violento.

No caso tanto do Eid al-Adha quanto da Ashura, existem muçulmanos que procuram reformar essas práticas pra que elas se encaixem em suas próprias ideias do que significa ser um ser humano moderno e racional. Em visões alternativas do Eid al-Adha, o sacrifício de um animal e a distribuição de sua carne entre os necessitados pode ser substituída por outras formas de caridade. Em comemoração à vontade de Hussein de ser sacrificado na Ashura, muitos muçulmanos escolhem doar sangue, tanto como alternativa quanto complemento da autoflagelação. No dia da Ashura no Irã majoritariamente xiita, os bancos de sangue coletam quase quatro vezes sua média diária.

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Aprecio esses esforços pra ler as histórias de Abraão e Hussein como chamados pra ações éticas no mundo; muitos muçulmanos têm feito isso através da História. Muçulmanos que se abstêm do abate de animais no Eid fazem isso pra favorecer os privilégios de compaixão e misericórdia sobre as exigências rituais. Muçulmanos que doam sangue na Ashura estão seguindo o exemplo supremo de Hussein, que deu seu sangue de uma maneira muito mais drástica. Enquanto inovam em suas práticas, esses muçulmanos continuam investindo em suas tradições, procurando manter sua força e significado em novos contextos.

Infelizmente, alguns muçulmanos que pedem por essas reformas podem soar como islamófobos veementes, culpando seus irmãos e irmãs de adesão “cega” a rituais “sem sentido” e “bárbaros”. Seguindo certas suposições sobre o que é uma boa religião – ou seja, uma locação do significado apenas na alma, nunca no corpo –, eles insistem que pode não haver nada de espiritual no derramamento de sangue.

Se alguém tem uma objeção em relação a se alimentar de animais, posso entender sua recusa ao abate no Eid. No entanto, como comedor de carne, não crio ou caço minha própria comida. Eu me beneficio da destruição de animais sem nunca ter que pensar sobre isso. O abate no Eid, se o fizermos com plena consciência, nos força a confrontar a realidade desagradável que nos sustenta. Pelo menos é melhor que comprar carne no mercado e fingir que estamos desligados desse processo.

É difícil encontrar mesquitas nos Estados Unidos onde eu possa me cortar pra Hussein, mas em último caso posso me juntar a uma comunidade no matam e participar de um ritual de bater no peito, até que meu peitoral fique púrpura. Hussein deixou a Meca rumo a Karbala com a promessa de que completaria os rituais do hajj sacrificando não uma cabra, mas sua própria vida; como o abate de uma cabra, a morte do inocente Hussein se tornou fonte de sustento pra outros. Vamos chorar por Hussein e seu acampamento de talvez uma centena de partidários que ficaram contra um exército de milhares, e pelo nosso próprio status de culpados como beneficiários do sacrifício de Hussein, e vamos também escrever nosso amor, luto e culpa em nossos corpos. Com cada golpe da minha mão no meu peito, vou considerar como a Ashura deve ter sido muito pior pra Hussein. Todo dia é Ashura, disse um dos descendentes de Hussein; toda terra é Karbala. O sacrifício trágico de Hussein por uma ordem tirana representa a injustiça e sofrimento que continuam nos dias de hoje. No entanto, como o mundo está cheio de opressão e privilégios não merecidos em várias formas, sei que ocupo o papel dos assassinos de Hussein mais do que de um dos partidários dele.

Muitas pessoas, muçulmanas ou não, dirão que o derramamento de sangue é nojento e que a dor não tem lugar na espiritualidade. Claro, essas práticas não fazem necessariamente nos sentirmos bem. Enfiar uma faca num animal também não é divertido. Mas entre esses dois dias sagrados, o Eid al-Adha e a Ashura, lembramos a nós mesmos da violência de nossas próprias vidas – uma violência que continua a nos alimentar – e do nosso papel dentro dessa violência. É algo triste e pesado. Alguns colegas não querem tristeza e peso em suas religiões, e tudo bem; mas, pra mim, esse é o ponto.

Michael Muhammad Knight (@MM_Knight) é o autor de nove livros, incluindo Journey to the End of Islam, um relato de sua peregrinação a Meca.