"Entender o suicídio como uma doença é crucial pro processo de cura"
Antoine Wiertz: The Suicide, 1854

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"Entender o suicídio como uma doença é crucial pro processo de cura"

Segundo a ONU, 90% dos suicídios podem ser prevenidos. A escritora Clara Averbuck fala como conseguiu superar a vontade de tirar sua própria vida e um psicanalista explica como é possível enfrentar a doença.

Esta reportagem está pontuada pelo relato que a escritora e criadora do site Lugar de Mulher Clara Averbuck dividiu gentilmente e corajosamente com a VICE. Nas passagens em negrito no texto, Clara fala sobre como conseguiu superar a vontade de tirar sua própria vida e como o suicídio pode ser mais normal do que imaginamos.

A primeira vez que eu tentei morrer eu não queria morrer. Só queria que parasse. Só queria que acabasse aquilo. Um relacionamento insistente do qual não conseguia me livrar, um homem que pegava um avião pra me encher o saco, eu só queria que aquilo parasse. Tentei ridiculamente cortar os pulsos com barbeador. Só me machuquei pouco, mal sangrei. O cara só foi embora depois que soube que eu estava pegando outro, depois que parei de atender, depois que desapareci. Eu tinha 17 anos e sabia que havia algo errado comigo. Não sabia o que, como, nem o que fazer. Eu tinha vergonha, me sentia fraca e fraqueza não é comigo. Eu sou forte, porra. Eu sou um mulherão. Sempre repeti isso pra mim: eu sou uma puta mulher. Mas depressão pode acometer qualquer um. A depressão não quer saber se você é foda. Se é rico, pobre, mulher, homem. Ela vem e te abate. — Clara Averbuck

Clara, hoje com 37 anos, foi uma dos milhares de jovens brasileiros que enfrentou o suicídio, doença que mata mais jovens no mundo do que o HIV , perdendo apenas para acidentes de trânsito. Hoje, 800 mil pessoas tiram suas vidas por ano no mundo, sendo uma morte a cada 40 segundos. Só no Brasil, são mais de 10 mil suicídios por ano. 25 mortes por dia. O nosso país, inclusive, é o oitavo no ranking de morte causadas por suicídio . A Índia fica em primeiro lugar com 213 mil casos por ano.

Clara. Foto: Marcos Bacon / Deu Zebraa

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O suicídio é também democrático na sua incidência. Embora seja uma morte comum entre jovens, também afeta idosos . Embora tenha aumentado sua incidência entre as mulheres de São Paulo, também acomete cada vez mais mais homens . As mulheres, segundo a cartilha do Centro de Valorização da Vida (CVV )sobre suicídio , são as que mais tentam se matar, porém são os homens os que mais morrem de suicídio. As causas que levam a esse pensamento também estão ligadas a casos de inadequação social, envolvendo preconceitos sociais que a pessoa pode vir a sofrer na vida. Como é o caso, por exemplo, da população jovem LGBT que tem mais chances de recorrer ao suicídio em resposta à intolerância, segundo alguns estudos.

Alguma vez já passou pela sua cabeça. Provavelmente já foi cogitado por muita gente que convive perto de você. Sua amiga pode já ter passado um período considerando essa hipótese. Talvez seus pais pensem nisso com maior frequência do que você imagina. Sua chefe pode já ter tentando e falhado, sem ter contato para ninguém. Ainda assim, falar sobre suicídio é cheio de tabus.

Para o psicanalista Marcos Donizetti, há duas visões sobre o suicídio. Uma é a existencial, que como dito acima é intrínseco à condição de estar vivo e a outra é de ordem mais patológica que não é necessariamente um transtorno mental, mas também pode surgir a partir da organização da nossa personalidade e da sociedade que são, de alguma, forma problemáticas.

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"Para além de questões morais e religiosas, todo mundo pensa ou já pensou na morte. Isso pode ser uma forma de construir um sentido de estar vivo, partindo do ponto de vista existencial. Porém, não implica necessariamente que quem pensa na morte seja um suicida", explica o psicanalista.

Na religião, por exemplo, o suicídio costuma ser tratado como um pecado. Na sociedade, por sua vez, costuma ser visto como um ato de egoísmo ou uma tentativa de chamar atenção. Ainda não há um debate aberto sobre o suicídio no Brasil. Falar sobre parece ser um problema, o que agrava a incidência da doença e implica, por exemplo, em discutir e tratar tantas outras doenças mentais no país.

"Quando a pessoa possui uma dificuldade ou um transtorno mental, ela possui uma lente mais cinza para observar o mundo, deixando as coisas também mais nubladas. Com isso, o que seria apenas uma reflexão filosófica acaba se tornando uma questão de saúde", aponta o psicanalista. "O suicídio está ligado à transtornos e percepções de mundo que levam a pessoa a um quadro de profunda desesperança e sofrimento."

Outras tentativas vieram. Eu fazia umas merdas, magoava umas pessoas e achava que o mundo estaria melhor sem mim. Que eu era um estorvo. Que minha existência era um erro. Tomei um vidro de haldol antes da virada do ano e fiquei dois dias paralisada na cama. Não morri. Tomei um vidro de alprazolan com vodka. Não morri. Acordar de novo era o pior pesadelo. Eu não tinha conseguido. Eu ainda estava viva, ainda estava naquele quarto, ia ter que pensar, respirar, mijar. Na pior das crises eu simplesmente parei de comer e passei a viver de ritalina, pó e vodka. Emagreci uns 20 quilos. As pessoas achavam lindo. Eu seguia querendo morrer. Enlouqueci todo mundo ao meu redor, me sentia mais mal ainda, queria morrer mais. — Clara Averbuck

Segundo Donizetti, esse quadro do suicida tende a piorar diante do imperativo que implica na exigência de repelirmos tudo o que for triste e enxergarmos a vida como o mais alto valor que existe, sem necessariamente refletir sobre isso. Isso acaba fazendo com que o suicida se veja como alguém cujo sofrimento não tem espaço no mundo. Que ele é alguém inadequado, ou até mesmo ingrato. "Existe entre nós um acordo social bastante claro de que não se deve falar da tristeza, de coisas ruins, não se deve dizer que sofre", diz o psicanalista.

São poucas pessoas dentro do grupo de potenciais suicidas que de fato tiram suas vidas, conta Donizetti. E nem sempre o ato de se suicidar vem simplesmente da vontade de morrer, mas sim como uma forma de acabar com o sofrimento que ela sente, muitas vezes insuportável.

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Segundo a OMS, 90% dos suicídios podem ser prevenidos. Em várias casos, a própria pessoa que pensa em tirar a sua própria vida também dá indícios de que está procurando ajuda. Embora transtornos mentais sejam cada vez mais comuns, nem sempre o suicídio está ligado a doenças.

"Tanto a minha experiência profissional quanto a teoria mostram que o melhor a se fazer é estar perto", aconselha Donizetti. "A primeira coisa a se fazer é ouvir. Ouvir mais do que aconselhar. Claro que também é necessário perceber a gravidade da situação e saber que, se ouvir não bastar, talvez seja necessário aconselhar que a pessoa em questão busque tratamento médico, mas com muito tato."

No caso de alguém que já tentou se suicidar, o quadro é realmente mais emergencial já que 50% dos casos de tentativa podem se reverter em suicídios concretizados. "Tentativas de suicídio comunicam algo", diz o psicanalista. "Não é aquele clichê de estar 'chamando atenção', mas pega muito mais na questão da pessoa estar tentando pedir ajuda. De novo, a resposta é a presença. É a família estar perto, os amigos [estarem perto]. No caso de alguém que já tentou [o suicídio], a ajuda profissional se faz completamente necessária".

"Se ela encontra uma presença, mesmo que ela não opte em falar sobre o que lhe aflige, é um aspecto importante. É preciso saber dosar sua presença também sem se tornar invasivo, estar junto sem pressionar ou fazer quem está desabafando se sentir culpado por pedir ajuda. Por isso que é importante esse tato do profissional", explica Donizetti.

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O psicanalista também relativiza que o ato de tirar sua própria vida pode variar de acordo com a intensidade do sofrimento do suicida. "Pode ser um ato rápido ou algo que foi planejado durante meses. A outra variável é esse ato significar alguma coisa socialmente. Há pessoas que usam do próprio suicídio como um ato de comunicação. Talvez para causar um certo impacto, dependendo de quem fez isso."

Eu não queria incomodar. Só não me queria mais. Fui perdendo meus trampos, não cumpria prazos, não conseguia fazer nada. Não escrevia. Não trabalhava. Não queria nada. Não sei bem como foi que eu vivi naquela época. Eu tava muito chapada de tristeza e remédio. Passei por um psiquiatra pior do que o outro. Eles não queriam saber o que havia de errado, só queriam me dopar pra cumprir a meta das receitas dadas, dos remédios inúteis que só me pioravam. Até eu encontrar um profissional que é meu psicanalista e psiquiatra até hoje, sofri na mão de uns 6 ou 7. Aqueles remédios não acabavam com a depressão, eles só cortavam qualquer sentimento que eu pudesse ter. Quando cheguei nele estava tomando uns 4 remédios diferentes, bebendo, me drogando, fumando e querendo morrer. Ele mudou toda a medicação e tomando os remédios direitinho e fazendo análise eu fui melhorando. Melhorei tanto que fiquei anos sem tomar remédios. Agora voltei pro ansiolítico. Ainda me entristece demais saber do trabalho que eu dei pra minha família e pras pessoas que eu amo, mas não me culpo mais. — Clara Averbuck

Na urgência de uma tentativa de suicídio, a primeira providência é recorrer ao SAMU ou serviço de emergência disponível na região", alerta o profissional. "Não raro profissionais de saúde têm dificuldades para lidar com suicidas, dado que o ato de atentar contra a propria vida por parte de um paciente se choca com ideais e convicções pessoais deste profissional e mobiliza questionamentos e afetos difíceis de elaborar num primeiro momento, prejudicando por vezes o acolhimento. Felizmente, o treinamento e o cuidado que esses profissionais encontram nas equipes multidisciplinares melhoraram essa situação"

O psicanalista também diz que é necessário, a depender do caso, recorrer à medicação. Embora exista uma banalização nas receitas de remédios para transtornos mentais, o profissional diz que em muitos casos crônicos há sim a necessidade de medicar a pessoa para que ela comece a falar sobre seu problema.

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"Seria maravilhoso se funcionasse tomar uma pílula que faça a gente não falar das nossas questões, mas no geral isso é sintoma de uma dificuldade de falarmos sobre nós mesmos e sobre nossas angústias", coloca Donizetti. "O caminho para lidar com esse sofrimento passa por uma liberdade maior para falar das próprias questões."

Doença é doença, a gente não escolhe ter e quem trata disso é médico. Não é falta de amor. Falta de atenção. Não é falta de amigo. É uma doença que pode ser desencadeada por vários fatores. Entender isso é crucial pro processo de cura tanto de quem passa por uma depressão quanto para as pessoas em volta, e é muito complicado porque às vezes a gente não quer ajuda, a doença não deixa a gente querer, e é realmente muito sofrido pra todos envolvidos no processo. Espero nunca mais passar por esse inferno nem levar ninguém comigo. — Clara Averbuck

A grande falha na hora de tratar o suicídio é a tentativa de unificar e simplificar a questão encontrando causas e fatores de risco comuns ou generalizáveis a todos os casos. "A tentativa de encontrar uma resposta genérica que explique o suicídio prejudica as abordagens e o tratamento. Cada um desses sujeitos deve ser ouvido e as peculiaridades de cada caso devem ser respeitadas. Os dados estatísticos são importantes e são sim norteadores dos tratamentos, mas cada um que sofre o faz de uma maneira única e bastante particular, e primeiro passo é que ele possa expressar isso", diz Donizetti.

Se você quer falar sobre essa angústia, pode entrar em contato com o Centro de Valorização da VIDA, o CVV ou ligue 141.

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