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Entretenimento

​Tomie Ohtake e o Despertar para o Abstrato

Um pouco sobre a história e o legado deixado pela artista, que faleceu com impressionantes 101 anos de idade.

Tomie Ohtake, em 2008. Crédito: Wagner T. Cassimiro/Flickr

"É da Tomie!", meu amigo Miguel Chaia, que não vejo há anos, me comentou, ao ver que eu estava olhando para uma escultura tubular que descia do teto de sua sala de jantar. Professor universitário e colecionador de arte, ele disse: "Desde quando eu não tinha quase nada de grana, eu comecei a colecionar o que podia dela, lembro de quando ela descobriu, ao telefone mesmo, que eu era professor, o tom dela mudou. Ela sempre gostou muito de professores". Agora me preocupa como está Miguel. Ele era muito amigo de Tomie Ohtake que faleceu hoje, aos impressionantes 101 anos de idade.

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Eu fui apresentado de perto para a arte abstrata, como praticamente tudo o que conheci de arte, na casa do meu compadre Aldemir Martins, que também foi muito amigo dela até sua morte em 2006. Em sua casa jantávamos à mesa, de frente para uma imensa e maravilhosa tela do também abstracionista e também nipo-paulistano Manabu Mabe, amigo e colega de Tomie e de Aldemir, mas não foi essa impressionante tela de Mabe que me fez apreciar verdadeira a arte abstrata, e sim uma obra de Tomie, em ambiente menos intimista do que a sala de jantar do meu compadre.

A arte abstrata propriamente dita, não teve uma fundação clara, do tipo "esta é a primeira obra que não tenta figurar algo que existe no mundo", mas teve algumas sementes. Tirando o trabalho de artistas que não criaram propriamente um movimento ou seguidores, como Kandinsky (embora tenha sido ele quem mais claramente tentou traduzir seu processo, de maneira quase gramatical, para que pudesse ser praticado por outros), já na década de 1950, quando o crítico americano Clement Greenberg cunhou o termo 'expressionismo abstrato', as duas principais vertentes de abstracionismo estavam colocadas. De um lado o chamado abstrato geométrico, fundamentado nas vanguardas russas da década de 1920 na Rússia, especialmente pelo suprematismo de Kazemir Malevich e pelo construtivismo de Vladimir Tatlin e seus colegas como o mais famoso pelos cartazes, eternos alvos da escola de estamparia Rua Augusta, Alexander Rodchenko. Do outro, o jeito de pintar dito mais fluido, mais orgânico, como dos americanos do expressionismo abstrato como o mais famoso Jackson Pollock e do melhor artista Mark Rothko (pintor muito admirado pela nossa Tomie). De um lado o jeito geométrico de abordar a abstração, e do outro o abstracionismo menos ligado às formas duras, comumente chamado informal.

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Detalhe de obra da artista no Instituto Tomie Ohtake. Crédito: drl/Flickr

No Brasil do século XX, não foi diferente. Existia o grupo de artistas chamados neoconcretistas, que claramente buscavam suas referências no abstracionismo geométrico rígido das vanguardas russas, e havia também o pessoal aqui de São Paulo, a galera da colônia japonesa, que embora também trabalhasse com arte abstrata não seguia essa tendência geométrica. O desenvolver do conjunto de obras de Tomie mostra um caminho distinto do movimento tipicamente vanguardista tardio do neoconcretismo e, a ver, não parece vir de um conjunto teórico que tenta direcionar o feitio e significado último das obras, mas sim um desenrolar das próprias descobertas da artista.

Tendo feito parte do grupo Seibi, formado em 1935 por artistas da colônia japonesa em São Paulo, o trabalho de Tomie Ohtake, especialmente suas pinturas, costuma ser colocado ao lado de Tikashi Fukushima e Manabu Mabe, não apenas por participarem dos mesmos grupos como também pelo cartáter informal de suas abstrações. Porém, diferente das abstrações destes, a pintura de Tomie não possui os traços da caligrafia oriental, presentes no trabalho dos dois pintores, nem se atém tanto à mancha em si, como vista na pintura de Mabe, ou á dissolução da paisagem, tornada abstrata, como podemos ver em muito da obra de Fukushima.

A Tomie pintora parecia pesquisar mais puramente a relação estreita entre as cores e as formas, pesquisa visualmente presente em obras de outras técnicas produzidas por ela como o mosaico e a gravura, e mais especificamente o trabalho com a forma mesma em suas esculturas. Tomie começou a pintar aos 39 anos de idade e teve uma carreira ativa impressionante, em constante movimento. Tendo iniciado sua carreira propriamente dita na pintura, ela não teve problemas em caminhar por outras técnicas, e esteve ativa até o fim.

Tomie virou uma instituição, ou melhor, um instituto. Por mais que você possa odiar carambolas e a arquitetura de seus dois filhos, é inegável a importância do nome do instituto, batizado com o nome de Tomie, que desde sua fundação em 2001 ajuda a promover a arte produzida nos últimos cinquenta anos aqui e no mundo. Mas bem antes dele, ela já começava a adentrar na vida dos paulistanos com suas obras públicas. Estas obras falam do momento em que estava o trabalho de Tomie e duas delas, de 1988, mostram um caminho parecido: a tapeçaria da parede do auditório do Memorial da América Latina e a obra em concreto armado, feita em comemoração aos oitenta anos da imigração japonesa.

Detalhe da obra "Quatro Estações", em São Paulo. Crédito: Arte Fora do Museu/Flickr

Nunca fui especialmente próximo da obra na 23 de Maio. Quando eu era pequeno e andava de carro por lá com meus pais eu ficava perplexo ao observar as curvas junto ao movimento do carro, mas não é essa a Tomie que eu aprendi a amar, e sim a que descobri quando, sem carro, aprendi a andar sozinho. A obra de Tomie Ohtake com a qual mais convivi foi o painel "Quatro Estações" que habita, desde 1991, os túneis da estação Consolação do metrô paulistano. Foi de tanto observar esses painéis, os quatro com as mesmas formas básicas, que através das típicas revoltas que nós pessoas comuns temos ao ver a arte não-objetiva, como "qual o propósito disso?", que aprendi a apreciar a arte abstrata. Aos poucos a riqueza das relações de cor e forma, na ausência de um objeto que direcione e limite nossa interpretação criativa do que vemos, foi me encantando, e tanto o detalhe quanto o todo se tornaram maravilhosos para mim, até a magia ser levemente quebrada quando comecei a notar as malditas pastilhas que caíram do painel.

A herança mais imediata da arte abstrata é chata. As questões comuns vão de "até meu filho faz isso" ou "como você sabe se isso e bom e isso não" ou até mesmo "isso é arte?", além da recente, embora forte, tradição de pinturas de sala de espera de consultório, condomínios e outros compartimentos de passagem onde nos deixam aguardando. Nessa tradição a técnica, embora não a qualidade da pintura abstrata, está presente, nos convidando a olhar para estes objetos e nos perguntar mais uma vez "o que esse filho da puta quis dizer com isso?". Se você não for proximo às artes, da próxima vez que tiver a oportunidade de ver uma boa tela de Rothko, Mabe ou da Tomie, faça o favor de olhar para ela. Tomie me ensinou a apreciar essa abertura, esse universo sem objetos óbvios. Talvez alguém consiga fazer o mesmo por você.