FYI.

This story is over 5 years old.

Sexo

Touros, Goró e Cabaças: o Carnaval do Diabo Volta a Colômbia

O reino de satanás na Terra, ou na pequena extensão de Riosucio, Colômbia, é breve, trágico e maravilhoso.

O diabo está por toda parte em Riosucio, Colômbia. Ele caminha pelas ruas em plena luz do dia, com seus dreads de ponta rosa caindo sobre a capa vermelho-sangue. À noite, ela senta descalça numa esquina, tocando sua flauta andina e tomando chicha – uma bebida artesanal de milho – de uma garrafa de dois litros de refrigerante. E na praça baixa, perto da igreja La Señora de la Candelaria, ele chega com seis metros de altura, montado num touro preto com rabo de serpente, presidindo sobre os súditos com um tridente dourado.

Publicidade

É terça-feira, e pelo menos por mais um dia, o diabo vai desfrutar do total domínio sobre essa cidadezinha nas encostas da Cordillera Occidental. Afinal de contas, esse é o Carnaval del Diablo, e pela expressão ameaçadora e sorridente em seu rosto, Sua Majestade gosta do que está vendo.

Os moradores locais me garantem que essa noite é um ponto baixo da festa bienal de seis dias. Boa parte da multidão já foi embora, voltando para sua vida mundana e temente a Deus em Bogotá, Medellín, Cali e outras cidades. Os que ficaram são arrastados por incontáveis horas de música, dança e excesso perpétuo.

"Antes, a rumba não parava nunca – nunca – nem para as pessoas conseguirem dormir", um morador mais velho me disse, em tom de desaprovação.

Pode ser, mas uma noite caída do Carnaval do Diabo ainda vai até depois que o sol nasce na manhã seguinte. As cuadrillas – trupes de carnaval que usam fantasias extravagantes – seguem animadas, apesar dos números reduzidos. Artesões e vendedores de rua de todo o país ainda estão alinhados nas principais praças, vendendo livros, pipoca, joias de contas, roupas tricotadas, pinturas, brinquedos feitos de sucata, chouriço, sementes de flores e, em um dos casos, filhotes de coelho e pintinhos. Os músicos ainda lideram desfiles de salsa e cumbia pelas ruas mal iluminadas. O guarapo – feito de cana-de-açúcar fermentada – e a chicha – de milho fermentado – ainda fluem copiosamente. E a fornicação do público, se não abertamente encorajada, não é desaprovada.

Publicidade

"Esse espírito, que é puro amor e alegria, você tem que obedecê-lo, tem que servi-lo, tem que amá-lo de corpo e alma", me disse Nicolas Lerma. "É a única maneira de agradar Sua Majestade e trazer a paz Dele para as pessoas."

E Lerma deve saber do que está falando. Como matachín – bobo da corte – ele é apenas um dos vários servos mortais alistados para garantir a continuidade dessa tradição sagrada e antiga. O carnaval em si envolve seis meses de cerimônia e preparação antes dos seis dias do festival, e o corpo de organização central – com um presidente, prefeito e outros funcionários – e um pequeno exército de pessoal da limpeza e logística, são chamados para realizar um dos espetáculos culturais mais famosos de um país com um calendário cheio de eventos assim.

As raízes do Carnaval do Diabo vão até 1819, segundo o site do conselho organizador. Na época, Riosucio era formada por dois distritos, comunidades mineiras antagonistas, uma descendente de africanos e outra de índios. Como resultado de um acordo de paz feito pelos padres das comunidades, as cidades construíram suas praças principais a um quarteirão uma da outra e começaram a realizar uma versão inicial do carnaval, que coincidia mais ou menos com o Día de Los Reyes Magos espanhol.

Riosucio – que inclui a cidade, dezenas de assentamentos informais que a cercam e a reserva indígena Cañamomo y Lomaprieta – mantém muito de suas tradições étnicas. Em sua fusão de mitos e costumes africanos, indígenas e espanhóis, o Carnaval do Diabo é uma celebração de "irmandade, paz e felicidade", e da história única desse canto da paisagem cultural inacreditavelmente diversa da Colômbia.

Publicidade

Também é um sacramento arrebatador da magia universal do álcool. Tradicionalmente usado como um instrumento para beber, a calabaza é outro grande símbolo do carnaval. No final da cerimônia, elas descansam ao lado de seu mestre, na esperança de que ele retorne em breve. Presidindo sobre o rito, o vice-presidente do comitê de organização elogia, entre outras coisas, "o gosto celestial" e a bebida "quente, aromática e sensual" que é o guarapo, lendário por seu pileque exuberante e ressaca proporcionalmente demoníaca.

A influência espanhola é mais óbvia nas correlajas, ou corrida de touros. Diferentemente da Espanha e partes caribenhas da Colômbia, os touros aqui não são levados para o matadouro. (Eles também não sofrem ferimentos sérios.) Em vez disso, os moradores ocupam as arenas de bambu improvisadas no subúrbio da cidade com a família, para beber aguardientee torcer quando os touros são soltos, um de cada vez, nos corajosos ou idiotas o suficiente para pular dentro do ringue com eles.

Um rapaz de 24 anos morreu num dos primeiros dias do festival, quando um touro o empalou pela virilha. Mas isso não fez a multidão diminuir nos dois dias seguintes. A nobreza de Riosucio, que, pelo que entendi, são nomes grandes da indústria mineradora, tem os melhores assentos nos andares superior, à sombra, se abanando no calor do meio da tarde, jogando latas de cerveja vazias nos touros e lançando duras críticas à coragem dos corredores. O resto da cidade faz piquenique nos morros vizinhos ou se pendura atrás das grades do ringue, onde os corredores sobem desesperadamente sempre que uma investida mortal parece iminente.

Publicidade

Nicolas Lerma, o bobo da corte, estava lá, num traje completo de matador, enquanto era levado tropeçando pelo ringue pelo colega Hector Mario Ramírez, gritando proclamações bêbadas para o público. Os dois voltariam em novas fantasias mais tarde naquele dia, dessa ver na praça superior, em frente à procissão do enterro do diabo.

O reino de satanás na Terra, ou na pequena extensão de Riosucio, Colômbia, é breve e trágico. O carnaval, que começa com pompa e frenesi, acaba com um desfile sombrio, além de bêbado, pelas ruas da cidade.

"Diabo, como você pode nos deixar?"

"Diabo, fique. Fique. Nós imploramos."

"¡Que dolor tan hijodeputa!"

São alguns dos gritos que pontuam o coro da salsa que emana da praça. Atrás da calabaza cerimonial marcham um secto de adoradores encapuzados do Diabo e "viúvas" chorosas, repetindo preces sombrias no calor da noite. Na ponta da fila, soando um grande sino de funeral carregado num poste por dois capangas satânicos, Lerma e Ramírez clamam aos céus, aceitando doses ocasionais de espectadores impressionados com a performance (comprovada pela habilidade dos bobos de produzir lágrimas verdadeiras).

"Por que, Diabo? Por quê? Você acha justo nos deixar sem motivo, depois de cinco noites juntos? Por quê?"

O diabo não oferece uma explicação para sua partida repentina e inesperada. Mas faz um discurso reforçando os valores da alegria e do amor, entrando depois – junto com uma de suas esposas, uma diaba amarela de 9 metros – numa nuvem de chamas e fumaça preta no coração da praça da cidade.

"Eu vou", diz o diabo, falando através de outro de seus vassalos. "Mas habito em cada um de vocês. E vou voltar."

Seven Cohen é um jornalista freelance que vive na Colômbia. Ele é ex-editor do Colombia Reports.

Tradução: Marina Schnoor