Os trailers nostálgicos do Cecap, em Guarulhos, não querem dizer adeus
"Eu dependo desse trailer", lamenta Edgar Oliveira, de 56 anos. Foto: Felipe Larozza/ VICE

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Os trailers nostálgicos do Cecap, em Guarulhos, não querem dizer adeus

Há mais de 30 anos no local, os trailers estão sendo ameaçados. O prazo para saírem da área, de acordo com a Prefeitura, é dia 10 de agosto.

Descai das pálpebras do vira-latinha preto aquele olhar bondoso de cão que ama viver solto. Atrás dele, que permanece deitado na calçada como um rei, um trailer azul exibe pacotes de salgadinhos que fizeram a infância de muita gente feliz, como a célebre (e de preços sempre dignos) pururuca, conhecida pela tríade sabor de bacon, crocância extrema e listras vermelhas. Cenários que despertam saudade de outras décadas emolduram o Parque Cecap, bairro do município de Guarulhos repleto de trailers surrados que ajudaram a construir a história do lugar. Na última quinta-feira (4), porém, um comunicado caiu como um acinte no colo dos comerciantes da região: a Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SDU) informou que, diante da atividade econômica irregular, apreenderia e removeria os trailers no dia 10 de agosto.

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Responsável pelo pão de alho mais famoso da região, Sérgio de Castro, conhecido como "Serginho", 63, lamenta a batalha travada entre os proprietários dos trailers e a Prefeitura de Guarulhos. "O que percebemos é falta de planejamento dos setores. Eles não falam a mesma língua, não têm um projeto definitivo que venha solucionar o problema e nos ajudar", pontua. Todos os comerciantes entrevistados pela VICE alegaram a mesma coisa: querem trabalhar regularmente, mas nunca receberam nenhum documento que normatize os estabelecimentos.

"Estamos feito pingue-pongue. De lá pra cá", resume Antônio Mendes "Toninho", 65, cujo trailer existe desde a década de 90. "Não temos autorização pra trabalhar, eles não dão. Nunca tem uma definição. O máximo que conseguimos é um protocolo de funcionamento provisório."

Um vira-latinha preto descansa na calçada em frente a um dos trailers do Cecap. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Guarulhos justificou que os trailers não possuem licença de funcionamento, alvará sanitário e outros documentos que regulamentem a atividade. Além do mais, o terreno em questão pertence à Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), órgão do governo do estado de São Paulo. "Portanto, todos estão irregulares e com diversas denúncias de perturbação do sossego público", finalizou a nota oficial.

O pedido de entrevista feito ao secretário da SDU, Paulo Carvalho, não foi atendido até a publicação desta reportagem.

Na internet, um abaixo-assinado já colheu mais de 500 assinaturas contra a remoção dos saudosos trailers. Morador do bairro desde o nascimento, há 33 anos, o fotógrafo Léo Ilheié apresenta uma teoria peculiar e relembra que o assunto não é novidade. "Praticamente em todo ano de eleição os caras sofrem esse tipo de ameaça, de retiradas dos trailers", afirma. Rumores de que a Prefeitura queira uma padronização dos estabelecimentos também existem, mas nunca foram documentados ou sequer apresentado aos comerciantes. Para o fotógrafo, isso também removeria o aspecto cultural e histórico do lugar. "Eu acho os trailers daora, mas muita gente fala que são feios."

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Diante do imbróglio, muitos comerciantes e frequentadores estão desolados com o fim dos pequenos comércios nostálgicos do Parque Cecap – cada um apostando em seu estilo particular, que vão desde cartazes escritos à mão até iguarias alimentícias como o "pastel enrolado". Emocionada, uma moradora de 68 anos e fã do trailer que funciona como ponto encontro dos Abutres (sim, aqueles motoqueiros roqueiros que usam roupas pretas de couro e que não curtem serem chamados de motoqueiros) em frente ao seu prédio falou à VICE com lágrimas nos olhos. "Eles me beijam, me chamam de mãe", suspirou dona Geni Delfine. Abaixo, entrevistas que foram editadas para melhor compreensão.

Foto: Felipe Larozza/VICE

Sérgio Maurício de Castro, "Serginho", 63. Proprietário de trailer no Parque Cecap há mais de 15 anos.

VICE: Como o senhor vê essa retirada dos trailers, Serginho?
Serginho: Não sabemos se eles querem melhorar o bairro, se querem a retirada definitiva dos trailers ou se querem trazer comércios mais caros. A cultura do Cecap são os trailers. O pessoal tá acostumado. Temos segurança, temos um lazer barato. Isso aqui se chama família Cecap.

O que você mais vende no seu trailer?
Em matéria de tira-gosto, é o pãozinho de alho. Também fazemos caldos, que custam de R$5 a R$8. Já o famoso pãozinho de alho eu vendo por R$4,50 a unidade. Segundo o público, é o melhor pão de alho do Cecap. Ou de Guarulhos.

Foto: Felipe Larozza/VICE

Cigano (ao meio, com o escudo), 50, e seus amigos Abutres. Proprietário de trailer há sete anos.

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VICE: Quando você começou a desmontar seu trailer?
Cigano: Hoje. O prazo é até amanhã (10 de agosto) pra retirar tudo. Senão, o caminhão vai vir e passar por cima.

E o que isso significa pra você?
Um transtorno. Tem muita gente que gosta de vir tomar uma cervejinha no trailer. Quem não quer cozinhar de domingo vem comer um franguinho aqui.

Queremos nos organizar. Queremos um projeto pra que possamos legalizar nossos trailers, fazer tudo num padrão só. Se a Prefeitura determinar, vamos fazer.

Como você vai fazer daqui pra frente?
Não sei o que vou fazer da vida. Meus irmãos estão me ajudando. Eu mantenho minha família através do meu trailer.

Você é do Abutres, né?
Sou. O trailer é um ponto de encontro dos Abutres. A família Abutres vem tomar uma cervejinha de domingo, botamos uma musiquinha. Vem família, criança.

O que é mais vendido no trailer?
Fazemos um churrasquinho e bebemos uma cervejinha na paz.

O que você acha que falta pra resolver esse imbróglio todo com a Prefeitura e a Secretaria de Desenvolvimento Urbano?
O que falta aqui é união. Em outra época, propûs fazer a associação dos trailers. Precisamos nos unir. Se tivéssemos nos unido desde o início, não estaria assim agora.

Pra onde você vai levar seu trailer?
Os Abutres me ofereceram a sede. Vou levar tudo pra lá porque não tenho onde guardar. Eu tô sem condições, eu tô sem rumo.

E como você vai sobreviver financeiramente nos próximos dias?
Eu não sei. Eu tô com 50 anos de idade. No Brasil, quando você faz 40 anos não é mais homem. Só pra pagar imposto. Mas pra ter seus direitos e trabalho, você é velho. Vou tentar montar outra coisa em outro lugar. Vou pedir ajuda ao clube. Tô até emocionado [chorando]… Vou tentar vender alguma bebida, fazer alguma coisa. Desculpa. Eu tô emocionado. Se não fossem os meus irmãos, eu já tinha feito uma besteira.

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Foto: Felipe Larozza/VICE

Geni Delfine, 86, moradora do Cecap há mais de 30 anos. Na foto, está ao lado de seu amigo, Cigano.

VICE: A senhora gosta do trailer do Cigano?
Geni: Ele chega, liga o rádio e meu coração se alegra. É a minha distração. Da minha janela, eu escuto ele.

Então a senhora não fica brava com o barulho?
Não. Quanto mais barulho faz, mais eu gosto. Ele coloca músicas que eu gosto. Pink Floyd, Dire Straits. Ele só trouxe alegria pra nós. Eu não queria que ele fosse embora. Ladrão pode roubar. Os políticos roubam. Agora uma pessoa que está ganhando a vida e dando alegria para os outros, não pode trabalhar.

A senhora já andou de moto com eles, Dona Geni?
Não. Eu não tenho coragem. Mas eles são respeitadores. Como eles me consideram… Me beijam, me chamam de mãe. São educados, não mexem com ninguém. Eu tô muito triste [chorando]. Eu tô muito triste, do fundo do meu coração.

Foto: Felipe Larozza/VICE

Antônio Mendes, "Toninho", 65, proprietário de trailer no Cecap desde a década de 90

VICE: Quando o senhor decidiu abrir um trailer?
Toninho: Eu estava procurando emprego e as portas já estavam fechadas por conta da minha idade. Comecei a me virar, procurando emprego, bico, mas não achava nada. Antes do trailer, eu trabalhei muitos anos em banco. Já fui bancário, motorista de turismo. Mas a situação começou a apertar. Não tinha mais emprego decente. Aí surgiu a ideia de abrir uma barraca de pastel. Da barraca veio o trailer. Já são 27 anos de trailer.

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Qual é o forte do seu trailer?
O carro-chefe é o pastel. Criei um estilo de pastel que surgiu de uma brincadeira. Eu faço ele enrolado. Deu certo e hoje tá bombando. O pessoal diz que gosta muito.

Quanto custa o pastel?
Eu cobro R$ 5 nos mais tradicionais, como carne e queijo. O de carne seca é mais caro, R$6. É o mesmo tamanho do pastel de feira, só que enrolado.

Como o senhor recebeu esse comunicado da Prefeitura?
Esse problema das notificações vem se desenrolando há muitos anos. O grande problema é que elas são baseadas em nada. Não temos autorização pra trabalhar, eles não dão autorização. Nunca tem uma definição. Estamos feito pingue-pongue. De lá pra cá. O máximo que conseguimos é um protocolo de funcionamento provisório.

E como está sua cabeça?
Fico tenso, nervoso, não consigo trabalhar. A gente fica até doente. É uma situação pela qual você não queria estar passando. Graças a Deus, temos uma comunidade a nosso favor.

Por duas vezes tive a ideia de montar uma associação dos comerciantes dos trailers. Mas, infelizmente, sempre tem aquele pessoal que não quer participar, não quer pagar. Acabei desistindo. Mas seria um meio forte pra gente.

Foto: Felipe Larozza/VICE

O pai Josué Dias Silva, 56, e o filho, Fabiano Costa Silva "Buiú", há 22 anos proprietários do "Trailer do Josué".

VICE: Fabiano, você trabalha no trailer?
Fabiano: Aos fins de semana, ajudando meu pai.

O que vocês vendem?
Refrigerante, salgados, cerveja.

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E como você está encarando essa situação?
O secretário [Paulo Carvalho] não veio em momento algum aqui dialogar com os comerciantes. Se não retirarmos os trailers e as mercadorias eles podem vir com trator, equipamento, Tropa de Choque e o diabo pra poder retirar. Estamos indignados porque veio do nada essa comunicação de retirada. O Parque Cecap não oferece nada. Aqui é nossa área de lazer de semana e fim de semana, pra tomar uma cerveja, bater um papo.

Se tiver de fazer a readequação, qual é a readequação? Nos dê um prazo. Qual é o prazo? Qual é o padrão? É preciso entregar isso pros comerciantes pra que eles possam se readequar.

O trailer é 100% da renda do meu pai.

Josué, como o senhor recebeu essa notícia?
Josué: Isso é um absurdo. É acabar com o trabalho da gente, com o lazer da gente. Ninguém dá um parecer, querem jogar a gente em qualquer canto. Fica difícil.

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