Cinco dias com ela: tratando o vício em drogas com ibogaína
As veias saltadas são um dos sintomas provocados pela ibogaína. Foto: Felipe Larozza/ VICE

FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

Cinco dias com ela: tratando o vício em drogas com ibogaína

Acompanhamos quatro pacientes que utilizaram ibogaína no Mato Grosso do Sul. Recorrer à planta africana envolve alucinações, visões, enjoo e mal-estar.

Procurar uma faca dentro de casa foi a única solução pensada pelo professor de capoeira Rafael Amorim, 36, para conter aqueles três homens mastodonticamente grandes que tentavam imobilizá-lo. O pai, responsável pela ida dos sujeitos até lá, tentava acalmá-lo – o que só aconteceu quando uma injeção no pescoço fez com que ele apagasse completamente e acordasse em uma clínica de reabilitação em São Paulo. Eis o momento em que a bad trip tomou forma de internação compulsória. Rafael ainda não sabia, mas 30 dias depois fugiria de lá, levando quatro dias para conseguir voltar até sua cidade natal – a mil quilômetros de distância – ao pegar carona estrada afora. Quando chegasse em casa, correria para um lugar que conhecia minuciosamente: a boca de fumo.

Publicidade

Histórias desconfortáveis permeiam a vida dos quatro dependentes químicos que participaram de uma expedição de ibogaína em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no início de agosto. Durante os cinco dias de tratamento com a planta africana, a VICE esteve no local acompanhando o processo – que também não é nada confortável. Entre os efeitos colaterais estão alucinações, visões, desconforto físico, emocional, vermelhidão na pele, veias saltadas, enjoo, queda de pressão (que pode implicar em uma parada cardíaca) e vômito.

A planta africana, cujo nome científico é Tabernanthe iboga, e da qual já falamos tantas vezes, é promissora quando o assunto é o vício em drogas. No Brasil, a taxa de recuperação de dependência química com tratamentos convencionais é, em média, de 10%. Pesquisadores da Unifesp entrevistaram 75 usuários de crack e cocaína que utilizaram a planta: no final do estudo, que levou um ano, 72% estavam longe das drogas. O resultado propício se repete em outros cantos do mundo.

Comprimidos usados no tratamento. Foto: Felipe Larozza/ VICE

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) afirma que, atualmente, não há restrições para a ibogaína no Brasil. "Não existem produtos registrados na Anvisa com ibogaína, não nos foram apresentados dados de publicações técnico-científicas ou estudos não-clínicos e clínicos […] Portanto, não é possível conhecer quais os benefícios da utilização nem quais os efeitos colaterais que pode causar", afirma a assessoria de imprensa do órgão.

Publicidade

Piscina, quadra de vôlei, rede, violão, celulares ligados, televisão. O cenário da jornada que enfrentaremos junto aos quatro "meninos" não era ruim. A expedição, realizada pelo Centro Terapêutico Soul Livre, especializado no tratamento com ibogaína, aconteceu em um sítio. Ao contrário da internação compulsória de Rafael Amorim, nada era proibido e ninguém estava ali à força.

Eduardo* curtindo um mergulho na piscina gelada no fim do primeiro dia de tratamento com a ibogaína. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Jorge Nahabedian, 28, terapeuta e fundador da clínica que funciona há um ano, explica que a aplicação das doses irá acontecer em partes. No país de Gabão, na África, adeptos da religião Bwiti mastigam a raiz da ibogaína para curar impotência sexual, esterilidade, picada de cobra e até mesmo mau olhado.

Já na expedição, o método implica em três doses de comprimidos, misturando os dois elementos fundamentais para o tratamento: o hidrocloreto da ibogaína e seus totais alcaloides. "Se você toma só um ou só o outro, não tem o resultado completo", justifica o terapeuta. A terceira e última dose consiste no dia mais punk do método, quando os efeitos se mostram mais agressivos.

As cápsulas da ibogaína e suas devidas doses. Foto: Felipe Larozza/ VICE

COMO IRÁ FUNCIONAR O TRATAMENTO COM A IBOGAÍNA

1º dia: 5 comprimidos de total alcaloides e dois comprimidos de hidrocloreto
2º dia: 5 comprimidos de total alcaloides
3º dia: 7 comprimidos de hidrocloreto

DIA 1

Adepta da ayahuasca, a família de Jorge comparece ao sítio durante a noite, onde será ministrado um trabalho com o chá. "Ajuda no despertar espiritual de cada dependente químico", explica o profissional.

No primeiro dia, os pacientes aceitaram o convite para participar de um ritual xamânico e ingerir ayahuasca. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Publicidade

Tudo está pronto para o ritual xamânico: sobre a grama, cadeiras e colchonetes circundam uma fogueira. Músicas que falam sobre a bebida, conhecida também pelo nome de daime, tocam na caixa de som – algumas são bem cafonas, outras super religiosas. O céu está estrelado pique interiorzão e, ainda que estejamos no inverno, a temperatura sul-mato-grossense é amena. Convidada a provar a ayahuasca, declino elegantemente, com medo de que não conseguir acompanhar tudo de forma sã para a reportagem – e também por extremo cagaço e falta de familiaridade com o local e as pessoas. O fotógrafo da VICE, Felipe Larozza, se anima e topa encarar sua primeira experiência com o chá. Nos próximos dias, seria a minha vez.

Foto: Felipe Larozza/ VICE

Quarenta minutos se passam depois da primeira dose. Após sorver o líquido pela segunda vez, Larozza e um dos pacientes, que conheceríamos melhor no dia seguinte, parecem formar uma sinfonia caótica: ambos vomitam um ao lado do outro.

"Não foi uma experiência leve", confessou o fotógrafo, que vomitou mais de três vezes e reclamou das músicas. "Quando eu conseguia relaxar e deixar a mente seguir no desejo de viajar, eu via coisas ruins, como policiais, pessoas mortas, formas sem cores." Depois da segunda dose, porém, a sensação foi boa. "Vi coisas ligadas a minha família e às pessoas que amo."

Durante o ritual da ayahuasca. Foto: Felipe Larozza/ VICE

A AYAHUASCA

É a mistura do cipó Mariri com a folha de chacrona – ambos nativos da Amazônia – que compõe a ayahuasca, cujas origens não são precisamente conhecidas. Seu princípio ativo é a dimetiltriptamina (DMT), composto psicodélico existente no próprio organismo humano e em outras plantas.

Além de fazer parte de rituais de tribos indígenas amazônicas, a bebida é usada em trabalhos espirituais de diversas religiões, sendo o Santo Daime uma das principais. O antropólogo Darcy Ribeiro, que dedicou parte de sua vida ao estudo da sociedade indígena, afirma que a ressignificação da ayahuasca para essas religiões e doutrinas foi "um momento de grande troca cultural entre populações indígenas e nordestinas que entraram em contato".

Acredita-se que a ayahuasca leva a pessoa a visitar o "astral" e sentir "a força", como são chamados o mundo espiritual. Seus efeitos implicam em ativar áreas do cérebro responsáveis pela visão e pela memória.

Vômitos, gases, diarreia e bocejos são algumas das reações conhecidas como "limpeza" durante a ingestão do chá.

Publicidade

DIA 2

Acordamos às 7h30 da manhã com o galo cantando, literalmente. Para aplacar o achaque da noite anterior, uma verdadeira "larica dos mulekes" matinal nos espera à mesa: pão caseiro, manteiga, ovos mexidos, leite, achocolatado e muitas frutas. Logo em seguida, chega a hora da primeira dose de ibogaína. Em silêncio, cada um toma sua leva de comprimidos.

Em roda, na varanda, os meninos conversam, se conhecem e nos conhecem. Alguns relatam suas experiências com a ayahuasca. Rafael, o capoeirista, parece mal, aflito. Conversa pouco e vai pra dentro da casa. "É abstinência", suspeita um deles.

De tarde, a televisão virava preferência nacional. Foto: Felipe Larozza/VICE

De tarde a televisão virava preferência nacional. Foto: Felipe Larozza/ VICE

O dia transcorre bem, sem muitos efeitos colaterais provocados pela planta. Exceto para Renato*, 23, que passa o dia todo sem conseguir comer e sofre com o mal-estar estomacal. "Eu ia ao banheiro e vomitava água, água e água. Aí eu deitava e depois vomitava mais água. E não tinha mais nada pra vomitar", fala o mais recluso entre os quatro pacientes. Com sérios problemas de atenção e o uso excessivo de maconha, Renato já tentou medicamentos controlados para largar a erva. "Minha mãe queria me internar, mas minha irmã falou pra procurarmos um lugar mais natural, que fosse mais suave. E aí ela chegou até o Jorge."

Outras drogas também viraram problema. "Uma vez tomei um doce e fui até outra cidade a pé. Fiquei muito alterado", diz sobre a experiência com LSD. "A maconha me deixa mais quieto, mais retraído e mais sem vontade de sair, de fazer as coisas. Isso me atrapalha muito", relata, com a voz baixa, enquanto conversamos à beira da piscina.

Publicidade

Renato*, o mais recluso dos pacientes, procurou o tratamento para largar a maconha. Foto: Felipe Larozza/ VICE

No fim do dia, a carne estala dentro da panela sobre o fogão a lenha comandado pela dona Benedita, senhora de descendência indígena responsável pelos rangos simples e deliciosos. Enquanto o céu escurece, os meninos ouvem o depoimento de Carlos*, um músico que completou o tratamento com iboga há 10 dias. "Fui acompanhar minha namorada na fisioterapia e fiquei esperando na salinha. Só tinha gente idosa. E eu comecei a gostar das piadinhas das velhas. Comecei a achar graça na vida. Comecei a ver tudo colorido, a viver de novo, sentir a felicidade."

Na cidade de Campo Grande, a mistura de folha de coca, cal e gasolina é conhecida como pasta-base, zuca ou crack. Durante dois anos, Carlos utilizou a combinação, além de maconha, cocaína e cigarro. "Foi muito intenso. Eu arregacei mesmo. Já estava amigo de todos os boqueiros. A galera brigava pra vender pra mim, porque eu só escolhia o melhor", rememora o músico. Uma semana depois da expedição, me encontrei com Carlos e sua namorada na cidade de São Paulo. Ele estava feliz por ter ido ao estádio novo do Palmeiras, seu time do coração, e disse que continuava firme e forte longe das drogas.

No sítio, eram quase 23h e, em vez de dormir, os moleques discutiam algum filme pra assistir. Um deles saiu do banheiro e disparou: "Alguém esqueceu 'a força' na privada", zoando com o termo utilizado dentro do trabalho da ayahuasca e fazendo geral dar risada. Quando o assunto volta para a escolha do filme, Rafael faz uma objeção: "Terror não. Tenho medo. Tô tomando esses trem aí…".

Publicidade

Acabaram escolhendo A Grande Virada, com Ben Affleck. Dublado.

DIA 3

"Não tinha nenhuma ação", reclama Eduardo*, 25, sobre o filme da noite anterior. Aparentemente, nenhum dos quatro curtiu muito o drama de John Wells.

Antes do café da manhã, é distribuída a segunda dose de ibogaína. Dessa vez, o mal-estar será mais tranquilo do que o do dia anterior. Pra deixar a refeição matinal com mais sustância e malemolência, Eduardo vai pro fogão e faz ovos mexidos com queijo pra todo mundo.

Depois de jogar vôlei na quadra de areia, Eduardo encarou uma ducha gelada à beira da piscina. Foto: Débora Lopes/ VICE

Foi em 2011 que o corintiano fanático – quando joga, atua como goleiro – começou a cheirar cocaína. Mas só em 2015 que o vício extrapolou os limites. Ele conta que chegou a gastar R$ 5 mil por mês com a substância.

E não foi só a conta bancária que ficou negativa. "Perdi uma mina porque menti pra ela que eu tinha parado. Aí dormimos juntos e acordei de madrugada pra usar. Ela viu", recorda Eduardo, que já passou por uma internação. "Quando fui pra clínica, no começo de 2014, eu pesava 50 kg. Hoje tô com 78 kg. Eu estava só o pó. Seco, chupado."

O corintiano Eduardo, que chegou a gastar R$ 5 mil por mês com cocaína. Foto: Felipe Larozza/ VICE

O tratamento intensivo ajudou, mas não o suficiente para largar totalmente a droga. Por isso, ele e a família buscaram a ibogaína. "De dois anos pra cá, não penso mais nos meus pais, penso em mim. Se você for [buscar tratamento] pelo seu pai e pela sua mãe, você não para. Você vai amenizar. É o famoso PP, como falam em clínica: 'passar pano'. Você fica lá quatro meses, passa um paninho e depois volta."

Publicidade

O terapeuta Jorge Nahabedian. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Jorge, o terapeuta, compara a ibogaína com as técnicas utilizadas em clínicas de reabilitação. "Quando você faz internação por seis meses, o organismo já está desintoxicado das drogas, mas não da própria consciência, que estimula aquele estado de ansiedade." Para ele, não basta manter distância das substâncias. "O cheiro, a sensação, o gosto, a vontade de usar, de sentir aquele 'prazer' de novo não para. É aí que a ibogaína entra em ação. Ela interrompe esse processo", defende.

Ele diz que a planta africana faz com que um novo processo químico comece dentro do cérebro do paciente, trazendo de novo um nivelamento dos neurotransmissores, fazendo com que a pessoa volte a sentir prazer, alegria e bem-estar – funções que, até então, eram executadas temporariamente pela droga. Por isso, além da planta, Jorge alia sessões de conversa para abordar os medos e desejos de cada um.

Durante todas as tardes, os quatro pacientes preferem ver qualquer besteira na TV do que ficar ao ar livre. A água da piscina, que mesmo com o calor permanece gelada, é um desconvite.

Um dos profissionais da Soul Livre Centro Terapêutico, o assistente Gabriel dos Santos, ora ou outra oferece para quem está ao redor o rapé, mistura de pó de tabaco e plantas medicinais há séculos utilizada pelos indígenas. "O índio conhece a floresta inteira. Ele sabe o que serve e o que não serve", pontua Jorge. "Segundo os indígenas, o rapé pode curar muitas coisas, como energias negativas, espíritos e coisas ruins."

Publicidade

Eu, recebendo uma aplicação de rapé, pó indígena feito de tabaco e plantas medicinais (e sofrendo). Foto: Felipe Larozza/ VICE

Entretanto, há seus poréns e cuidados. Por conta do tabaco, o rapé pode viciar. Outras reações possíveis são espirros, tremores, queda de pressão e até mesmo o vômito. Um pote com o pozinho, cuja venda não é proibida no Brasil, custa, em média, R$ 30. A pessoa pode se auto aplicar com um instrumento chamado kurupi ou, como eu, receber a ajuda de alguém.

Na foto acima, você pode notar o meu queixo praticando um duplo twist carpado devido ao ardor lancinante provocado pelo rapé soprado pelo Gabriel, cujo apelido é, por motivos sacáveis, "Pajezinho". Na hora, a sensação é de total desconforto. Ao assoar o nariz, o papel higiênico fica repleto do pó, ganhando uma coloração mais escura. Mas, depois, o nariz parece descongestionado, arejado. No âmbito espiritual, confesso: não senti nada.

Papéis sujos de rapé. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Em todos os cantos do sítio encontrávamos papeis sujos de rapé, o que era meio nojento.

Antes de a noite cair, Rafael, cuja história da internação compulsória apareceu no primeiro parágrafo desta matéria, dá uma aula de capoeira pra quem está no sítio. Ele fica visivelmente emocionado em retomar uma das coisas que mais gosta de fazer na vida.

Usuário de pasta-base (aquela mistura que mencionamos anteriormente) há 19 anos, Rafael brinca que "gostava mais do que lasanha". Nos últimos quatro anos, conta que ficou "invernado", gíria para quem usa a parada excessivamente e tem a rotina tomada completamente pela droga. O pior dia de sua vida foi quando apareceu de moto na favela para reabastecer o estoque e dois sujeitos tentaram assaltá-lo. "Eles me derrubaram e quase me mataram na paulada. Só pararam de me bater quando um cara deu um tiro pro alto. Fiquei lá, desmaiado, e depois fui de ambulância pro hospital. Eu vi a morte. Deus me livre. Eu tenho um medo de morrer da bexiga."

Publicidade

O professor de capoeira Rafael Amorim durante a aula. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Sobre a internação compulsória, as memórias são ainda mais tensas. "Fiquei 30 dias lá. Foi o pior lugar do mundo pra mim. Pior que cadeia. Não gosto nem de lembrar. Peço pra Deus dar força para aquelas pessoas que acreditam nisso e vão lá pra se recuperar, mas, pra mim, é desumano."

Depois de negociar com a família, composta por uma irmã psicóloga que insistia na internação, o capoeirista topou ir para outra clínica. Lá, a coisa seria mais suave. Se ele quisesse ir embora, podia. E foi. "Fiquei só dois dias. Vi que era a mesma coisa. O mesmo sistema", fala.

A primeira vez que ouviu falar de ibogaína foi quando encontrou um parente que havia largado as drogas recentemente. "Um primo que era pior do que eu. Nossa senhora." Durante uma festa junina de família, o tal primo comentou que havia parado depois de fazer um tratamento com a planta africana. "Uma hora, entrei no banheiro. Quando peguei meu isqueiro, que dei uma cheirada, ele falou: 'Já tá aí, né'. Perguntei se ele estava a fim e ele disse 'Ô, rapaz, já falei. Eu parei com essa porra. Eu não quero mais isso não'."

Impactado pela firmeza e resistência do primo, Rafael recorreu a um tio com boas condições financeiras que topou bancar o tratamento. "Ele perguntou se eu queria parar com essa porra e eu disse que sim", se emociona. A rapidez do procedimento, que leva menos de uma semana, é um diamante para os olhos de muitos dependentes, que relutam sobre a ideia de passar seis ou mais meses internados sofrendo com a abstinência.

Publicidade

Minutos antes de tomar a ayahuasca. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Com a minha curiosidade avançada sobre a ayahuasca, acontece um novo trabalho na noite do terceiro dia, muito similar ao que vimos assim que aportamos no sítio. Fogueira, músicas que exaltam a natureza, Deus e a bebida. Por conta da ibogaína, os pacientes não puderam participar – o que não impediu ninguém de fazer piadinha e ir até o local para ver se "a repórter não estava vomitando ao sentir 'a força'".

E, não. Não vomitei. Ingeri as três doses durante cinco horas de trabalho e vivenciei uma experiência acachapante com o chá. O negócio me botou emocionada. Pra valer. Revi coisas da infância, chorei, vi cores malucas, cenários enjoativos e bregas, me enfiei debaixo do edredom quando tive um ataque de riso e bocejei muito, mesmo que sem sono – o que, de acordo com Jorge, faz parte do processo de limpeza, que "pode vir com vômito, diarreia e, às vezes com o bocejo ou com lágrimas". Antes de passar pelo ritual, senti a sola do pé suar no chinelo. Era medo de ver coisas que não queria, de alucinar, de passar mal ou de precisar ser levada até o hospital ("chama o Chamú", zoava o Eduardo). Medo de tudo. E foi sentindo medo pra cacete (e muita ansiedade) que pude entender minimamente do que falavam os quatro pacientes quando mencionavam o dia da última dose de ibogaína.

DIA 4

Chega o dia mais esperado exatamente por ser o pior: o dia do "reset", como é chamado o momento da dose mais forte. Alertados sobre os efeitos da ibogaína e com a notícia de que deveriam ficar em jejum por algumas horas, os moleques parecem apavorados. "Seis pílulas branquinhas?", contesta Rafael referindo-se aos comprimidos de hidrocloreto. O clima piora quando o terapeuta pede que evitem cigarros (três deles fumam). Sisudo, o paciente levanta a voz e fica ainda mais indignado: "Você não avisou que eu teria de ficar sem fumar, cara". O silêncio sepulcral de todos ao redor denota o momento constrangedor – a ponto de o profissional ceder com relação ao tabaco: "Você quem sabe. Se quiser fumar, fuma".

"Estou com medo de dormir e morrer", admite Rafael, agora com o tom de voz mais ameno, baixando um pouco a poeira cósmica do horror que ficou pairando no ar. É o principal momento de todo o tratamento. Ninguém quer entrar na bad trip tão cedo e colocar tudo a perder com uma discussão. E o terapeuta rebate com poesia: "Você vai renascer, cara".

Publicidade

Os outros permanecem em silêncio, mas estão visivelmente assustados. Um deles quebra o gelo: "Medo de fumar uma pastinha-base não dava, né?". E todos riem.

A enfermeira Arcilene Vargas (ao centro). Foto: Felipe Larozza/ VICE

Para o dia da dose mais forte, é preciso um profissional de enfermagem acompanhando o processo. Adentra, então, o cenário Arcilene Vargas, enfermeira que, antes da ibogaína, ministra medicamentos para conter a indisposição do aparelho digestivo.

Durante as primeiras horas, os quatro ficam deitados no quarto sob os cuidados dela, que checa a pressão e os batimentos de cada um. "A ibogaína tende a dar uma queda de pressão muito brusca – o que pode levar a uma parada [cardíaca]. Diante disso, temos de ficar de uma em uma hora vendo as reações deles", informa.

O primeiro a levantar é Rafael, dizendo que está com fome. Jorge sugere que ele ainda não coma, mas o capoeirista insiste. Quando pega o prato e se aproxima das panelas, vê a comida e, instantaneamente, fica com ânsia de vômito, sendo socorrido pela enfermeira, que o conduz até a grama. "Eu falei", profere o terapeuta. "Eles até podem sentir fome, mas não conseguem comer."

Com os olhos mais abertos do que de costume e as veias dos braços saltadas – isso ocorre porque a ibogaína causa vasodilatação –, Rafael circula pela casa falando mole, como se estivesse sob efeito de calmantes. "Eu sou um cara efusivo. Não consigo ficar trancado no quarto se não for pra dormir." Ele também menciona o fato de ver luzes que parecem um flash fotográfico.

Publicidade

Já no período da tarde todos parecem menos azumbizados e dizem que os efeitos não foram tão ruins quanto imaginaram. A equipe da Soul Livre fica surpresa: é a primeira vez que a turma de pacientes sente fome e bem-estar com tanta antecedência.

Pelos próximos 30 dias, para ajudar no combate à abstinência, os quatro serão tratados com Heantos, um medicamento vietnamita fabricado a partir da junção de diversas ervas.

DIA 5

Não é verdade que a ibogaína seja uma planta milagrosa, como muitos sites propagam. O tratamento pode curar o vício, mas existem casos e casos. Um deles é o do consultor financeiro Eudes Melo, 33, que, durante a expedição, repetiu o método. Usuário da tal pasta-base há 15 anos, ele havia tomado ibogaína pela primeira vez em julho de 2015, mas teve uma recaída. "Da primeira vez, acho que fui pego de surpresa e não fiz como deveria ser feito. Não tive toda essa busca, não me preparei pra receber a ibogaína como fiz agora", relata.

O consultor financeiro Eudes Melo, 33, que tomou ibogaína pela segunda vez. Foto: Felipe Larozza/ VICE

"Na primeira vez, passei mal. Teve um dia que fiquei bem na bad mesmo. E no reset, não aproveitei muito. Eu dormi. Logo no primeiro momento em que tomei, eu dormi. Dessa vez, já foi bem intenso."

Eudes, que já trabalhou como garçom e barman, hoje tem sua própria empresa de consultoria financeira. Frequentador da igreja católica junto com a esposa, ele também é adepto da ayahuasca – "não tenho uma religião formada. Vejo muito a espiritualidade".

Aos 18 anos, quando teve contato com drogas mais pesadas, sentiu o baque. "Foi quando comecei a fazer insanidades pra usar, como roubar dentro de casa." Trabalhar na noite degringolou ainda mais sua relação com as substâncias. "Eu ia todos os dias porque precisava do dinheiro pra fazer o uso, mas chegou um certo momento que eu não aguentei emocionalmente e fisicamente."

Eudes rememora um dia especialmente ruim. "Meus pais estavam viajando e liguei para os bombeiros para pedir ajuda, pra eles me tirarem daquele ciclo que eu não estava aguentando mais."

Eudes tocando uns sons pantaneiros num fim de tarde. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Às moscas num dos bancos da varanda, um violão é constantemente dominado por ele, que, apesar de falar pouco e ser reservado, manda benzão nuns sucessos pantaneiros. "Pelo fato de o nosso estado ser muito forte na música sertaneja, sempre gostei. Ainda mais sertanejo raiz, como o do Almir Sater."

Ansioso para ir embora, o empresário assume que não vê a hora de encontrar sua família. "Eu estou muito esperançoso, muito feliz por ter passado esses cinco dias aqui. Foram dias em que senti muita felicidade mesmo."

O professor de capoeira Rafael Amorim. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Felicidade, aliás, que poderia virar o sobrenome de Rafael, que deixa as bermudas de surfe de lado pra entrar num jeans mais justinho com regata branca e chapéu. "Hoje eu tô que tô, maluquinha", fala, me chamando pelo apelido desconhecido que ganhei dele nos últimos dias. Diferente do cara sisudo que todos conheceram e que contestava o terapeuta o tempo todo, Rafael está numa alegria fulminante. "Quero espalhar essa euforia pra todo mundo, como estou fazendo aqui com vocês. Daqui pra frente, só quero mostrar esse lado meu. Botar todo mundo pra cima. Vou voltar a malhar, a treinar, vou voltar. Agora eu tô na pista."

Hora de deixar Campo Grande. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Durante a entrevista final, ele se emociona ao falar da mãe, que há 15 anos morreu de câncer. Lembra também de quando contou para a família que estava viciado. "Teve uma hora que meu sofrimento estava tanto que a minha angústia era perder a minha família. Pensei que eu mostrava que era um drogado pra tanta gente que eu mal conhecia, mas não mostrava pra minha própria família que queria me ajudar", suspira, emocionando todo mundo que está ao redor acompanhando a entrevista. "Agora é vida nova", conclui o professor de capoeira um pouco antes de almoçarmos todos juntos pela última vez.

*Os nomes de alguns dos entrevistados foram trocados para proteger suas identidades

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.