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Um Acordo de Paz com as FARC Não Vai Resolver o Problema da Cocaína na América Latina

Embora o presidente colombiano Juan Manuel Santos tenha pedido que o mundo imaginasse seu país "sem a coca".

Na Assembleia Geral da ONU do ano passado, o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, pediu que o mundo imaginasse seu país "sem a coca", a planta precursora da cocaína. Esse "sonho", que teria sido impensável uma década atrás, agora é pelo menos plausível com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), o maior grupo rebelde do país, assinando um acordo de paz preliminar e formando uma parceria com o governo para implementar programas que substituam as plantações de coca por outras plantas.

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Mas a produção de coca nunca foi o ponto focal do tráfico de entopercentes colombiano, e as FARC só têm um papel marginal na movimentação de cocaína para mercados estrangeiros. O maior problema das drogas na Colômbia é, e sempre será, que elas são ilegais no mundo, e a guerra global às drogas não está tão perto de acabar quanto a insurgência das FARC. Ainda há muito dinheiro em jogo.

Foi um acidente geográfico que trouxe a cocaína para esse país em primeiro lugar. Vastos territórios com pouca ou nenhuma presença do Estado, além de costas para o Atlântico e o Pacífico, tornaram a nação um dos principais centros marítimos. Aninhado entre regiões tradicionais de cultivo ao sul e rotas de contrabando da América Central ao norte, a Colômbia se tornou – e, graças à ascensão do Brasil como maior consumidor, vai continuar sendo – um cruzamento-chave do suprimento e da demanda internacionais. Pablo Escobar, que se tornou um sinônimo de cocaína como cocaína é sinônimo de Colômbia, construiu um império como intermediário, não como produtor.

Os grupos paramilitares de direita fundados – e, em alguns casos, até financiados por Escobar e outros barões da droga, que tentavam mascarar suas atividades sob o disfarce de contrainsurgências da Guerra Fria – tiveram um papel muito maior no tráfico internacional do que as FARC tiveram em toda sua história. Na verdade, a incursão inicial dessa guerrilha no tráfico foi facilitada pelos mesmos grupos cuja missão, ostensivamente, era eliminá-lo.

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Todas as ilustrações por Giulia Sagramola.

Financiados pelos lucros exorbitantes da explosão das drogas nos anos 80 e começo dos 90, os esquadrões militares do começo deste século embarcaram na maior apropriação de terras da história colombiana, uma campanha que sobrecarregou o país com a segunda maior população internamente deslocada do mundo. Muitos refugiados foram às cidades, sobrecarregando uma rede social já porosa e aumentando a subclasse urbana, que fornece o suprimento constante de soldados às redes atuais do narcotráfico e um mercado doméstico crescente para as drogas.

Ao mesmo tempo, outra migração foi pressionada a se afundar nas selvas e planícies de pastagem parcamente povoadas que foram efetivamente cedidas às guerrilhas, ao mesmo tempo em que pragas e repressão internacional empurravam a produção de coca para a espinha dos Andes. A coca, uma cultura resistente e de alto rendimento, convergiu em áreas ideias de cultivo juntamente com um influxo de colonos desesperados por um meio de sobrevivência. Em 1999, mais de 160 mil hectares do interior da Colômbia já tinham sido convertidos em campos de coca, tornando a região o maior produtor de cocaína do mundo e transformando as FARC de um bando de ladrões de estrada em um potente exército terrorista e uma ameaça legítima ao Estado colombiano.

"Esse movimento revolucionário não era dependente de Cuba ou da União Soviética", disse Todd Howland, representante da Comissão de Direitos Humanos da ONU na Colômbia, à VICE. "[As FARC] duraram tanto tempo depois da queda do bloco soviético porque sempre foram autossustentáveis."

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A coca, no entanto, não representou uma vantagem estratégica decisiva para os rebeldes. Em vez disso, o advento do cultivo doméstico em larga escala serviu para isolar o conflito armado na Colômbia como um todo. Como Adam Isacson, especialista sênior em Colômbia do Washington Office on Latin America (WOLA), me disse, "O envolvimento das FARC foi contra a corrente, taxando e protegendo as plantações de coca. Isso é dinheiro pequeno comparado ao transbordo, e as FARC nunca estiveram tão envolvidas em transbordo como os cartéis e os paramilitares".

Para entender essa dinâmica, é útil analisar como os lucros se distribuem pela cadeia de produção. Um fazendeiro de coca na Colômbia pode vender cerca de US$ 1,30 por quilo da folha ou até US$ 780 por quilo de pasta. Quando essa base é refinada, mas antes de sair da Colômbia, o quilo vale algo entre US$ 2.200 e US$ 7 mil, dependendo de quanto o produto viajou. Mas chegando, digamos, aos EUA, isso vale US$ 24 mil ou mais.

Tirando uma porcentagem das vendas ou comprando e revendendo pasta, as FARC ocupam agora o papel dos fazendeiros peruanos e bolivianos no começo do reinado de Escobar. Os paramilitares, que trabalharam com a inteligência norte-americana para caçar e matar "El Patrón", tomaram as conexões dos cartéis para o transbordo. As FARC não fizeram o melhor negócio, mas ainda tinham dinheiro suficiente para todo mundo. (O lucro das FARC com tráfico varia muito, mas o valor estimado estaria em centenas de milhões, no mínimo.)

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Dessa maneira, a extrema-esquerda e a extrema-direita do conflito armado na Colômbia acabaram compartilhando o que Howland chama de "incentivos perversos" para garantir que a violência continuasse. Assim como o próprio Estado, que tem recebido bilhões em auxílio internacional para lutar a guerra contra as drogas em nome do mundo, além de incontáveis milhões canalizados para oficiais em listas de pagamento secretas. Em 1994, uma pesquisa encomendada pelo exército norte-americano descobriu que tratamento médico era dez vezes mais eficaz, por dólar gasto, que interdição – em apreensão de rotas – para reduzir o abuso de cocaína domesticamente e 23 vezes mais eficiente do que a guerra global ao fornecimento de drogas. Nesse mesmo ano, um relatório secreto do DEA concluiu que as FARC "nunca serão grandes jogadores no tráfico de drogas na Colômbia".

Mesmo assim, cinco anos depois, o presidente norte-americano Bill Clinton seguiu com o Plano Colômbia, a maior iniciativa antidrogas da história voltada para o fornecimento. Os quase US$ 9 bilhões em ajuda militar que chegaram à nação, desde então, foram direcionados principalmente para a guerra do governo contra as FARC. Quer os fatos locais apoiassem a abordagem ou não, a luta contra as drogas nos EUA se tornou uma luta contra a produção na Colômbia, e a luta contra a produção de drogas na Colômbia se tornou a luta contra a "narcoguerrilha".

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No ponto em que o Plano Colômbia, previsivelmente, fracassou em impactar o preço e a disponibilidade de cocaína nos EUA, isso conseguiu lançar uma sombra sórdida sobre o país em relação a abuso dos direitos humanos. O exército colombiano executou quase 6 mil civis durante o pico do envolvimento dos EUA, uma prática que, desde então, tem sido correlacionada com a ajuda e – numa amostra insignificante mas, ainda assim, reveladora – o treinamento norte-americano. Devido aos laços entre o governo colombiano e os grupos paramilitares, um pacote de ajuda vendido sob os auspícios da guerra contra as drogas e depois reembalado em guerra ao terror ignorou amplamente – e até beneficiou – os maiores barões da droga da Colômbia, que também são os mais hediondos terroristas.

Mas nada encarna mais a futilidade e a negligência devassa do Plano Colômbia do que a fumigação aérea da coca, que perseguiu fazendeiros pobres na Colômbia com ainda mais zelo do que a política doméstica tem empobrecido os norte-americanos. (E não deveria ser surpresa que as comunidades prejudicadas da Colômbia são desproporcionalmente afrodescendentes e indígenas.) Desde 1999, aeronaves fornecidas pelos EUA, geralmente pilotadas por norte-americanos contratados, lançam toneladas de derivado herbicida daMonsanto no interior do país, aparentemente sem dar a mínima para as perturbadoras consequências ambientais, sociais ou de saúde pública decorrentes dessa prática.

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Qualquer terreno que o Plano Colômbia tenha ganhado com respeito à produção de coca – seja através da fumigação ou pela erradicação manual, sua política irmã mais efetiva e perigosa – foi por água abaixo em surtos correspondentes em países próximos, como o Peru. Esse "efeito balão" – esprema de um lado e o ar vai para outro – também fez a violência associada ao tráfico de drogas colombiano migrar para a América Central e o México, onde isso atingiu um nível de crise, e para o Brasil e a Argentina.

Enquanto isso, os incentivos de desenvolvimento originalmente agendados para proceder à fumigação foram porcamente planejados ou nunca colocados em prática. Fazendeiros que aceitaram voluntariamente substituir suas plantações assistiram a seus campos serem fumigados mesmo assim. Num caso muito infame, galinhas foram entregues a fazendeiros em Puntumayo, a área onde a fumigação foi mais concentrada. As galinhas, que tinham os bicos removidos para propósitos industriais, só podiam comer alimentos especiais; então, os fazendeiros foram obrigados a abatê-las quase que imediatamente.

Como parte do tratado de paz preliminar, as FARC concordaram em ajudar a encorajar a substituição de plantações. Líder da comunidade de cultivo de coca (mas não exclusivamente dela) que visitei na região de Putumayo no ano passado, Jule Anzueta está cética, especialmente considerando a falta de vontade do governo para realizar reformas agrárias ou renegociar o tratado de livre comércio da Colômbia com os EUA e outros países, o que encurrala o setor agrícola quase feudal do país contra o poderio subsidiado dos mercados estrangeiros.

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"Se eles não resolverem o problema fundamental, o que vai acontecer é que as pessoas que pararem de plantar por um tempo terão de cortar sua mandioca, banana e feijão e voltar à coca depois", Anzueta disse à VICE.

Além de reconhecer que "condições de pobreza, marginalização e fraca presença institucional" contribuíram para o fenômeno da coca, o acordo de paz preliminar concede tacitamente não só que a política de guerra às drogas fracassou, mas que isso foi imprudente e excessivamente punitivo para começo de conversa. E ainda assim a fumigação continua em muitas regiões, e o acordo deixa isso em aberto.

"Se as comunidades não estão cumprindo o plano e é muito perigoso fazer a erradicação manual, eles vão continuar pulverizando como costumavam fazer", explicou Isacson. Mas Isacson é mais otimista do que Anzueta em relação ao sucesso do desenvolvimento alternativo, mas também reconhece que isso só lida com o problema da produção. As drogas geram violência e corrupção na sociedade colombiana mais além da cadeia de comércio, em que os lucros reais se acumulam.

Os peixes nadando nessas águas são descendentes diretos dos tubarões que um dia dominaram essa região. Os sindicatos nacionais do crime (ou bacrim), atualmente em guerra pelo porto Buenaventura, no Pacífico, e por outros territórios estratégicos, são, na verdade, grupos neoparamilitares que emergiram depois da desmobilização falsa dos anos 2000. Eles são tão disciplinados quanto os cartéis que os procederam – e até mais implacáveis. Caso as FARC sejam desmobilizadas como planejado, há mais razão ainda para temer, já que membros desiludidos podem simplesmente se integrar a esses grupos, com quem já formam parcerias atualmente.

A única certeza é que, barrando dramaticamente o progresso econômico e social nas periferias negligenciadas da Colômbia, alguém vai se movimentar, em algum lugar, para preencher o vácuo deixado pelos rebeldes. Como Isacson explicou, "Ainda vão existir os laboratórios, as lanchas, os semissubmerssíveis e acordos com o México, e tudo isso não vai mudar, mesmo se as folhas forem cultivadas em outro lugar".

Se a história nos ensina alguma coisa sobre as drogas, é que a natureza abomina o vácuo. Desde a queda de Escobar, dezenas de outros traficantes de alto nível foram capturados ou mortos e centenas de milhares de quilos de cocaína foram apreendidos. Mas o tráfico de drogas não renunciou à sua influência sobre grande parte da sociedade colombiana, e há pouca razão para achar que desarmar as FARC vá mudar isso.

"Desde que haja demanda, sempre haverá oferta", escreveu Robin Kirk em More Terrible Than Death, um livro sobre seus 15 anos na Colômbia como observadora da Human Rights Watch. "É uma verdade tão imutável quanto o vício em si ou a sede humana por prazer e fuga, impossível de fumigar de nosso ser."

Ex-editor do Colombia Reports, Stevem Cohen é um jornalista freelance que trabalha na Colômbia. Siga-o no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor