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"Um Bom Policial"

Marco de Castro mede pouco mais de um metro e sessenta, mas nunca vi alguém chamá-lo de Marquinho. Foi à noite, quando trabalhava como repórter policial, que conheceu as desgraceiras que depois usou para escrever os contos de terror.

Marco de Castro mede pouco mais de um metro e sessenta, mas nunca vi alguém chamá-lo de Marquinho. Para todo mundo ele é o Marcão. Tem aquela presença que impõe respeito e, nos cuzões, até um certo temor. O que dizer de um cara que, no dia em que se cansou de fazer o turno da manhã no jornal onde trampava, pegou um formulário de auto-avaliação da empresa e tascou um recado para a chefia dizendo: “Entrando de manhã, sinto raiva e vontade de matar pessoas”. Não tem jeito. Marcão, editor-assistente de Cidades no Diário de S. Paulo, é mesmo um bicho de hábitos noturnos. E foi principalmente à noite, quando trabalhava como repórter policial do Agora SP, pisando em sangue de chacinas na periferia, que conheceu as desgraceiras que depois usou para escrever os contos de terror.

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Relutante, Jailton entrou na viela sem iluminação. O coração batia tão forte que o peito até doía. Suava. As pernas tremiam. Segurava o 38 com ambas as mãos e avançava devagar. À sua frente, a escuridão era quase total.

Havia saído da viatura e corrido atrás do ladrão por três quarteirões, até que o viu entrando ali. Sabia que o bandido estava armado. E imaginava um tiro partindo daquele breu em sua direção.

Tudo começou quando patrulhava a avenida Sapopemba com seu parceiro. Ao passarem por uma esquina, na área do Parque Santa Madalena, os dois viram o assaltante. Que apontava o cano para o motorista de um Honda Civic. Ao notar a viatura da PM, o bandido saiu correndo. Os dois soldados desceram do carro e, enquanto Rocha, o colega, ia até a janela do Honda, Jailton partiu atrás do mala.

Depois de duas semanas percorrendo as ruas daquela área da Zona Leste sem quase nenhum QRU, o PM encarava sua primeira prova real. Até então só havia atirado no recente treinamento. Evangélico, a última coisa que queria era matar alguém. Mas desempregado, tendo que alimentar os dois filhos pequenos, viu-se obrigado a prestar o concurso. Agora estava lá, no meio de uma viela escura, prestes a matar ou morrer.

A cada passo que dava, imaginava o mala saltando da escuridão e disparando. Estava desesperado. Quase no fim da viela, onde o breu era ainda mais intenso, ouviu passos. De repente, notou que um vulto avançava rápido em sua direção. Tentou gritar algo como “parado!”, mas a voz não saiu. Então atirou. Uma, duas, três vezes. Escutou o tombo do corpo.

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Esgotado, o soldado sentou-se no chão. O suor encharcava sua farda. Viu as luzes do giroflex na entrada da viela. Era Rocha que o procurava. Levantou-se e caminhou até a viatura.

—Onde você tava?

—Acho que matei ele. Matei o mala.

—Onde?

—Aqui nessa viela…

—Vamo dá uma olhada…

Rocha pegou uma lanterna e desceu do Vectra. Jailton abriu a porta e sentou no banco do passageiro. Não quis acompanhar o colega. Mas seu descanso durou muito pouco.

—Puta que pariu! Vem aqui!

Jailton estremeceu. Saiu da viatura e foi até o parceiro. Que iluminava o corpo de um rapaz negro, com a camiseta branca manchada de sangue. Ao lado, cadernos e material escolar.

—Você não matou o mala. Matou um moleque, porra…—disse Rocha.

O soldado não conseguia acreditar que fizera aquilo. Ajoelhou-se ao lado do corpo e começou a chorar. Nem percebeu Rocha indo até a viatura. De onde voltou usando luvas brancas, de látex, e com um 38 velho na mão.

—Dá licença. E pára de chorá, caralho.

Trêmulo, Jailton levantou e segurou a lanterna que o parceiro lhe estendia. Ficou alguns passos distante do corpo, iluminando a cena. Rocha agachou-se ao lado do moleque. Demonstrando experiência, ele encaixou o indicador direito do garoto no gatilho do 38 e fez a arma disparar quatro vezes em direção à entrada da viela, onde estava a viatura. Um dos tiros atingiu a porta do passageiro. Em seguida, virou para Jailton e falou, em voz baixa:

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—Calma. Esse moleque é o mala. Atirou em você. Você revidou.

Antes que Jailton respondesse qualquer coisa, Rocha recolheu o material escolar e tirou a carteira e o celular dos bolsos do rapaz. Levou tudo para o Vectra, inclusive o 38 velho, agora com as digitais do morto. Quando voltou, disse:

—Agora me ajuda. Temo que levá ele pro hospital.

Jailton não entendia nada. O colega pegou os pés do defunto.

—Vai, caralho… Me ajuda, porra. Vamo levá pro hospital.

Sem pensar, o soldado segurou o corpo pelos ombros. Quando eles saíam da viela, as luzes do giroflex começaram a iluminar o rosto do moleque. De sua boca e nariz escorria sangue. E seus olhos, abertos, estavam fixos em Jailton. A vítima encarava o assassino.

O garoto foi então colocado no banco de trás da viatura. Rocha pegou o volante. Enquanto eles partiam, Jailton, quieto, olhava pela janela.

As ruas estavam vazias. Tranquilas. Ele havia acabado de dar três tiros em um estudante e ninguém sequer abria a janela para ver o que tinha acontecido.

Demorou um pouco para chegarem ao PS. Eles podiam ter ido a dois outros hospitais mais próximos, mas Rocha preferiu um mais distante. Jailton não quis perguntar por quê. Quando chegaram, os enfermeiros vieram e levaram o defunto.

Rocha cuidou de tudo. Jailton nem desceu da viatura. Quando o colega voltou depois de mais de uma hora, falou:

—Deu sorte. O chefe da equipe que tá de plantão hoje é meu chegado. No relatório, vai constá que o moleque deu entrada vivo.

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De lá eles foram para a delegacia. No caminho, Rocha voltou a dizer:

—Não esquece. Ele é o mala. Atirou primeiro e você revidou.

—E a testemunha?—perguntou Jailton.

—Que testemunha? Não tem testemunha…

—A vítima do assalto. O cara do Honda Civic…

Rocha tirou do bolso algumas petecas de cocaína e mostrou ao parceiro.

—Ele tava com isso aqui. Tava vindo da boca do Elba. Não vai querer se envolver.

—O cara tava com drogas e você liberou ele?

—Olha aqui, meu irmão; você tem muito o que aprendê ainda. Fica na sua e pára de fazê pergunta besta.

Jailton não falou mais nada. Antes de irem ao DP, ainda passaram na companhia da PM. Lá, Rocha deixou o material, a carteira e o celular do estudante. Depois, os dois seguiram para o distrito.

O registro da ocorrência durou até o dia amanhecer. “Resistência seguida de morte”, era o título do B.O.. O “meliante”, sem documentos, foi arrolado como desconhecido. O 38 velho foi mandado para o Instituto de Criminalística. A porta da viatura, com a marca do tiro, foi periciada.

Tudo correu sem problemas.

Era seis da tarde quando o soldado chegou em casa. Divina, sua esposa, preparava a janta. Visivelmente abatido, Jailton deu um beijo no rosto dela e sentou-se à mesa da cozinha.

—Você tá bem? _ perguntou a esposa.

—Tô sim… Tô sim… Matei um moleque.

—Eu sei. Você me disse quando ligou da delegacia, avisando que ia chegar tarde.

—Ah, é…

—Você tem certeza que tá bem?

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—Tenho.

—Não liga. Ele era ladrão. Você cumpriu sua obrigação. Jesus vai te perdoar.

—Acho que não—dito isso, começou a chorar.

Divina passou a mão na cabeça do marido.

—Acho melhor você largar esse serviço…

—Não dá. Preciso botar comida nessa mesa…

—A gente se vira…

—SE VIRA COMO, PORRA?!

O grito fez Divina recuar, assustada.

—Desculpa… Desculpa, meu bem. Eu não tô bom… Vô ficar uns dias no serviço administrativo. É normal na PM. Quando o policial mata alguém, fica um tempo afastado da rua… Vou melhorar.

—Você tá cansado. Precisa dormir. Vai deitar que eu te acordo na hora da janta.

—Tá bom… E os meninos?

—Devem tá brincando na casa de algum vizinho.

—Hoje à noite tem culto…

—Tem. Mas você nem dormiu de ontem pra hoje. Não é melhor ficá em casa?

—Não. Preciso i no culto. Vô descansá um pouco. Depois a gente janta e vai pra igreja.

O soldado foi para o quarto sob o olhar preocupado da mulher. Só tirou o tênis e caiu na cama, de bruços.

A luz do fim de tarde, pelas frestas da janela, iluminava muito pouco o cômodo. Por isso, quando virou a barriga para cima, Jailton não conseguiu distinguir o que era o vulto sobre o armário. Esticou o braço e ligou o abajur. Viu o estudante morto, deitado em cima do móvel, olhando-o fixamente, da mesma maneira que o encarava no momento em que era carregado para a viatura. Olhos arregalados. Sangue escorrendo do nariz e da boca.

Quando Divina chegou ao quarto, correndo, encontrou o marido com os olhos fixos no alto do armário, gritando sem parar.

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A mulher o chacoalhou e ele a olhou com expressão de horror. Depois voltou a olhar para o alto do armário. Aí pareceu dar uma sossegada.

—E… E… Ele tava ali…—a voz saiu fraca, quase um sussurro.

—Quem tava ali?

—O moleque…

—Que moleque?

—O que eu matei…

—O bandido?

Jailton não respondeu. Ficou olhando a mulher com cara de louco. Deu mais uma olhada para o armário. Levantou-se.

—Vô até a igreja…

—Mas o culto só começa às oito.

—Vô antes. Pra falar com o pastor Antonio.

Calçou o tênis.

—Eu vou com você…

—Não. Você fica. Preciso falar com ele. Mas sozinho.

E saiu. Estava disposto a contar tudo ao pastor.

A igreja ficava a dois quarteirões de sua casa, na Brasilândia. Era um templo simples, num salão grande e velho. No caminho, duas vozes pareciam falar dentro de sua cabeça. Uma dizia para ele contar tudo ao pastor. Outra, que, se fizesse isso, poderia ser denunciado e preso. E aí sim sua família ficaria na merda.

Atormentado, sentou na calçada. Sentiu algo estranho e olhou para a esquerta. Novamente viu o garoto. Sentado a seu lado. Deu um grito e voltou correndo para casa, o mais rápido que podia. Quem presenciou a cena não entendeu nada.

O soldado mal saiu do quarto nos quatro dias seguintes.

Desesperada, Divina tentava convencê-lo a procurar um médico. Dizia que chamaria o pastor para visitá-lo. Mas Jailton, agressivo, dizia-lhe que não queria ver e nem falar com ninguém. A mulher já até começava a achar que era caso de possessão demoníaca. Vendo o pai naquele estado, os filhos se afastaram. Davam-lhe apenas bom dia e boa noite. E o policial nem respondia. Só os olhava com semblante perturbado.

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Quando começava a escurecer, ele gritava, tremia e falava sozinho. Dizendo coisas que a família não entendia. Sempre pedindo perdão a um ser invisível no alto do armário.

No sétimo dia, a esposa não aguentou mais. Ligou para a companhia da PM.

À tarde, uma viatura parou em frente à casa de Jailton. O tenente Vargas, seu comandante direto, e o soldado Rocha tocaram a campainha. Divina atendeu e levou os policiais até o quarto, onde eles encontraram Jailton sentado na cama, com olheiras enormes, fitando o alto do armário.

—Jailton…

A voz do tenente fez com que saísse do transe. Ficou em pé para cumprimentar o oficial. Este pediu para que não se preocupasse e se sentasse novamente. Depois perguntou a Divina se ele e Rocha poderiam conversar a sós com o marido dela. E ela saiu do cômodo.

—Jailton, o Rocha já me contou tudo.

—O quê?—o soldado olhou para o parceiro, de pé junto à porta do quarto.

—Tudo, Jailton. Você matou um moleque, pensando que era o mala.

Jailton começou a chorar.

—F… Foi sem querer…

—Sabemos que foi sem querer.

O soldado então levantou, agarrando-se à farda do tenente.

—P… Por favor, pode me levar preso. Eu mereço. M… Mas não deixa minha família passar necessidade… E… Eles dependem de mim…

—Me larga, Jailton!

E o soldado largou a farda do superior, assustado com o tom de voz que este usou.

Enquanto o oficial verificava se a camisa ficara muito amassada, ajeitando-a, Rocha começou a falar:

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—Calma, Jailton. Muito polícia já fez cagada como essa e ninguém nunca descobriu. Tenho quinze anos na PM e sei disso. Você não vai sê preso. Se fosse, eu também seria.

—Sim—prosseguiu o tenente—, não viemos pra te prender. Ninguém sabe ainda o que aconteceu com o moleque. Ninguém foi reconhecer o corpo. Conseguimos liberar ele do IML antes do prazo. Já tá enterrado como indigente.

—E… O que vocês vieram fazer?—perguntou o soldado transtornado.

—Soubemos do seu estado e dos problemas que tem enfrentado. Sua mulher contou tudo. Viemos te buscar. A gente vai resolver seu problema. Estamos te esperando lá fora—explicou o oficial, que saiu do quarto sem dizer mais nada, seguido por Rocha.

Jailton sentou-se no banco traseiro da viatura. Da janela, viu Divina e as crianças na porta de casa. Ela acenou, fazendo um tchau. Ele não respondeu.

Saíram dali e pegaram a Marginal Tietê, na pista sentido Zona Leste. Rocha dirigia. Quando entraram na marginal, o tenente lhe estendeu um uniforme preto e coturnos.

—Troca de roupa. Veste isso—ordenou.

Jailton obedeceu. Enquanto se trocava, ficou olhando a cara do tenente no espelho do parabrisa. E chegou à conclusão de que o olhar do oficial era muito parecido com o de Rocha. Era o mesmo de muitos colegas da PM. Opaco, completamente sem brilho. Que não refletia nenhuma emoção.

Esse pensamento lhe deu um arrepio. Naquele momento, teve certeza de que não queria ser como aqueles dois. Não queria ter aqueles olhos. De quem mata gente, inocente ou não, sem sentir coisa alguma.

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E afinal de contas, o que significava aque-la roupa preta? E para onde eles o levavam?

Terminou de se trocar confuso, quando notou que já começava a escurecer.

Estremeceu.

Olhou para o lado e viu o garoto, estirado no banco da viatura. Como sempre, sangrava e mantinha os olhos arregalados, fitando-o. A respiração de Jailton ficou ofegante. Ele começou a tremer e a entrar em pânico.

—Tá vendo o neguinho, Jailton?

Era o tenente que falava. Com parte do corpo voltada para trás, ele agora observava o soldado.

Jailton não sabia se olhava para o tenente ou para o moleque. Ambos lhe causavam pavor. E o oficial prosseguiu:

—Quando gente fraca como você, Jailton, entra na PM, acontece isso. Depois que mata pela primeira vez, fica vendo fantasma. Hoje vamos te ensinar a ser forte. Esse tipo de coisa não vai mais te assustar.

Calmamente, Vargas voltou a olhar para frente.

Jailton continuava travado, sem conseguir sequer falar. O garoto começara a se mexer. Lentamente se levantava. E se aproximava do PM. Quando seu rosto ensanguentado estava a apenas alguns centímetros, o policial se encolheu. Tapou os olhos com as mãos e curvou o corpo, chorando.

Jailton permaneceu desse jeito, sentindo a presença da vítima a seu lado, até o fim da viagem. Nem notou que a viatura havia pego a Dutra, rumo a Guarulhos. Só tirou a cara do meio dos joelhos quando foi chacoalhado pelo tenente, com o carro já parado. O garoto havia sumido.

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—Sai daí, Jailton—disse-lhe o oficial.

O soldado desceu da viatura. Então viu que estava em uma estrada de terra. Já havia escurecido. Devia ser umas sete e pouco da noite. Perto deles estava parada uma Blazer preta de faróis acesos, sem placas e de vidros com insulfilm.

Da Blazer desceu mais um homem vestido de preto.

—Venha cá Jailton—disse o tenente.

O soldado acompanhou o superior até o sujeito. Este era calvo e tinha um grosso bigode. Devia ter uns 47 ou 48 anos de idade. O tenente bateu continência para ele e depois apertou-lhe a mão.—Capitão, este é o homem de quem lhe falei: o soldado Jailton. Matou um moleque e está vendo fantasma.

—Positivo…—disse o “capitão”, olhando para Jailton como se o examinasse.

O soldado tremia sem parar. Morria de medo.

O capitão prosseguiu:

—Não precisa ter medo, meu filho. A gente vai resolver seu problema.

E dirigindo-se a Vargas:

—Pode ir, tenente. A gente cuida dele direitinho.

Com um sorriso no canto dos lábios, o tenente novamente bateu continência e apertou a mão do capitão. Depois foi para a viatura, onde Rocha o aguardava.

—Vem cá, meu filho…

Jailton seguiu o capitão até a Blazer preta. Quando a porta traseira desta se abriu, o soldado viu mais homens de preto, todos usando toucas que só deixam os olhos à mostra, conhecidas no meio policial como “toucas-ninja”. Um deles deu espaço para que Jailton se acomodasse.

O capitão sentou-se na frente, no banco do passageiro. E estendeu para Jailton uma touca.

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—Ponha esse gorro, meu filho. Temos muito o que fazer nesta noite. Hoje você também vai ser um ninja—disse o capitão, vestindo sua touca em seguida.

No total, havia cinco homens no carro, contando com o soldado. Que não vestiu a touca. Ficou com ela na mão, sem saber o que fazer. Sentiu um calafrio e olhou para baixo. Lá estava ele. O moleque. Deitado em seu colo. Gritou e começou a se debater. Até que o encapuzado a seu lado lhe acertou o estômago com o cabo de um rifle calibre 12.

A Blazer parou. Jailton abriu a porta e caiu no chão de terra. Queria correr, mas não conseguia se levantar. Mal podia respirar.

Olhou para cima. Os ninjas o cercavam, encarando-o. Todos com aquele mesmo olhar sem brilho. O moleque estava agachado entre eles e também o encarava.

A vista de Jailton escureceu.

O soldado estava no salão da igreja. Com todos os amigos da comunidade. Seus filhos, bem vestidos, corriam para lá e para cá, brincando com outras crianças. Divina usava um bonito vestido. Sorridente, ela segurava sua mão. Em um pequeno palco, a mulher do pastor, com sua linda voz, cantava louvando o Senhor, acompanhada pela banda.

Jailton estava feliz.

Sentiu uma mão em seu ombro. Era o pastor.

—Ele está aqui com a gente, Jailton!

—Quem, pastor? Quem?

—Jesus, Jailton. Olha:

Olhando na direção em que o pastor apontava, o PM viu uma cruz fincada ao chão. Nela estava pendurado o garoto negro. Seu sangue formava uma poça na base da cruz.

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Jailton ajoelhou-se, chorando e pedindo perdão, enquanto todos cantavam juntos o hino religioso, estendendo os braços em direção ao menino morto. Que mantinha o olhar fixo no policial.

Jailton tentava buscar socorro, olhando para Divina, para o pastor, para os filhos… Mas todos sorriam e cantavam emocionados. Não davam atenção a ele.

De repente, começaram os tiros. Um por um, os crentes foram caindo. Sangue para todos os lados. Eram os ninjas, que haviam chegado à igreja e transformavam a festa em um verdadeiro massacre.

À frente dos assassinos, o capitão gritava para Jailton:

—Vamos fazer você ficar forte, meu filho!

Divina caiu a seu lado. O pastor também. Viu um dos filhos ter o peito estourado por um tiro de 12 e cair junto ao corpo do irmãozinho.

Em meio àquele mar de sangue, todos os cadáveres estavam de olhos abertos e arregalados. Como o garoto, olhavam para Jailton.

Do alto da cruz, o menino morto observava tudo. Pela primeira vez, o soldado viu ele chorar. Lágrimas de sangue.

Jailton acordou gritando e levando tapas na cara. Ainda estava deitado na estrada de terra.

—LEVANTA, SOLDADO!—gritava o capitão.

Trêmulo, o PM se levantou. Sua garganta foi então agarrada pelo comandante dos ninjas, que, com violência, o encostou à lateral da Blazer.

—Você tá com medo, não tá? Medo do fantasma. NÃO TÁ?

Mal conseguindo respirar, Jailton fez que sim com a cabeça. O capitão apertou sua garganta com mais força, sacou uma pistola .40 e enfiou o cano na boca do soldado.

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—Agora escuta bem: um bom policial não tem medo de bandido. Do mesmo jeito que não tem medo de fantasma. Um bom policial convive com seus fantasmas. Um bom policial não tem medo de nada. ENTENDEU?

Jailton não respondeu. Estava petrificado. Sentindo o aço frio da arma no céu de sua boca.

—ENTENDEU? OU VOU TER QUE ESTOURAR SEUS MIOLOS, SEU FILHO DA PUTA?! E DEPOIS MATAR SUA MU-LHER… E SEUS FILHOS?!

Finalmente, o soldado fez que sim com a cabeça.

—Agora me escuta com atenção: se você fizer outro escândalo por causa desse fantasma, a gente te mata. Você vai fazer só o que eu mandar. Senão, morre! Entendeu!?

Novamente o policial fez sinal afirmativo. O capitão tirou a arma de sua boca.

—Agora veste seu gorro.

Escorado na viatura, Jailton obedeceu.

Todos voltaram para dentro da Blazer, que tornou a seguir pela estrada de terra e entrou em um bairro pobre da periferia de Guarulhos.

Logo que eles chegaram ao bairro, Jailton voltou a ver o garoto deitado em seu colo. Mas dessa vez foi diferente. Sentiu um arrepio e ficou inquieto. Só que não sentiu o mesmo medo de antes. Este perdeu a intensidade. Então percebeu os olhos ameaçadores do capitão. Que o observava do banco da frente, como se o vigiasse. Aí sim sentiu medo. Comparado ao chefe dos ninjas, o fantasma não era nada assustador.

A Blazer freou bruscamente em frente a um boteco lotado. Todos os ninjas desceram. Alguns empunhando espingardas 12. Outros, submetralhadoras. Jailton foi empurrado para fora do carro. O fantasma o seguia. Não saía mais de perto do soldado.

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Os frequentadores do bar ficaram petrificados com a chegada da gangue.

Devia haver umas 30 pessoas no local. Todo tipo de gente. Velhos, mulheres, jovens e até crianças. Era umas oito e pouco da noite.

Três encapuzados posicionaram-se na porta do estabelecimento, apontando as armas para todo mundo.

O quarto ninja se aproximou de Jailton e lhe deu uma submetralhadora. Era o capitão. Em seguida ele fez um sinal com a cabeça, ordenando que o soldado o seguisse.

Devagar, os dois passaram pelos outros ninjas e entraram no bar. O silêncio era total. Lentamente, o capitão, também segurando uma submetralhadora, encarava os clientes do boteco. Um por um. Olhando-os no fundo dos olhos.

Deixou uma mesa por último. Nela havia cinco jovens: três rapazes e duas garotas. O mais velho tinha, no máximo, 18 anos.

—VOCÊS FICAM! O RESTO VAI EMBORA!

O grito do capitão foi tão alto e ameaçador que Jailton teve a impressão de sentir o chão tremer.

A maioria levantou rapidamente das mesas e caiu fora. Alguns demoraram um pouco mais para deixar o local. Talvez porque não conseguissem se mexer de tanto pavor.

—ANDA! VAI!—gritava o comandante ninja.

Enfim restaram só os cinco jovens. Todos eles choravam. Jailton olhou para o garoto fantasma. Que continuava a seu lado, encarando-o. O soldado não desviou o olhar. Em seu desespero, tentava buscar nos olhos de sua vítima alguma saída para aquela situação. Sabia que os garotos morreriam e tudo que queria era evitar que isso acontecesse. Por uns segundos, ficou em transe. Até ser acordado pela voz do capitão. Que, apontando a submetralhadora para o grupo, mandava que os cinco se levantassem.

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Uma das meninas atirou-se aos pés do capitão, desesperada.

—Eu não fiz nada! Não fiz nada! Por favor, deixa eu i embora!

Por uma fração de segundo, o capitão olhou a jovem. Em seguida, deu-lhe um chute no estômago, ergueu a menina pelos cabelos e a atirou em cima dos amigos dela.

—TÔ MANDANDO VOCÊS SAÍREM AGORA!

Devagar, o grupo levantou e começou a sair do bar. Caminhando para a morte.

Os demais ninjas aguardavam do lado de fora. Com o camburão aberto. Apesar de não ter giroflex e a pintura dos carros da PM, a Blazer era uma viatura.

Quando todos já estavam recolhidos e um dos encapuzados ia fechar o compartimento traseiro do carro, duas senhoras chegaram correndo. Pelo visual, ambas eram evangélicas. Usavam saias até o calcanhar, cabelos bem compridos e nenhuma maquiagem. Choravam com desespero. Dois ninjas entraram na frente delas para impedir que chegassem perto da Blazer.

Um dos moleques gritou de dentro do camburão:

—MÃE, VAI EMBORA!

Mas as mulheres insistiam. Uma grunhia, em meio às lágrimas.

—M… M… Meu… Filho…

Quanto mais elas tentavam empurrar os encapuzados, mais eles usavam violência. Derrubaram as senhoras no chão. Jailton não aguentou e começou a chorar, ainda trocando olhares com o fantasma de sua vítima.

Enquanto as mulheres faziam o escândalo, o capitão olhava a cena em silêncio. Até que caminhou em direção a a elas, ordenando que os ninjas parassem de maltratá-las. E perguntou com voz calma:

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—Vocês querem seus filhos?

Sem conseguir falar de tanto que soluçavam, elas confirmaram balançando as cabeças.

—ENTÃO VOCÊS VÃO FICAR COM ELES!

Dizendo isso, o líder ninja agarrou uma pelos cabelos. Um dos encapuzados fez o mesmo com a outra. As duas senhoras evangélicas foram arrastadas e também atiradas dentro do camburão. A porta foi fechada.

A gangue entrou no carro. Sempre acompanhado pelo fantasma, Jailton obedeceu quando o capitão mandou que entrasse também.

Cantando pneus, a Blazer deixou o bairro e voltou à estrada de terra. Rodou por quase uma hora. E parou em um local de mata fechada. Os ninjas desembarcaram com lanternas nas mãos. Abriram o camburão e arrancaram todos de dentro.

—TIREM TODA A ROUPA!—gritou o capitão.

As vítimas só obedeceram após algumas coronhadas e chutes de coturno. Tremendo, despiram-se, jogando as roupas no chão. Enquanto isso, os ninjas pegavam as peças e atiravam dentro do camburão. Algumas cuecas e calcinhas estavam manchadas de merda.

Com todos completamente nus, o capitão iluminou a entrada de uma trilha com a lanterna. Três ninjas começaram a entrar no matagal. O capitão ordenou às vítimas:

—SIGAM ELES!

Àquela altura, os jovens e as senhoras não tentavam mais resistir. Sabiam que nada poderia salvá-los.

Jailton ficou na estrada com o capitão e o garoto fantasma. O chefe da gangue então arrancou a submetralhadora de suas mãos. E lhe entregou a pistola .40.

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—Não precisa gastar bala de metralhadora com esse lixo, meu filho—a calma voltara à voz do assassino.

—O… Que eles fizeram?… Pra merecer isso?

—Os três moleques são ladrões. Aterrorizam os comerciantes de vários bair-ros aqui de Guarulhos.

—E… E… As mães deles? As meninas?

—Se as mães tivessem criado eles direito, não virariam bandidos. E se as meninas andam com eles, é porque também são lixo e merecem punição. Agora vamos lá, meu filho. Essa noite você vai aprender a ser um bom policial.

Jailton tornou a olhar para o fantasma. E viu que ele começara a chorar. Como naquele sonho. Derramando lágrimas de sangue.

—Não adianta ficar olhando pra esse fantasma, rapaz. Ele não pode te ajudar. Tenha em mente o seguinte: se não fizer o que eu mando, os próximos a entrar naquela trilha, pelados, serão você, sua mulher e seus filhos.

O soldado estremeceu.

—AGORA VAMOS!

Chorando e tremendo, Jailton baixou a cabeça e entrou na trilha. O fantasma o seguia, tentando encará-lo. Mas o policial já não o olhava mais. Apenas andava, seguindo o capitão.

Caminharam até a luz da lanterna mostrar as vítimas. Todas de joelhos, cercadas pelos ninjas. As senhoras rezavam em voz alta. Gritando. Uma delas abraçada ao filho. A outra, a uma das meninas. A estas últimas, o capitão disse:

—Tá vendo, minha senhora? Por que não ensinou sua filha a ficar longe de bandidos?—e, dirigindo-se a Jailton—Mata essas duas primeiro.

Jailton olhou para mãe e filha. Viu que o fantasma do garoto negro se ajoelhara ao lado delas, com as grossas lágrimas de sangue ainda escorrendo pela cara. Seu rosto refletia horror.

O soldado olhou ao redor. E encontrou os olhares do capitão e dos outros ninjas. Aqueles mesmos olhos opacos de sempre.

—O SENHOR É MEU PASTOR…—berrava a mulher, agarrada à filha.

Aquela maldita reza começou a dar náuseas no soldado. Que, de súbito, sentiu ódio. De sua vida, do mundo, da falta de dinheiro que o fizera entrar na PM. De Divina, dos fi-lhos. Do fantasma. E daquelas pessoas ajoelhadas à sua frente.

Então encostou a arma na cabeça da mu-lher e estourou seus miolos. Em seguida fez o mesmo com a garota e, em poucos segundos, com o resto das vítimas.

Jailton chegou em casa no fim de tarde. Divina preparava a janta. Da porta da cozi-nha, disse:

—Trabalhei muito hoje. Vou descansar. Me acorda pra janta.

Divina só o olhou e balançou a cabeça, sinalizando que sim. Seu marido mudara muito nos últimos três meses. Uma mudança que começou naquela noite em que o tenente e outro PM o levaram para “resolver o problema dele”.

No quarto, o soldado tirou o tênis e deitou na cama. Todos estavam em volta dela, encarando-o. Seus fantasmas. Além do estudante, das senhoras evangélicas e dos cinco jovens, já havia mais uns dez. Jailton fechou os olhos. E cochilou. Tornara-se “um bom policial.”