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Salvando o Sudão do Sul

Um Grão de Verdade

A briga entre Kiir e Machar é a chave para entender por que o recém-criado Sudão do Sul resume os séculos de corrupção, violência e morte que marcam a África.

Tanque do EPLS usado na última guerra civil sudanesa serve de banheiro e trepa-trepa.

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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O controverso Machar, primeiro vice-presidente do recém-criado Sudão do Sul, envolvido em conspirações e acusações de massacre depois de ter sido expulso do governo, passou um dia inteiro conversando comigo. Sentado à sombra de uma árvore, observando as garças à procura de comida ao longo do rio, é difícil pensar em conspirações e no tipo de burocracia nefasta que resulta no fracasso de uma nação. Contudo, ainda não consegui uma resposta clara quanto ao que constitui, na visão de Machar, o âmago de sua relação conturbada com o presidente Kiir - e estou determinado a conseguir esta resposta.

“Salva Kiir lutou em duas guerras”, diz, após eu entrar discretamente, como quem não quer nada, no assunto. Estava se referindo a seu adversário político, responsável por expulsá-lo do governo do Sudão do Sul sob acusação de conspiração. “Ele teve uma educação básica, frequentou um colégio militar. Já eu… eu fui para a faculdade, sou graduado em Planejamento Estratégico. Tenho oito filhos e quatro netos. Já trabalhei mais de 16 horas por dia.”

O ex-vice-presidente quer dizer que, no fundo, é um homem de família, um burocrata e um intelectual, enquanto o presidente é apenas um soldado, um homem acostumado a tomar decisões súbitas e violentas, alguém que sempre esteve em segundo lugar, o braço-direito elevado ao cargo máximo da nação só por causa da morte repentina de seu mentor.

Mas isso não é verdade - pelo menos não completamente. Machar também luta desde meados dos anos 1980. É um homem cauteloso que também tomou certas decisões súbitas e violentas ao longo de sua carreira. Uma delas, em 1991, causou a morte de dezenas de milhares de pessoas. Agora em 2014, ele parece estar trabalhando em uma continuação ainda maior.

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Quem Machar admira?

“Pessoas que levam seu país da guerra à paz. Uma delas é Mandela, um homem que suportou a dureza da prisão para levar paz a seu país.”

A visão dele quanto à destituição de seu cargo parece ao mesmo tempo otimista e dúbia. Por quê?

“Dia 23 de julho, [Kiir] me surpreendeu ao me destituir e ao dissolver todo o governo. Muitos vieram até mim enfurecidos. Eu lhes disse que nós tínhamos uma Constituição, e esta Constituição dizia que podíamos destituí-lo. Eu aceitei sua decisão. Eu havia servido como vice-presidente por oito anos e estava feliz em seguir em frente.”

Ele continua: “O lado positivo foi que isso nos levou a debater quanto ao futuro do país, a discutir antigas questões. Uma delas era a corrupção. O país será rotulado como corrupto. Segundo, o país está retrocedendo ao tribalismo. Alguns setores do governo só contratam membros de sua própria etnia. [Na época], de setenta embaixadores, apenas quatro eram nuer. Eu disse que o Parlamento estava em mau estado. Nosso partido não tinha base de representação. Falei sobre o isolamento a que estávamos submetidos por causa dessas questões e da atitude de Kiir. Havia insegurança em nosso país. Quando levantei essas questões, criou-se uma grande preocupação.”

Aqui, refere-se a um tópico recorrente na administração do presidente do Sudão do Sul desde que ele tomou o poder: a corrupção, doença endêmica que Kiir insiste haver duramente combatido e que Machar o acusa de causar.

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“Trouxemos provas de corrupção fornecidas pelo Banco Mundial. Eles fizeram uma investigação. Era óbvio que os mais próximos dele estavam tomando dinheiro… Estavam faltando US$ 4,2 bilhões.”

Para ter uma noção maior de escala, pergunto quanto ele e Kiir recebiam de salário antes da destituição. “O salário do presidente é de 15.000 libras sul-sudanesas [cerca de US$ 5.080] por mês. O meu era de 12.000 [cerca de US$ 4.070]. Kiir tem casas em diversas cidades, todos sabem. Quando quisemos investigar, ele dissolveu o parlamento.”

Enquanto conversávamos, sentados à sombra, avistamos uma águia no alto de uma árvore perto do rio e marabus que circulavam pela grama. É estranho discutir sobre US$ 4,2 bilhões em fundos roubados em um lugar que nunca foi tocado pelo dinheiro.

Pergunto sobre o contrário: se Kiir acredita que Machar seja corrupto.

“Ele sabe das minhas contas bancárias. Eu não tenho dinheiro.”

Quando peço que seja mais específico, o ex-vice-presidente do Sudão do Sul explica sua preocupação quanto à entrega de grãos de Uganda para as reservas estratégicas do Sudão do Sul. Foi somente no ano passado, quando Machar começou a investigar as operações financeiras envolvidas na aquisição da grande reserva de grãos, que Kiir anunciou, com alarde, que seu governo iria “gastar bilhões” em uma estratégia para eliminar a fome.

“Havia muitas formas de corrupção no processo. Houve quem fizesse contratos legais. Houve quem recebesse pagamentos e entregasse as mercadorias. Não há como saber com certeza se havia alguma corrupção nisso, porque os preços estavam inflacionados. Alguns entregavam as mercadorias e não eram pagos. E também havia os que firmavam contratos, recebiam pagamentos, mas não entregavam nada.”

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A aquisição de grãos a fim de evitar a fome no país não parecia um problema até Steven Wondu, auditor geral, revelar que mais de US$ 4 bilhões em receitas de petróleo e outras fontes haviam desaparecido misteriosamente ao longo de dois anos.

Indignado, o etíope-americano Ted Dagne, conselheiro presidencial, enviou em 5 de maio de 2012 uma carta privada por ele redigida e assinada por Kiir a 75 ministros e funcionários. A carta notificava-os de que, em troca de algum tipo de anistia, os fundos faltantes deveriam ser devolvidos a uma conta bancária no Quênia, gerenciada pelo governo do Sudão do Sul.

A indicação de Dagne ao cargo no gabinete de Kiir veio graças aos 22 anos que passou advogando a favor do Sudão do Sul e a seu trabalho como especialista em assuntos relacionados à África na Biblioteca do Congresso Americano. Foi a pesquisa do atual conselheiro presidencial e de seus colegas que persuadiram George W. Bush a apoiar o Sudão do Sul em sua reivindicação por independência.

O vazamento da carta de Kiir e Dagne para a mídia, em junho de 2012, foi a gota d’água. Assim que o conteúdo dela veio à tona, o conselheiro presidencial se viu obrigado a fugir do país, temendo por sua vida. Machar, por meio de seu secretário de imprensa, James Gatdet Dak, desmentiu a quantia de US$ 4 bilhões citada por Dagne. “Foi este cara, Ted Dagne”, disse Gatdet Dak. “Não havia nenhuma outra fonte.” Quanto à assinatura do presidente do Sudão do Sul, nenhum de seus ministros o havia aconselhado a aprovar a carta, o que, segundo a lógica, fazia dela uma falsificação.

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Machar insiste que Kiir está no centro da corrupção.

“Há sul-sudaneses trabalhando com ugandeses”, acusa. “Os produtores estão em Uganda. Um dia antes de minha destituição, pedi ao Banco Mundial que investigasse os contratos rodoviários. Um grupo de auditoria estava a caminho. Eles estavam desconfiados.”

Machar me conta que a infraestrutura é outro bom lugar para se esconder dinheiro. O Sudão do Sul é conhecido por seu território extenso, plano e sem estradas pavimentadas. “Estradas” aqui são meros e sinuosos caminhos de terra, que sofrem com a erosão nas estações chuvosas e se convertem, então, em centenas de confusos rastros de pneu e buracos lamacentos.

“Um quilômetro de estrada no Alto Nilo custa cerca de US$ 1,2 milhão; em Equatória, cerca de US$ 1 milhão. Contratos rodoviários são caros, e alguns foram assinados com empresas que não tinham sequer os equipamentos necessários para a construção.” Segundo Machar, esses contratos estão ligados a Kiir através de relações tribais e de negócios.

Assim como o fez quanto às reservas de grãos, ele mergulha no assunto, detalhando sua suposta descoberta de como o US$ 1,7 bilhão gasto até então na construção de estradas no Sudão do Sul resultaram em pouco mais de 70 quilômetros construídos. Para Machar, grande parte da culpa recai - é claro - sobre Kiir.

“Os contratos não eram competitivos”, frisa. “As propostas deveriam ser abertas a todos e os lucros, transparentes.”

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E quanto às diversas medidas internas contra esse tipo de corrupção? Ninguém supervisionava os contratos?

“Há a comissão de petróleo, que não funcionava. Deveria haver um processo de licitação, mas havia manipulação. A instituição seria usada, mas o presidente detinha o poder. Sei como funcionam contratos, aprendi em minha formação em engenharia. Sei como se faz uma licitação. Eu não brincaria com essas coisas.”

O ex-vice-presidente quer mudar de assunto. Olha a paisagem ao redor e toma um rumo diferente.

“Este é um bom lugar. É calmo. Você tem sorte, minha comunicação com os comandantes em campo está cortada, porque não há gerador para os telefones.”

Machar quer que Kiir seja visto como corrupto e ele mesmo como um salvador. Conta-me que está preocupado com a nova era de medo, em que dezenas de milhares de dinka e nuer são forçados a se esconder em campos de refugiados superlotados da ONU.

“Eu queria que esse medo acabasse. Eles precisam de uma vida normal. Os que estão em Akobo podem cruzar a fronteira se sentirem fome, mas para os que estão nas cidades (Juba, Bor, Malakal e Bentiu), o problema é sério. Eu planejava concorrer às eleições em 2015. Esperava vencê-las e estabelecer um sistema que funcionaria sem interferências. Depois disso, eu escreveria livros sobre autodeterminação.”

Machar tem apoio externo?

“Algumas das agências humanitárias na região trazem remédios e alimentos e contribuem com o sistema educacional”, responde, antes de partir para outra crítica dura a organizações humanitárias tomando partido e matando pessoas de fome no processo.

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Digo-lhe que me referia a apoio militar. Afinal de contas, se ele se diz honesto e completamente sem recursos financeiros, alguém teria que fornecer apoio à guerra.

“Bem, o mais importante são as munições. Temos o que apreendemos e o que já tínhamos inicialmente. Os expatriados não podem comprar munição – é cara demais. Eles não são ricos. Muitos deles são trabalhadores mal remunerados nos Estados Unidos ou na Austrália, mas eles podem enviar cartões pré-pagos àqueles que têm telefones via satélite.”

Essa é uma afirmação estranha, considerando as centenas – se não milhares – de tiros que vi disparados ao alto.

“Nossa experiência com a guerra de libertação é: conseguimos a munição do inimigo ou solidariedade internacional”. Machar não explica de onde vem esse apoio: “De países que apoiam as nossas ideias.”

Pergunto se o Sudão está apoiando sua causa, mas ele não diz.

Eu o pressiono, mas ele não reconhece nem o surgimento das novas armas e munições que meus companheiros e eu testemunhamos nos campos ao nosso redor. Admitiu, contudo, recrutar “voluntários”, alguns ainda em treinamento. “Podemos dar-lhes treinamento e talvez uma arma.”

Quem os paga?

 “Não lhes oferecemos nada. Talvez, no final, um rifle.”

Pergunto onde eles estão treinando. Ele gesticula.

 “Em algum lugar”, sorri, com aqueles seus famosos dentes da frente separados.

O que Machar não me conta é que, enquanto falamos, o Sudão está ocupado fornecendo armas por via aérea e Cartum está enviando tropas treinadas ao sul. Enquanto isso, ele e seus generais se preparam para uma grande ofensiva antes da estação das chuvas.

Tradução: Flavio Taam

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