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​Um Pastor Evangélico Criou o “Amorprazol”

Por R$ 5, você pode comprar essa espécie de "droga do amor".

Segundo Gênesis, capítulo um, Deus levou sete dias para criar o mundo em que vivemos. Ele fez a água, o céu, os animais, separou a noite do dia e fez o homem e a mulher. Diz a Bíblia que no sétimo dia, o grande chefe da humanidade finalmente descansou. Espécime desse legado divino, o pastor Josué, da Igreja Família Debaixo da Graça, localizada em Bragança Paulista, no interior de São Paulo, também é um criativo inveterado quando o assunto é bolar produtos que agradem o mundo gospel. Por isso, ele criou o "Amorpr​azol", uma assustadora dinâmica familiar que custa R$ 5 (mais o frete, que, pra mim, saiu o dobro do valor do produto).

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O nome "Amorprazol" é uma brincadeirinha com o Omeprazol, um remédio que diminui a quantidade de ácido produzido pelo estômago, muito utilizado por quem tem gastrite, úlcera ou toma medicamentos mais fortes que dão aquela zoada no organismo. Já o Amorprazol, segundo o Portal Amo Fa​mília (uma grande loja virtual da igreja do pastor Josué), é composto por "princípios bíblicos ativos" e "deve ser usado somente acompanhado de todos da família e do médico dos médicos, o nosso senhor Jesus". Até bula tem. Inclusive, me assusto toda vez que nela leio "Responsável técnico: Jesus Cristo", "antidivórcio e anticonflito" ou "Não há contraindicação e nem efeitos colaterais se usado de forma correta e com o auxílio do Espírito Santo".

No vídeo acima você assiste ao pastor Josué falando sobre um "irmão" que confundiu o Amorprazol com um remédio de verdade.

A descrição do site também se refere ao produto como "medicamento". É confuso. Comprei pela internet e recebi o tal potinho do Amorprazol – que é vendido em livrarias. Uma pessoa da redação, ao ver as pílulas, achou que era mesmo pra engolir. Eu também. Mas não é. O vídeo de divulgação explica que essa genial ideia em formato de remédio é nada mais nada menos do que uma dinâmica familiar. Dentro das cápsulas, vem um papelzinho com algo escrito, como "Bíblia", "beijo", "serviço", "lazer", "oração", "diálogo". O objetivo é que a família se reúna, cada um pegue uma pílula, abra, leia o que está escrito e, durante uma semana, pratique a palavra que tirou na sorte. Na próxima semana, cada membro da família precisa adivinhar o que o outro tirou. Como isso pode ajudar uma família? Não sei.​

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Passei duas semanas atrás do pastor Josué. Por e-mail, ele me contou que o produto foi criado há três anos e que quem escolheu esse nome polêmico/fofo/agressivo/estranho foi seu filho, Douglas Go​nçalves – que também é pastor. Desde o lançamento, cerca de 30 mil unidades foram vendidas. Perguntei se ele não acha perigoso os consumidores confundirem o Amorprazol com um remédio. "As pessoas que compram geralmente ouvem a explicação que é dada ou leem a bula", respondeu.

Quem não achou nada engraçada essa história de placebo gospel foi a ​Associação Brasileira de Terapia Familiar (Abratef), que, procurada pela VICE, informou: "Amorprazol não é uma dinâmica utilizada em terapia familiar porque as técnicas adotadas por profissionais especialistas em terapia familiar têm fundamentos teóricos e científicos". Segundo as terapeutas Helena Centeno Hintz e Rosane Brusius de Moraes, a apresentação em formato de medicamento deve ser questionada. Elas acreditam que o ideal seria comercializar o produto como um jogo, e não como uma terapia.

De acordo com Flávio de Leão Bastos Pereira, professor de Direito Constitucional da Universidade Mackenzie, o Amorprazol "pode levar um consumidor detentor de reduzida capacidade de entendimento à confusão".

Perguntei também a opinião da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)  e recebi a seguinte resposta: "O produto não é um medicamento e nem similar. Não é incomum que pastores, terapeutas familiares e afins façam analogias, ou paralelos, para que as pessoas possam ter um relacionamento com Deus, familiar ou social melhor. O produto não representa risco à saúde. Não cabe a Agência analisar." Mas por que a bula do Amorprazol informa que ele é um "medicamento"?

Não sei quanto a outras igrejas, mas a que o pastor Josué Gonçalves comanda quer mesmo que as pessoas tenham um relacionamento melhor com tudo. Talvez seja por isso que a Igreja Família Debaixo da Graça, em si, não tenha site oficial, mas o Portal Amo Família está aí para suprir a carência. Ao abrir sua página na internet, você logo se depara com uma infinidade de produtos para viver uma vida melhor. Kits de DVDs com palestras do pastor e outros avulsos como "10 Mandamentos do Namoro", "7 Passos Para Vencer as Dívidas", "As Três Armadilhas do Sucesso", "Resgatando a Essência da Alma Masculina", "Casamento À Prova de Bala". Um grandiosíssimo Buzzfeed físico, palpável. Entre os livros, destaque para ABC do Casamento, Aprenda a Pregar (caso você queira virar pastor), Denunciando o Pecado na Família, Não Quero um Pastor Bacana (com um religioso vestido de Elvis Presley na capa). Além, claro, dos grandes eventos que estão por vir, como o ​Encontro Nacional de Mulheres (R$ 790, com direito a palestras, shows, hospedagem e refeições) ou o ​Encontro Nacional de Solteiros (R$ 650). No site desse último, a descrição dá a letra: "Serão três grandes dias para mudar completamente a sua história. Você será impactado, abençoado e edificado em cada minuto, só basta estar de coração aberto para receber o que Deus vai fazer na sua vida!".

Não é novidade que instituições religiosas comercializem produtos e eventos. Noutro dia, estive em ​uma mesquita para produzir uma matéria e saí de lá com uma biblioteca sobre o islamismo. Todos os livros foram dados. Não me cobraram um real sequer. A mercantilização da salvação está arraigada no mundo evangélico de tal maneira que fica difícil discernir quando a tentativa de se levar uma palavra de conforto ao ser humano é legítima.

O lado bom disso tudo é que a palavra de Deus não vem sozinha, mas com hospedagem, refeições e a possibilidade de um tremendo network – quem sabe até um casamento. Porque até nisso o pastor Josué Gonçalves, uma espécie de Steve Jobs do mercado gospel, pensou para facilitar a sua vida. Graças a Deus que a Bíblia não cita Marx.