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‘Zelda: Ocarina of Time’ e o Mito do Leite

Analisando a profunda importância simbólica do Lon Lon Milk e como isso (e muito, muito mais) fazem do jogo um dos melhores de todos os tempos.

Link em 'Ocarina of Time'.

Em uma coisa você tem que concordar comigo: Ocarina of Time é, sem dúvida, o melhor jogo de videogame já feito. Além da mecânica, além do design, além do entretenimento, Ocarina é uma das melhores experiências narrativas que já tive. É um fractal de grandeza; quanto mais fundo você vai nos detalhes do jogo, mais ele se expande em genialidade. Por exemplo, vamos analisar o Lon Lon Milk.

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A maioria (mas nem todos) os jogos da franquia Zelda são uma Jornada do Herói clássica, ou monomitos, mas Ocarina of Time se diferencia de seus antecessores. O poder do Nintendo 64 permitiu que o jogo fosse mais amplo e mais ambicioso em seu enredo e desenvolvimento de personagens, dando ao codiretor, Shigeru Miyamoto, mais oportunidades para aperfeiçoar tanto o protagonista Link como os personagens não jogáveis.

A história é a seguinte: a mãe de Link fugiu de Hyrule para o Lost Woods durante a Guerra Civil Hyruleana. Gravemente ferida, ela confiou seu filho à Great Deku Tree. Link, agora em sua interação mais jovem, aos nove anos, precisa aceitar que não só não é um kokiri, como ele acreditava, mas que é a Criança do Destino. Aí ele assiste seu pai arbóreo adotivo morrer, e cai no mundo só com uma espada de madeira, um escudo Deku e uma fada para espantar um mal sem nome. No processo, ele é congelado no tempo por sete anos, fazendo dele basicamente um menino de nove anos no corpo de um de 16, arrancando dele qualquer coisa que tivesse sobrado de sua infância.

Ocarina é um jogo incrivelmente solitário. Link não tem família: seu lugar não é com os kokiri, as crianças da floresta, e a maioria de seus amigos se tornam sábios e deixam o reino terreno. Sabemos o que acontece depois que a história de Ocarina of Time acaba, porque na abertura do jogo seguinte, Majora's Mask, é mostrado que o Link de nove anos vai sozinho para a Floresta Proibida em busca de Navi, sua amiga fada que o acompanhou nas aventuras anteriores, mas que desapareceu no éter durante os créditos de Ocarina. Até onde sabemos, ele nunca a encontra. O jogo questiona a natureza da Jornada do Herói: se você é verdadeiramente um indivíduo único, sobrenaturalmente heroico e destinado a salvar o mundo, onde e com quem você encontra a sensação de um lar?

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Se você é da opinião que Ocarina é só um jogo e que estou viajando demais, te convido a considerar a preocupação do jogo com leite. O Lon Lon Milk é o primeiro item alimentício que Link consome na franquia, assumindo que as poções são mais medicinais ou alquímicas que culinárias. Sua introdução, novamente, se dá com a versão mais jovem de Link, um garoto que nunca teve mãe.

Em termos de mecanismo, o Lon Lon Milk foi uma adição inteligente à história de Zelda. O design do leite como item era só um pouco diferente do design das garrafas de poção, e consumir as duas coisas mostrava a mesma animação, o que facilitava sua introdução. Diferente das poções vermelha e azul, que curam Link completamente, o leite só restaura cinco corações, o que significa que ele é útil principalmente no começo do jogo, quando o jogador ainda está se adaptando. Para coletar o leite, você precisa tocar a "Canção de Epona" na sua ocarina para uma vaca, que depois fala com você (o que, aliás, é uma cena deliciosa) e depois te dá o leite de presente, similar à maneira como outras músicas resultam em ações no jogo.

"Que ótima canção… Fique com um pouco do meu nutritivo leite!"

Mas o leite também empresta uma textura de vida real para Ocarina of Time. Lembra a primeira vez que você viu a animação do Link bocejando, e como era fofo ver que seu protagonista podia estar cansado ou entediado? A ação de realmente ingerir um alimento era uma novidade parecida. Um realismo maior nos videogames geralmente envolve reclamações sobre design visual, movimentos, as fronteiras do mapa e assim por diante; mas Ocarina of Time não recebe crédito suficiente por ser um dos primeiros jogos a reconhecer que, realisticamente, um herói não pode ficar sem comer.

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Mas o realismo que o leite empresta não acaba aqui. Elementos do jogo refletem práticas da indústria de laticínios. Por exemplo, você toca uma música para as vacas para extrair o leite: em fazendas de verdade, isso já mostrou realmente ajudar as vacas a dar mais leite. Malon, a garotinha hyruliana do Lon Lon Ranch, está no comando da lida com os animais, enquanto seu pai (e eventualmente Ingo, o garoto do estábulo) cuida da parte dos negócios. Do mesmo modo, na Europa da Era Medieval até o Iluminismo (em que o jogo se baseia) eram as mulheres que cuidavam quase que exclusivamente da produção leiteira, já que isso era considerado parte das tarefas domésticas ou, pelo menos, um "trabalho de mulher", e Malon se torna central da interação de Link com o leite.

E essas referências realistas com a produção leiteira se tornam um condutor por onde mitologia real e associações religiosas com o leite são acrescentadas ao jogo. Não há outro alimento no mundo com mais significado. Leite é o primeiro alimento de todos os mamíferos, algo intimamente ligado à infância, maternidade e nutrição. E por causa dessa ligação, cada cultura que bebe leite tem uma simbologia de algum tipo para ele.

Ísis, a deusa egípcia de seios fartos, é a mãe ideal, aquela que "dá a vida", frequentemente retratada amamentando Hórus — e também sua contraparte Hator, retratada com um par de chifres na cabeça. Vemos a Virgem Maria amamentando Jesus em Lactatio. Há a Fonte de Diana na Villa d'Este, despejando água por seus vários seios. A lenda da formação da Via Láctea diz que Zeus colocou o bebê Hércules para se alimentar no seio de Hera enquanto ela dormia; quando acordou, assustada, ela puxou o seio do bebê, espirrando seu leite nos céus.

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No samudra manthan hindu, os deuses misturaram seiva e água do oceano para formar o leite, de onde Surabhi, a Vaca Sagrada, emerge. Na história da criação nórdica, Ymir se alimenta do leite da vaca Auõumbla, é morto por Odin, e seu corpo é usado para construir o universo. Na teologia fulani, o mundo é formado por uma gota de leite. Santa Brígida da Irlanda foi amamentada por uma vaca mágica, que permitiu que ela produzisse um suprimento infinito de manteiga, alimentasse os pobres e trocasse gado pela liberdade da mãe. Leite é associado à abundância, nutrição, criação da vida, e principalmente, maternidade.

Essas associações com o leite estão gravadas no nosso cérebro e na nossa cultura há milênios, e trazemos isso conosco quando jogamos Ocarina of Time. Se não fosse pelas narrativas do leite e do Lon Lon Ranch, a história de Link no jogo seria uma tragédia. Em vez disso, ele vai para o Lon Lon Rnch e encontra Malon, outra criança hyruliana sem mãe, cujo pai é ausente e que teve que aprender a ser responsável desde muito jovem.

Malon dá a Link os dois presentes mais importantes e queridos que ele recebe no jogo: seu cavalo Epona e a "Canção de Epona", composta pela mãe dela, que Link usa para fazer amizade com seu cavalo e conseguir leite das vacas, para se nutrir pela primeira vez na franquia. Malon age como uma igual, e é no Lon Lon Ranch que o garoto sente que pode pertencer a algum lugar. E assim, Ocarina of Time levanta, explora e resolve a questão de se um herói está destinado a ficar sozinho.

Não importa que Link não seja um personagem tão inerentemente mágico. Ele não vem de uma linhagem divina, como a própria Zelda; ele não tem poderes demoníacos, como Ganon. Ele não é um sábio, não é um kokiri, é só uma criança. Depois que a história acaba, ele tem que se reintegrar à vida normal de Hyrule. E essa é vida que os jogadores do mundo real compartilham com Link, onde fica nossa capacidade de se identificar com ele, e o motivo para Ocarina of Time ser um jogo tão querido. É uma vida que pelos padrões do gênero da fantasia, e que não inclui muito mágica. A não ser pela mágica transmitida por símbolos, histórias e arte; a mágica das lendas, das músicas ou da comida e bebida.

@rvbrvbrvb

Tradução: Marina Schnoor

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