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A Arte Após Auschwitz: O Problema da Representação do Holocausto

Como os artistas de hoje ainda usam o trauma como veículo para comentários sociais.

Still from Holocaust / Daisy Chain | ANN /DeepDream by Denial of Service

Como se constrói a narrativa de um trauma? Esta antiga questão sobre a representação mimética e abstrata na arte  veio à tona novamente com um novo vídeo cujo criador afirma ser “o vídeo mais doentio de todos”.

Holocaust / Daisy Chain | ANN /DeepDream [Atenção: as imagens são fortes], criado pelo artista Denial of Service, foi publicado na plataforma Vimeo há pouco mais de duas semanas. Em pouco mais de três minutos de vídeo, são mostradas perturbadoras imagens reais de Auschwitz, Mauthausen-Gusen, e Dachausubmetidas a um programa de Redes Neurais Artificiais (RNAs) e acompanhadas por uma voz que sussurra: “assim como o passado, o futuro é uma merda (pior ainda)”.

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Talvez seja esse trauma em particular – o Holocausto – que tenha tido mais respostas criativas ao longo dos anos. A poesia e a literatura relacionadas ao Holocausto se tornaram um gênero próprio imediatamente após seu acontecimento, e as reações nas telas de cinema vão desde o nu e cru Noite e Neblina (1995) até épicos históricos como A Lista de Schindler (1993), O Pianista (2003) e documentários semibiográficos que preservam as memórias de sobreviventes.

Cena de Noite e Neblina, cortesia de Argos Films

Mas a narrativa do Holocausto é alvo de opiniões polarizadas. O teórico Theodor Adorno proclamou, e depois retirou, a célebre e frequentemente mal interpretada afirmação de que “escrever poesia após Auschwitz é um ato bárbaro”. Mais de meio século depois, quando o cartunista Art Spiegelman foi questionado pela imprensa se suas memórias do Holocausto eram de mau gosto, Spiegelman respondeu: “não, acho que Auschwitz é que é de mau gosto”. Há um pouco de verdade em ambos os lados. Um evento traumático, seja ele pessoal ou universal, é algo exepcional, ilógico e, portanto, deveria ser praticamente impossível nele encontrar algum sentido. Ser capaz de traduzir essa falta de lógica em um poema, livro ou pintura depois de um ato de barbárie é igualmente bárbaro. Em uma sociedade de contadores de histórias, sentimos um impulso ou desejo de narrar esses eventos traumáticos, de neles encontrar algum sentido e de usá-los como veículo para comentar sobre o mundo em geral.

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As artes visuais são um terreno fértil para representações polimorfas, má interpretação e insensibilidade. Há referências ao Holocausto e a Auschwitz na obra de artistas contemporâneos como Tom Sachs, Mirosław Bałkae os Chapman Brothers, que às vezes são tidas como aproveitadores. Em geral, a resposta dos artistas a esse tipo de crítica é que o objetivo da obra é perturbar porque o mundo é perturbador.

Em entrevista para o Hong Kong Tatler, em 2013, Jake Chapman disse a respeito de seus dioramas e esculturas de Hitler e do Holocausto: “Há a arte que encarna a vontade ou a obrigação redentora de melhorar o mundo, de recuperar a esperança humana. Estamos tentando fazer uma arte que não faz isso. Nós pensamos, ‘será possível fazer coisas repulsivas que não tenham absolutamente nenhum aspecto de redenção?’”

Trecho deMaus,cortesia deArt Spiegelman

Para Harry Martis, também conhecido como Denial of Service, narrar o Holocausto foi uma jornada profundamente pessoal que levou quatro intensas semanas para ser completa. “Quando era criança, nos anos 1970, fui exposto acidentalmente a essas imagens na televisão”, diz Martis sobre Holocaust / Daisy Chain | ANN /DeepDream (clique aqui para assistir). “Foi uma experiência traumática, e ainda tenho aquela memória visceral inicial. Ainda não consigo encontrar algum sentido nesse ‘monstro sapiens’, sua motivação e sua tendência inata ao descambar para o sadismo.”

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Os comentários que o vídeo recebeu na internet foram positivos. Contudo, há acadêmicos e críticos com diferentes visões. Berel Lang, professor de filosofia da Universidade do Estado de Nova York em Albany, que já pesquisou e escreveu sobre a representação do Holocausto, lembra os problemas em declarar que uma arte é “ruim” ou “boa” e o quanto é tênue a linha que separa o artista do aproveitador. “Esse videoclipe certamente é arte e, para mim, é também certamente má arte, uma vez que ela finge intensificar o que já é grotesco – as vítimas dos campos de concentração – ao impor a eles o que é mais grotesco”, diz. “Escritores e artistas normalmente têm obrigações morais que não desaparecem no ato da criação; essas obrigações só se tornam mais refinadas e exigem mais deles. Há o desafio de combinar honestidade com desapego e, pelo menos, evitar a exploração e o oportunismo.”

Jake eDinos Chapman, The Sum of All Evil,cortesia daWhite Cube Gallery

Esta tem sido uma tentação recorrente que fez muitas vítimas entre os que produziram textos, livros, filmes e artes visuais com o tema do Holocausto. O livro de Lang, Primo Levi, retrata, ao lado de outros aspectos das vidas dos sobreviventes do Holocausto, as complexidades de se escrever sobre experiências nos campos. O caminho delicado entre honestidade e desapego também é presente nas memórias em três partes de Elie Wiesel, vencedor do prêmio Nobel, no qual o autor tenta encontrar algum sentido na humanidade, dentro como fora de Auschwitz.

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Martin, no entanto, aponta para o fato de que, segundo alguns argumentam, a sociedade contemporânea e a riqueza, rapidez e acessibilidade de informação levaram a uma dessensibilização. Ao utilizar programas de redes neurais artificiais (RNAs) para falar sobre o holocausto, dá-se continuação a uma discussão sobre a narrativa de experiências traumáticas e surge uma nova discussão sobre o que as RNAs e o DeepDream representam em nosso mundo atualmente obcecado por imagens. Seria mera coincidência que a palavra para “sonho” em alemão é “traume”? Talvez estejamos todos em um estado permanente de desconexão e a ANN permita uma visão mais clara e lógica da associação sociológica voltando à ideia de se encontrar algum sentido em um trauma.

Trecho deMaus,cortesia deArt Spiegelman

Segundo Martis, “o processo do deep-dreaming se parece com o processo de percepção de uma criança de 3 anos, regido pela livre associação". "O processo, em essência, produz algo completamente inesperado. Essas fusões do que parece ser a pele de um réptil com as imagens de Auschwitz e Dachau, feitas pelo programa, não são diferentes do que o meu cérebro tem que fazer ao fim do dia, um processo de livre associação para limpar a memória. O mundo, aparentemente, está completamente dessensibilizado para as coisas erradas: morte, violência, mutilação, sofrimento. Mas não para mamilos.”

Independentemente dos argumentos quanto à visão da sociedade do que é e o que não é tabu, os debates sobre a exploração do trauma ainda são calorosos. É só lembrar do caso recente da repórter e do cameraman da Virginia que foram mortos a tiros em uma transmissão ao vivo, ou as hordas de refugiados sírios – imagens destas vítimas se espalham pelas redes sociais e, em alguns casos, são tiradas de contexto e transformadas em memes. Os mais céticos questionam a necessidade de se apresentar esses traumas em plataformas públicas: “isso é de ajuda para a causa? O que essas imagens nos dizem sobre o mundo?

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Perguntas como essas poderiam ser aplicadas tanto a imagens que surgem em nossos feeds de notícias do Facebook quanto a obras de artes como a de Martis, uma vez que os limites da representação estão, em várias formas, cada vez mais borradas. Tudo é a narrativa de um trauma, e algo sobre o qual vale a pena pensar.

Cena de O Pianista, cortesia de Focus Features

Bambi, Mirosław Bałka, cortesia de Gladstone Gallery

"Lego Concentration Camp," Zbigniew Libera, cortesia do artista

Prada Deathcamp,Tom Sachs, cortesia do artista

Clique aqui para assistir a Holocaust / Daisy Chain | ANN /DeepDreamde Denial of Service. O conteúdo das imagens é forte.

Tradução: Flavio Taam